A boa e velha boca-livre
Pare para pensar: o mundo inteiro mobiliza-se em torno da comida. Ela sustenta as civilizações e é tão importante quanto respirar.
Comer é instintivo, sensorial, emocional, dá prazer, acalma, alegra e traz o ser amado em três dias. É uma fraqueza, uma compensação, recarga de felicidade; é sexo, é remédio para ansiedade e culpa; é a vedete, é status, é um tudo na vida da pessoa, inclusive morte e ruína, mas vamos deixar para falar sobre isso depois da festa?
E por ser uma das atividades econômicas mais importantes do mundo, pagamos por ela. Agora, imagine tudo isso de graça!
Também conhecida como rega-bofe, a boca-livre, ou apenas BL para os íntimos, é isto: uma oportunidade de comer e beber sem pagar.
Oh, glória! Refestelar-se! Quem nunca?
Apetite voraz
Tamanho é o fascínio, o poder e a loucura que a comida exerce sobre os seres humanos, que não raro presencio muita gente fina, elegante, e não necessariamente sincera, descer do salto e perder a compostura diante de uma bandeja com coxinhas de galinha.
Não sei o por quê, mas estas cenas me remetem um pouco ao apetite voraz de nós, australopithecus, lá no Paleolítico, de tocaia, munidos com nossas armas de pedra lascada, prontos para "bafar" um mamute. Só essa linha ancestral pode explicar o apetite voraz da humanidade.
Decadence avec elegance
Aliás, tem coisa mais tosca do que observar a farsa e o declínio da classe média numa festa de casamento? De sua chegada, socialmente adequada, de acordo com os padrões estéticos esperados, até o seu desalinhamento, que culmina numa saída cambaleante na lama, com make derretido, sandálias de salto numa mão, as lembrancinhas na outra, e a bolsa cheia de docinhos roubados embaixo do braço?
Muitos tentam, em vão, fazer uma linha fina e descontraída, mas acompanham obsessivamente os garçons com os olhos, até que, discretamente, vão se aproximando de suas rotas e ainda fazem carinha de dúvida quando o garçom, fi-nal-men-te, estende-lhes a bandeja. Estas só percebem a música, as pessoas, lembram-se do que estão fazendo ali e começam a se divertir depois de garantirem, pelo menos, quarenta por cento do bucho forrado.
Gente, tem até suborno para comer bem em BL, o negócio é sério! Tão pensando que é lenda aquele personagem abastado que rasga uma nota de R$ 50 (quiçá R$ 100) ao meio, coloca uma das partes no bolso do garçom, enquanto sussurra em seu ouvido que a outra metade ele receberá ao final da noite, isso, claro, se ele for bonzinho no serviço do uísque para aquela mesa? Categoria altas rodas, é sabido.
O arroz de festa
Mas não se pode falar em boca-livre sem falar do arroz-de-festa, concordam? Vulgo penetra ou bicão, este é um tipo muito comum em eventos institucionais, especialmente do segmento das artes, como os vernissages e coquetéis de lançamentos.
O arroz de festa é praticamente um profissional, e está mais por dentro da agenda de eventos da cidade do que o próprio Caderno 2. Sua vida social é tão intensa que ele chega a "prestigiar", com a sua onipresença e cara de pau, até mesmo três eventos numa única noite. Agora, pergunte a esse cretino se as obras do artista eram pintura, escultura ou videoarte, para ver se ele sabe.
Boi de piranha
O arroz de festa está em todas. Aquele que os galeristas e donos de bufê arrancariam os olhos com as próprias mãos. Aquele para o qual são esboçadas em papel estratégias e rotas de fuga de garçons para que as bandejas cheguem ilesas até os convidados. Coisas do tipo boi de piranha.
Boi de piranha é uma estratégia para travessia de rebanho em rio infestado de piranha, onde o criador sacrifica um animal mais velho ou doente e lança-o ao rio para distrair as piranhas enquanto o rebanho atravessa. Pois bem, amiguinhos, soube de fonte limpa que há bufês que, inspirados nesta estratégia, já desenvolveram a modalidade "bandejas boi de piranha", com alimentos de segunda para distrair os pilantras que ficam ali plantados nas saídas de garçom, abrindo assim os caminhos para que as bandejas do tipo A cheguem aos seus verdadeiros destinos.
É cobra engolindo cobra, porque ninguém pode com as urgências da fome humana, e a falta de compostura diante de uma BL nada tem a ver com nível social, conta bancária ou endereço em jardins.
Desta fome ancestral, quase todos padecem.