Dono da festa, São Paulo acaba ofuscado pela popularidade de São Pedro
Dia 29 de junho foi determinado para a comemoração dupla, mas as homenagens ao padroeiro dos pescadores e dos viúvos têm maior protagonismo
Com a festa para São Pedro celebrada hoje, sábado, 29, encerra-se o ciclo junino. São Pedro é considerado o padroeiro dos pescadores e das viúvas e viúvos com base em passagens do evangelho que apontam essas condições para ele. Considerado o primeiro papa da Igreja Católica é celebrado com fogueira, forró e comida à base de milho no mesmo modelo da festa para São João. Mas São Pedro não é o único homenageado no dia. Ele divide a festa litúrgica, na Igreja Católica, com São Paulo que quase nunca é lembrado na devoção popular. Em um conjunto de reportagens de A TARDE do período de 1970 a 2004 apenas uma faz referência à comemoração para a dupla:
“Os dois apóstolos que são considerados os pilares da Igreja Católica são homenageados hoje em Salvador numa data que se tornou tradicional manifestação popular e religiosa. O dia é de louvores a São Pedro e a São Paulo, apesar de que apenas o primeiro é trivialmente lembrado pela população. Em bairros e igrejas da capital baiana, há uma intensa programação prevista, incluindo alvorada de fogos, procissões e missas celebrativas.”. (A TARDE, 29/06/2004, p.4).
O dia 29 de junho é considerado, por conta das celebrações aos dois santos, uma das mais altas solenidades da Igreja Católica. Enquanto São Pedro é lembrado como aquele a quem Jesus deu o comando da sua igreja ao chamá-lo de “pedra” e em seguida lhe entregar as chaves entendidas como de ligação entre o céu e a terra, São Paulo é considerado para muitos teólogos o principal codificador do cristianismo, ao estabelecer por meio de suas cartas muitos dos princípios que seriam a base da doutrina e da conduta moral da nova prática religiosa, além de tê-lo disseminado para além dos limites de Jerusalém.
A tradição católica, durante muito tempo, considerou o dia 29 de junho do ano 67, depois de Cristo, como a data do martírio conjunto de Pedro e Paulo, ou seja, as trajetórias dos dois passaram a ser interligadas. Tanto que há quem aponte uma analogia com a história de Rômulo e Remo, os gêmeos considerados fundadores de Roma, que é a sede da Igreja Católica.
“Parece também que a festa do dia 29 de junho tenha sido a cristianização de celebração pagã que exaltava as figuras de Rômulo e Remo, os dois mitos fundadores da Cidade Eterna. São Pedro e São Paulo, de fato, embora não tenham sido os primeiros a trazer a fé a Roma, foram realmente os fundadores da Roma cristã: um antigo hino litúrgico definia-os como pais de Roma; um dos hinos do novo breviário fala de Roma que foi “fundada em tal sangue”. (Um santo para cada dia, Mario Sgarbossa e Luigi Giovanninini, p.191).
De Damasco para o mundo
Se as trajetórias de Pedro e Paulo acabaram interligadas em importância para a história da Igreja Católica, as biografias começaram em sentidos diversos. Paulo, diferentemente de Pedro, não esteve no grupo dos 12 apóstolos que conviveram de forma mais próxima com Jesus. Nasceu em Tarso, na Ásia Menor, a região da atual Turquia e um local cosmopolita onde viviam judeus, como a família de Paulo, mas também egípcios, sírios, núbios e predominava a efervescente cultura grega.
Paulo foi mandado para estudar em Jerusalém na escola do proeminente rabino Gamaliel. Tornou-se uma especialista na religião judaica e, possivelmente, integrou a corrente dos fariseus. Foi a partir desse status que passou a perseguir os seguidores de Jesus. Segundo os Atos dos Apóstolos quando Santo Estevão, o primeiro mártir cristão, morreu apedrejado, os mantos dos justiceiros foram deixados aos pés de Paulo ou Saulo, como também era chamado.
Seu ódio aos que seguiam Jesus era tamanho que ele conseguiu cartas das autoridades religiosas de Jerusalém para ir até o território da atual Síria e persegui-los. Na viagem a caminho de Damasco aconteceu o fenômeno conhecido como conversão. Após uma luz intensa, o cavalo em que Paulo viajava se curvou e ele escutou uma voz que declarava ser Jesus a quem ele perseguia. A partir desse episódio começou a transformação de Paulo em um fervoroso defensor da fé cristã a ponto de ter escrito a metade dos textos que formam o Novo Testamento.
Paulo, assim como Pedro, tem uma personalidade controversa mesmo nos textos oficiais do Novo Testamento. Ele é o autor do texto da primeira Carta aos Coríntios em que diz que mesmo que conseguisse a proeza de falar a língua de anjos se não tivesse o amor soaria como um objeto extremamente ruidoso. Em seguida lista todas as vantagens do exercício dessa virtude que coloca acima de outras. Mas foi ele quem também pregou a obediência de servos aos senhores, o que durante a vigência da escravidão nas Américas foi usado como justificativa religiosa para sustentá-la. Seus textos em relação às mulheres são muito duros pregando a submissão aos homens e colocando-as em segundo plano em atividades religiosas. Ele também é um ardoroso defensor de costumes que ainda hoje alimentam no âmbito cristão o discurso contra homossexuais e outras questões do comportamento no chamado discurso moral.
O apóstolo das frases controversas
Se Paulo é o santo lembrado pelo exercício do seu vasto conhecimento intelectual e filosofia do seu tempo, Pedro é considerado o apóstolo mais próximo das imperfeições humanas. Pescador, Pedro é descrito nos evangelhos como alguém que é capaz de em questão de horas passar de tradutor da missão de Jesus, como o que o reconhece na condição de Messias, a um veículo de tentação ao sugerir que não desçam mais do monte onde ocorreu um fenômeno espiritual: a transfiguração. Por conta disso recebe uma das muitas duras reprimendas de seu mestre.
Na última Ceia, em meio à comoção do discurso de despedida de Jesus, Pedro quebrou o clima ao insistir que não permitiria que Jesus lavasse seus pés. Ao receber a explicação de que isso era necessário por conta dos benefícios espirituais do gesto, Pedro quis mais: que Jesus lavasse também as suas mãos e a cabeça. Foi nesse momento que recebeu a sentença de que naquela mesma noite iria negar o mestre, o que acabou acontecendo quando ele sentiu o perigo diante da iminente condenação de Jesus. Mas ele se arrependeu e foi premiado com o papel de líder da comunidade que Jesus deixou encaminhada.
Essas características tão humanas de São Pedro lhe deram protagonismo na devoção popular. As fogueiras que são acesas em sua homenagem pelas viúvas e viúvos continuam uma tradição recorrente por todo o Nordeste.
“A noite de ontem, véspera do dia de São Pedro, foi marcada pela queima de fogueiras em bairros da Cidade Baixa e do subúrbio. No bairro de Periperi, dezenas delas foram acesas por famílias de viúvas, mantendo a tradição em homenagem ao santo católico que é considerado protetor dos pescadores e das viúvas”. (A TARDE, 29/06/2010).
Entre os pescadores a festa também é grande:
“O dia de São Pedro para os pescadores, não é um dia comum e por isso hoje, eles amanheceram em festa. A tradição perde-se no tempo, sendo passada através das gerações que possuem as mesmas crenças, têm os mesmos costumes e são, sobretudo, movidas pela fé. São Pedro é o padroeiro daqueles que saem de casa antes do sol nascer e não têm hora de voltar. Dia após dia, ano após ano, o ritual da pescaria não muda como também nunca é modificada a esperança de uma vida melhor”. (A TARDE, 29/06/1986, p.3).
São Pedro é ainda personagem constante de histórias educativas, mas sempre no papel de quem tenta usar a esperteza que acaba por colocá-lo em situações de vexame. Em uma delas, Jesus o convida para um experimento que vai definir se as pessoas devem ressuscitar ou não. Para isso decide jogar uma cabaça no rio. Se ela flutuar, as pessoas experimentarão a morte, mas com possibilidade de retornar. Pedro sugere que no lugar da cabaça, Jesus jogue uma pedra. Dias depois, retorna, chorando e pedindo que Jesus jogue a cabaça, pois perdeu a mãe. Jesus diz que o que está feito não pode ser desmanchado.
Outra história diz que numa atividade de pregação, Jesus, Pedro e João receberam um bode para comer e o preparo ficou sob a responsabilidade de Pedro, que ao retirar o fígado do animal o temperou e comeu. Quando estavam em volta do fogo onde o bode foi assado, Jesus perguntou pelo fígado. Pedro respondeu que bode com pelagem vermelha não tem fígado. Diante da dificuldade para atravessar um incêndio na mata, Pedro foi o último a precisar enfrentar as chamas e do outro lado Jesus perguntou quem comeu o fígado do bode e Pedro mais uma repetiu que bodes de pelo vermelho não têm fígado. Em seguida o obstáculo foi a correnteza de um rio e a situação se repetiu. Por fim, após uma cura milagrosa, Jesus recebeu por insistência do dono da casa um saco de moedas. Ele então dividiu o dinheiro em quatro pilhas. Disse que uma era sua, a outra de João e a terceira de Pedro.
-E de quem é a quarta?, perguntou Pedro. Jesus respondeu: -Para quem comeu o fígado do bode. Pedro então disse: -Fui eu, senhor, fui eu. Jesus aproveitou para mostrar a Pedro o quanto a ambição por dinheiro é capaz de fazer.
A devoção popular mais uma vez conseguiu traduzir os ensinamentos dos teólogos. Mesmo pessoas tão especiais na história do cristianismo, como Pedro e Paulo, mantiveram as suas fraquezas humanas. Isso ensina que deve haver um esforço diário para compreender que não se está imune ao erro.
Confira as páginas de A TARDE sobre as celebrações:
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia