ICOM abriga a história de duas instituições cruciais para a medicina
A unidade de saúde, localizada em Águas Claras, para o tratamento especialmente de doenças infectocontagiosas
Inaugurado em 2018, O Instituto Couto Maia (ICOM) resultou de uma junção entre o Hospital Couto Maia e o Hospital Dom Rodrigo de Menezes, que era especializado em hanseníase. O novo endereço é o bairro de Águas Claras. Mais do que uma unidade de saúde, o ICOM abriga patrimônio sobretudo simbólico, pois sua trajetória está relacionada às formas adotadas para o tratamento de doenças infectocontagiosas na Bahia, inclusive do ponto de vista das relações sociais, afinal o hospital já foi visto como um local em que se ficava quando a morte era quase uma certeza. Uma amostra é a forte religiosidade que cerca os momentos de epidemia em Salvador resultando em devoções como as celebradas neste mês de agosto para o católico São Roque e Kavungo, Azoany e Omolu, divindades das religiões afro-brasileiras. Na capa da edição de A TARDE de 28 de maio de 1932 foi com um tom emocionado e citações referentes à fé que um paciente agradeceu a sua recuperação após uma temporada de internamento no Hospital de Isolamento, então localizado em Monte Serrat e que mais tarde se tornaria o Hospital Couto Maia.
“Obedecendo à consciência e ao coração é que nesta declaração por nós confirmada e no momento em que poupado pela Misericórdia Divina nos retiramos do Hospital de Isolamento após uma permanência de quase 2 mezes, queremos externar os sentimentos da nossa fervorosa gratidão por todas as desveladas solicitudes de que fomos cercado nessa instituição modelar que é uma perfeita correspondência às exigências de sua magnífica finalidade”. (A TARDE 28/5/1932, capa).
O texto, publicado com o título de “Agradecimento” é assinado por Adalberto, bispo de Barra. Deve tratar-se de Adalberto Accioli Sobral que foi titular da diocese, localizada na cidade do oeste baiano, de 1927 a 1934. Dom Adalberto não cita qual foi a doença que teve, mas reitera em vários trechos que sofreu muto. Ele também agradece pelo cuidado que recebeu da equipe chefiada pelo diretor do Hospital de Isolamento, o médico Augusto Couto Maia. Em 1936, quando ele se aposentou, após mais de 30 anos de dedicação à instituição, o hospital recebeu o seu nome.
“Quando, vendo de perto, a morte e entrevendo a Eternidade, sentimos por experiência pessoal, o travor das longas horas, dos longos dias, das noites interminas num leito de hospital; foi na Fé e no inteiro abandono nas mãos de Deus Nosso Senhor que encontramos consolo e também na dedicação de todos os que nos velaram as dores: médicos, enfermeiros e amigos. Na partilha dos nossos agradecimentos tão de alma seja logo mencionado o exmo. Sr. dr. Augusto Couto Maia, abnegado director do Hospital do Isolamento. Ser-lhe-emos eternamente reconhecido pelas contínuas attenções que nos dispensou a sua competência profissional e, ao lado desta, o carinhoso cuidado de sua alma generosa. O Hospital do Isolamento honra a Bahia”. (A TARDE 28/5/1932, capa).
O tom emocionado e de alívio do texto assinado por Dom Adalberto revela uma característica marcante dos hospitais e de mudanças que marcaram a medicina baiana sobretudo a partir do século XX. Estas unidades de saúde deixaram de ser os locais em que a morte do paciente era quase certa para se transformar não apenas em unidades de tratamento, mas também espaço de investigação.
“A medicina de meados do século XIX era uma medicina pautada em um paradigma que a gente costuma chamar de miasmático. O grande problema para alguns médicos era a corrupção do ar. Com o desenvolvimento da bacteriologia há também a criação da cátedra, que é uma especialidade. Com a bacteriologia você tem um microscópio e consegue identificar se é um vírus ou uma bactéria a causa de uma doença”, explica o professor da Uneb, historiador e doutor em História, Ricardo Batista.
Atendimento e pesquisa
Pesquisador do campo da História da Saúde, História da Doença e Patrimônio da Saúde, Ricardo Batista destaca que Augusto Couto Maia (1876-1944) foi professor da Faculdade de Medicina da Bahia, na cátedra de microbiologia. O hospital dirigido por ele se tornou, além de lugar de atendimento, um polo de pesquisa e ensino.
“Augusto Couto Maia estava na Faculdade de Medicina e no Hospital de Isolamento de Monte Serrat. Ele fazia intercâmbio. Visitou a Europa onde estava a tradição do estudo da bacteriologia e isso se refletiu no seu trabalho no hospital. O Couto Maia abrigou um centro de saúde que é uma modalidade inspirada na medicina norte-americana parecido com as bases do que conhecemos hoje como policlínicas. Tanto que Augusto Couto Maia chegou a ser cotado para receber uma bolsa da Fundação Rockefeller, mas já estava com a saúde debilitada e a instituição queria investir em um trabalho de longo prazo”, acrescenta Ricardo Batista.
Na edição de 11 de abril de 1936, A TARDE noticiou as homenagens que estavam sendo programadas para Augusto Couto Maia devido à sua aposentadoria da direção do Hospital de Isolamento. Uma delas foi a instituição passar a ter o seu nome.
“É do "Jornal do Brasil” a seguinte nota: "A aposentadoria do illustre e venerando professor dr. Augusto Couto Maia, antigo diretor do Hospital de Isolamento de Montesserat, na Bahia, ofereceu ensejo a que fossem prestadas a esse devotado homem de sciencia as mais expressivas homenagens por parte dos circulos intellectuaes bahianos e de toda a sociedade daquelle importante Estado. Entre essas excepcionaes demonstrações de alto apreço merece especial destaque a que lhe prestou o governo da Bahia por solicitação de todo o pessoal daquelle estabelecimento hospitalar, a que o dr. Couto Maia dedicou tantos annos de uma profícua atividade e de um insuperável zelo. O nome do hospital de Monserrat foi com effeito mudado para Hospital Couto Mala, por decreto do governo do Estado, a pedido de todo o corpo clinico e administrativo do mesmo instituto”. (A TARDE, 11/4/1936, p.3).
Mudança
Em 2018, após a mudança para Águas Claras, o hospital se transformou no ICOM inclusive incorporando o Hospital Dom Rodrigo de Menezes, especializado no tratamento da hanseníase. O ICOM é considerado o maior e mais moderno hospital do país no campo de tratamento das doenças infectocontagiosas. A unidade possui 130 leitos, dois quais 30 são de UTIS e ambulatórios especializados em infecção geral, HIV e neuroinfeccção. O atendimento no ICOM é realizado pelo SUS.
A incorporação do Hospital Dom Rodrigo de Menezes pelo Hospital Couto Maia foi feita há 11 anos, o que ampliou a assistência incluindo ainda as doenças parasitárias. Integram a rede de serviços do ICOM o atendimento em casos de dengue, chikungunya, zika, febre amarela, calazar, hepatite aguda viral, erisipela, micoses profundas, meningite, Síndrome de Guillain – Barré, malária, dentre outras.
As duas instituições que foram reunidas para a fundação do ICOM tiveram origem no século XIX. O Couto Maia, inicialmente com a função de atender pacientes de febre amarela, foi fundado em 1853 com o nome de Hospital de Isolamento até a homenagem feita ao médico Couto Maia. Já o Hospital Dom Rodrigo de Menezes surgiu a partir do Hospital São Cristóvão dos Lázaros, situado na Baixa de Quintas, e fundado em 1887 para abrigar doentes da então chamada lepra. Em 1949 adotou um modelo de colônia, que servia também de moradia.
O relato sobre a história dessas duas instituições pode ser conferido em uma sala especial que tem a característica de memorial instalada no ICOM. O professor Ricardo Batista desenvolveu esse projeto ao lado de Fátima Lorenzo, que é historiadora e mestra em Ensino, Filosofia e História das Ciências pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), além de funcionária do ICOM. As informações foram organizadas em uma linha do tempo. “Fátima Lorenzo conseguiu levar para o ICOM alguns dos moveis antigos da época do Couto Maia em Monte Serrat”, acrescenta Ricardo Batista.
Mas na avaliação do historiador o endereço do ICOM poderia ter sido outro para que fosse preservada a antiga estrutura do Hospital Dom Rodrigues de Menezes. Assim, a história da instituição e da trajetória da medicina baiana no combate tanto à hanseníase como a outras doenças poderia contar com um registro mais expansivo.
“O ICOM é um equipamento importantíssimo para a Bahia e os baianos merecem sua estrutura moderna. Só acho que poderia ter sido escolhido um local mais adequado. No antigo Hospital Dom Rodrigues de Menezes, as pessoas que tinham hanseníase viviam em isolamento. Naquele local tinha teatro, por exemplo. Era um patrimônio da saúde da Bahia e importante para que as gerações futuras entendessem o que passamos a discutir e viver no contexto da pandemia de coronavírus, como isolamento, avanço científico, dentre outras questões”, analisa Ricardo Batista.
O historiador aponta que os patrimônios materiais e simbólicos, inclusive na área da saúde, são fundamentais para exercitar uma das funções da historiografia. “A história observa o que foi feito no passado para que possamos tomar decisões no presente a partir das experiências da nossa trajetória como grupos humanos”, completa. É esse entendimento, por exemplo, que nos permite contar histórias como a da longa prestação de serviços das duas unidades que agora formam o ICOM.