As mãos que apalpam tomates
Dulce e Joice conheceram-se no supermercado. Dulce empurrava entediada o carrinho de compras da sua avó, Dona Adelaide. Havia-se tornado grande especialista na escolha de vegetais, não exatamente por apreço, mas para agilizar seu compromisso quinzenal chato demais.
No início Dona Adelaide fora resistente, exigente que era com a qualidade dos alimentos, mas o esporão a queimar-lhe o calcanhar direito fê-la ceder, até porque, pensando bem, a Dulce não era assim de todo insensível para as cousas do lar. Enquanto isso, compraria os mantimentos, carnes e materiais de limpeza. O que se há de fazer?
As frutas cítricas deveriam ter as suas cascas lisas e brilhantes; os quiabos precisavam fazer croc ao terem os seus rabinhos quebrados, para irem para o saco; tamanho nunca fora documento para os maracujás; os mamões papaya não deveriam ser comprados no mercado pois eram submetidos a um processo de amadurecimento precoce que os deixavam maduros por fora, mas verdes por dentro, um horror!
As maçãs nacionais, a despeito de serem mais mirradinhas, eram muito mais saborosas que as importadas modelo Branca de Neve; e os tomates só se fossem italianos, pequenos, sinceros e suculentos; setenta por cento maduros e trinta por cento “de vez” para a salada.
Dulce desnuda Joice
E foi na gôndola de tomates que Dulce viu Joice, pela primeira vez. Pelas mãos, a apalparem com carinhosa destreza os frutos, que naquele dia estavam especialmente lindos. Eram mãos enormes, ágeis, bem torneadas.
Pela intimidade com os tomates e pelo esmalte pitanga descascado nas pontas, Dulce intuiu que Joice tinha uma coisa com a cozinha. E a sua perplexidade era tanta diante da beleza daquelas mãos, que Joice, involuntariamente, umedeceu na calcinha e teve medo de buscar com os seus olhos o resto do corpo daquela mulher, que já voltava-lhe as costas partindo para as hortaliças.
Foi a nuca a segunda parte do corpo de Joice onde Dulce pousou os seus olhos fascinados. Ela tinha um longo pescoço parcialmente coberto com alguns cachos de seu cabelo castanho, preso displicentemente no alto da cabeça por um palito oriental fake chinês... rashi! Sim, rashi era o nome daqueles palitos que os orientais usavam para comer. Joice trazia rashi nos cabelos.
Os olhos de Dulce desceram em revista pelos ombros largos de Joice, por onde escorregava a alça do vestido floral, que pendia fresco e solto até a altura do joelho. E ruborizou ao mirar-lhe discretamente os quadris e as pernas fartas e bem torneadas de Joice.
Dulce ainda não tinha visto o seu rosto, mas estava completamente presa a Joice, e passou a segui-la numa quase demência pelos corredores do supermercado, deixando cair, sem perceber, a lista de compras, o tempo, o tédio de seu velho relacionamento hetero-normativo, a avó.
E foi através das folhas de couve, que Dulce viu pela primeira vez o rosto de Joice. Tinha olhos enormes, de cílios enormes, marcados por leves olheiras; tinha uma boca também enorme, promessa de beijos úmidos e macios. Joice era toda enorme, e aparentava uns 40 anos, talvez um pouco menos subtraindo-se o cansaço das feições de quem provavalmente trabalhara o dia inteiro, só restando-lhe a noite para as compras.
Joice agora tinha a testa franzida pela concentração na qualidade do agrião, e uma certa dúvida fê-la morder o lábio inferior daquela bocarra indecente, o que mais uma vez excitou, de forma desconcertante, a nossa brava heroína, cuja calcinha àquela altura já encontrava-se encharcada.
Joice poderia ser uma mulher comum não fosse a força da sua presença, que apontava para uma personalidade absolutamente livre e independente (certamente não haveria ninguém à sua espera), alheia às coisas banais, numa solidão explícita em seus olhos algo tristes. Era fato consumado que Dulce estava apaixonada por Joice sem que ela ao menos cogitasse a sua existência. Não por muito tempo.
É que Joice vivia uma fase tão distraída para o amor, que custou a perceber a presença da jovem Dulce, mesmo com aquele resto de roxo nos cabelos, camiseta tributo ao Kiss e unhas muito curtas pintadas de preto. Não havia percebido os olhos verdes e doces, tampouco aquelas enormes orelhas cobertas de piercings que em breve enroscariam nos seus cabelos.
Um amor já maduro por si
Acontece que a nossa heroína era astuta, e aproveitou-se justamente da distração de Joice para arquitetar o seu plano de aproximação física, nada original, deixando cair aos pés de sua amada, meio quilo de cebolas roxas do saco que estava em suas mãos, despertando Joice do seu transe vegetal.
A cena, já vista muitas vezes em propagandas de televisão, leva as duas ao chão, no impulso de conter as cebolas roxas que se espalham, e termina no encontro dos olhares de Dulce e Joice, que se assusta ao encontrar ali, um amor já maduro por si.
Passadas algumas semanas de amor intenso, deitadas na cama manchada de vinho, depois de refestelarem-se com o melhor rigatoni a putanesca da existência de Dulce – especialidade de Joice – olhando juntas para o teto, ocorreu a Joice perguntar o que a teria feito se apaixonar por ela de forma tão abrupta naquela noite de compras no Supermercado Cardoso, no que Dulce respondeu: “Foram as suas mãos, Joice... as suas mãos a apalparem os tomates”.