São Bartolomeu: sede do culto aos caboclos necessita superar estigmas
Parque no Subúrbio Ferroviário ficou marcada como lugar violento, mas povo de santo luta para preservá-lo
Uma área de 155 hectares que abriga um considerável patrimônio de biodiversidade em região urbana. Além de exemplares de fauna e flora considerados estratégicos para estudos de manejo e importância de preservação ambiental, abriga três cachoeiras. Já foi quilombo e área de resistência indígena aos aldeamentos jesuítas no processo de sedimentação de Salvador como capital do País.
Integra a região da Batalha de Pirajá, o maior dos confrontos na Guerra da Independência da Bahia e abriga a memória do culto aos Caboclos, inquices, voduns, orixás e do afro-catolicismo. Todas essas credenciais são do Parque São Bartolomeu, uma impressionante reserva que transcende a condição ambiental para muitas outras perspectivas como está registrado nas coleções de edições e fotografias do Cedoc A TARDE.
Situado no Subúrbio Ferroviário de Salvador, entre a Enseada dos Cabritos e o bairro de Pirajá, o parque tem um histórico de lutas em sua defesa desenvolvidas especialmente pelo povo de santo. O São Bartolomeu foi criado como parque em 28 de abril de 1978 por meio do Decreto Municipal nº 5.363. A partir daí a área vive momentos de intervenção estatal, mas também de abandono e movimentos pela recuperação, questões destacadas no especial Dia de Caboclos, publicado na edição de A TARDE de 2 de Julho de 2006.
“Por sua riqueza natural, concentrando mata, água e terra, o Parque São Bartolomeu é considerado santuáriopelo povo de santo”.(A TARDE, 2/7/2006, Especial Dia de Caboclos).
Imagens pertencentes ao acervo do Cedoc A TARDE mostram alguns detalhes dessa ocupação religiosa, como a Pedra de Iansã, as cachoeiras dedicadas a Oxum, Oxumarê e Nanã e a capelinha em honra de São Bartolomeu. Há também registros da presença dos Caboclos, incorporados, especialmente durante a celebração do Dois de Julho. Enquanto o cortejo toma as ruas do Centro Antigo de Salvador em direção ao Campo Grande, no parque as comitivas das comunidades das religiões de matrizes africanas celebram os Encantados reconhecidos como os ancestrais das terras brasileiras com oferendas e rodas para celebrá-los.
E isso é uma batalha intensa e de resistência, pois, especialmente a partir da década de 1980, o São Bartolomeu passou a conviver com a degradação dos seus mananciais e outro desafio ainda mais difícil de ser sanado: a cultura da violência que se transformou em discurso que afasta dele a população do entorno e de outras áreas da cidade.
“A ocupação urbana no entorno do parque poluiu os mananciais. Depois se estabeleceu por meio da violência a exclusão da população negra em volta do parque. Essa cultura de violência se estabeleceu na memória do São Bartolomeu”, lamenta o geógrafo Diosmar Filho.
Professor, doutorando em Geografia na Universidade Federal Fluminense (UFF) e estudioso do ordenamento urbano com o recorte étnico-raciall, Diosmar Filho destaca que, mesmo com intervenções urbanas, o parque ainda está longe de ser reintegrado à rotina da cidade como um espaço delazer, educação e saúde. “Como pensar que Salvador não tem no seu programa de educação permanente a cultura de acessar o parque que é um espaço onde se pode trabalhar tantas perspectivas que são importantes parauma cidade?”, questiona o geógrafo.
Tentativas
Em 2014 foi inaugurada uma obra de revitalização do parque. O local ganhou equipamentos como centro de referência, creche e praças, inclusive uma destinada a eventos. Mas o estigmada violência ainda não permite a reocupação do espaço.
“Você não monta memória de violência e desmonta com cimento. Não é fazendo estrutura de cimento que vai tirar aquilo que se estabeleceu de violência. O racismo contra as religiões de matrizes africanas tirou delas o direito de acesso ao parque”, completa Diosmar Filho.
Na administração de Lídice da Mata, que teve Juca Ferreira como secretário de Meio Ambiente, na década de 1990, alguns avanços foram adotados. Em 1987 o Movimento de Defesa do Parque São Bartolomeu reuniu clube de mães, associações de moradores dos bairros do entorno e os terreiros de candomblé. Aliás, as religiões de matrizes africanas participaram de todos os movimentos em defesa do Parque São Bartolomeu.
Sua presença se deu tanto na ocupação religiosa por meio de romarias que diminuíram, mas não acabaram completamente, e movimentos com diversas estratégias. Uma imagem do Cedoc A TARDE de 1997, por exemplo, mostra integrantes das religiões de matrizes africanas na cena que lembra águas de uma das cachoeiras caindo sobre eles,mas também o milho branco, que é essencial em seus ritos. Outra foto, realizada em2001, mostra um bebê tranquilamente repousando em uma cama de tecidos feita em meioà grama e rodeado por atabaques.
“Eu conheci o parque São Bartolomeu nos movimentos em sua defesa, como os liderados por João Reis, Makota Valdina e outra lideranças”, completa Diosmar Filho.
Tata do terreiro Unzo de Angorô, que fica localizado na área de acesso ao parque, João Reis esteve na liderança de muitos desses movimentos. Ele destaca que eles sempre foram pensados como estratégias de inclusão das comunidades do entorno com a realização de atividades múltiplas, como as voltadas para os esportes e linguagens artísticas.
“Sempre tivemos a consciência de que para frear a degradação era preciso envolver todas as comunidades do entorno. Nós, povo de santo, nunca pensamos o parque como algo nosso, mas de toda a cidade”, acrescenta.
Luta de povos
O Parque São Bartolomeu é um remanescente de ocupação tupinambá. Com a chegada de Tomé de Sousa para fundar Salvador em 1549 a região de Pirajá fez parte da estratégia de instalação dos aldeamentos jesuítas para controle e catequese dos indígenas. Uma dessas estruturas foi a Aldeia São João, segundo texto da doutora em história e professora da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Maria Hilda Baqueiro Paraíso, intitulado Aldeamentos de Salvador no século XVI – Um primeiro esboço. O local foi foco de resistência sob a liderança do cacique Mirangoaba que promoveu fugas e outros levantes. O local também é identificado como parte do Quilombo do Urubu.
Na região do Parque São Bartolomeu ocorreu a maior das batalhas da Guerra da Independência em 8 de novembro de 1822. Após um ataque surpresa os portugueses davam como certa a vitória até que ocorreu algo inesperado. Algumas fontes históricas, como Santos Titara, e a tradição que gosta da característica da Bahia como palco de coisas inexplicáveis, contam que o corneteiro Luís Lopes foi o autor da virada das tropas do lado brasileiro. Ao invés de cumprir a ordem de retirada ordenada por seus superiores, Lopes deu o sinal de “avançar cavalaria e sucessivamente àdegola”. O combate virou e o chamado Exército Pacificador venceu, um triunfo crucial para o ânimo brasileiro, que se confirmou em 2 de Julho do ano seguinte.
Esse episódio tem raízes na transformação do parque em local por excelência de culto aos Caboclos em Salvador, afinal estes são os grandes protagonistas da Festa do Dois de Julho. Em Pirajá, inclusive, fica o monumento de memória ao general Pedro Labatut, considerado um dos heróis da Guerra da Independência.
O nome do parque é derivado de uma das mais antigas freguesias do arcebispado da Bahia, instalada no século XVI em Pirajá com a construção de uma igreja dedicada a São Bartolomeu. Na associação entre as religiões afro-brasileiras e o catolicismo, São Bartolomeu ganhou um protagonismo que ele não possui em outros locais.
Mesmo nos evangelhos, as narrativas oficiais sobre a vida de Jesus, as referências a ele são poucas quando comparadas a outros apóstolos. São Bartolomeu foi associado ao inquice Angoró, no candomblé de tradição angola; aos voduns Bessen e Danna tradição jeje e ao orixá Oxumarê da tradição ketu.
Segundo o livro Um Santo para Cada Dia, de Mario Sgabossa e Luigi Giovanni, uma das tradições do catolicismo aponta que Bartolomeu pregou na Índia e na Armênia onde foi martirizado com a retirada da pele seguida de decapitação. Na narrativa evangélica, Bartolomeu é quem questiona o também apóstolo Felipe, ao saber que Jesus é de Nazaré, se dessa cidade poderia sair algo bom. Jesus o confronta o chamando de israelita sem fingimento. Ao ser questionado por Bartolomeu de onde o conhece, ele diz que o viu debaixo da figueira, o que o faz proclamar que Jesus é Messias, Filho de Deus e rei de Israel. Em seguida, é informado por Jesus de que verá mais prodígios do que a sua visão anterior a conhecê-lo.
A aproximação de São Bartolomeu com as divindades dos cultos africanos o fez ganhar uma iconografia que chama a atenção entre os santos católicos. Ele também costuma ser representado com a parte inferior do corpo emformato de cobra e a superior como homem. As divindades de origem africana com quem ele é associado são responsáveis pelo equilíbrio e prosperidade, tendo ainda como símbolo o arco-íris e são também representadas em forma de serpente.
Essa diversidade de elementos naturais e culturais fazem do Parque São Bartolomeu um lugar único em Salvador. O professor Jaime Sodré, religioso de candomblé, músico, designer e tantas outras habilidades que demandasse o seu ativismo em defesa dos direitos da comunidade afro-brasileira costumava dizer que o parque era uma catedral do povo de santo a céu aberto, ou seja, a sua imponência e importância não precisa de pedra, cal, vitral ou outras riquezas materiais para manter uma memória capaz de fazê-lo enfrentar os mais variados desafios que tentam jogá-lo no esquecimento. Ele, assim como os Caboclos, encontra a dinâmica para manter um protagonismo, mesmo quando parece que não haverá reconhecimento.
*CLEIDIANA RAMOS É JORNALISTA E DOUTORA EM ANTROPOLOGIA