Notória idoneidade

Desde pequenininha eu adorava brincar de jurada. Achava aquilo o máximo! Me sentia importante, praticamente uma celebridade! Mas levava muito a sério, ainda que fosse desfile de bonecas. Eu queria ser muito justa, e sempre considerava, mais do que a beleza loira da Susie (precursora da Barbie) em seus figurinos tinindo de loja, a criatividade dos figurinos feitos pelas meninas que desfilavam as suas bonecas possíveis, menos loiras e glamourosas, mas sempre mais interessantes aos meus olhos.
Foi por ali assim que eu comecei a entender uma coisa que só muitos anos depois fui descobrir o nome: contextualização. E olhando hoje, daqui, para aquela menina da minha infância brincando de jurada, vejo claramente a sua preferência pelo charme das menos cotadas, inclinando o pescoço para admirar a segunda ou terceira colocada ofuscada pelo brilho midiático da top.
Beiço de jegue não é arroz doce
Este ano fui convidada para integrar o júri de dois concursos de gastronomia nacionais, que elegeram, supostamente, os melhores estabelecimentos da cidade em diversas categorias.
Foi um dengo e tanto no meu pecado capital vaidade (sou portadora de quase todos), e mais uma vez fui transportada para o tapete vermelho dos formadores de opinião, com aquela mesma vontade de ser justa muito justa, e com aquele mesmo interesse pelos menos cotados, quiçá anônimos ou quase.
Mas eu vou te contar, foi sofrido. O tal do voto de memória quase acabou comigo.
Helena Rizzo ou Dona Benta?
O voto de memória é mais ou menos assim: qual a melhor carne que você lembra de ter comido nos últimos tempos?
É claro que as pessoas convidadas para o júri conhecem bem a cena local, mas isso não quer dizer que elas conheçam tudo. E depois, ela pode ter ido àquele restaurante há meses e ele pode nem ser mais aquela coca-cola toda.
E as categorias? E quando um restaurante se encaixa em três delas? Tipo brasileiro, contemporâneo e variado? E pior! Q
uando três conceitos distintos como comida baiana, afro-baiana e africana são confinados numa mesma categoria? E quando a pessoa é obrigada a votar no melhor que se lembra quando tem certeza de que aquele lá de Itapuã, que ela ainda não conhece, pode ser o melhor, mas ela não tem mais grana para bancar todos os restôs que precisaria conhecer para votar com a consciência leve?
E para escolher um(a) chef só, quando cada um tem uma pegada específica? É como ter que escolher entre Helena Rizzo e Dona Benta, Rodrigo Oliveira do Mocotó e Remy de Ratatouille, Janaina Dona Onça e Jefferson Rueda, Caco Marinho e Ana Célia Santos.
Puxado.
E quando a pessoa percebe que não existem vegetarianos, veganos, agricultura familiar, cozinha patrimonial, publicações, sustentabilidade, produtos orgânicos certificados e nada do que realmente interessa contemplados na coisa? Ou indicação de personalidades gastronômicas não pelos seus estabelecimentos comerciais, mas pelas suas escolhas, ações, discurso e pensamento político em torno da comida?
Banzo
Aí dá um baaanzo! Uma preguiiiça! E como se não bastasse, aquele bichinho chato do senso de justiça (ô coitado!) continua ali azucrinando.
- Faz como? - pergunto para a jurada de bonecas.
- Bom, primeiro respira, inspira e não pira. Nem o seu voto e nem o de ninguém poderá ter compromisso com a Grande Justiça, ó grande louca. Até porque não existe "o" melhor restaurante e nem "o" melhor chef. São só indicações de memória limitadas e muito subjetivas aparecendo como verdades absolutas na capa da revista. Não se dê tanta importância, bebê!
Respirou? Ótimo. Agora, já que é assim, elimine os óbvios e já premiados, e aproveite a sua visibilidade para apontar outros caminhos para além da conceituadíssima franquia chiquérrima da "melhor carne" da cidade de sempre.
Agora pense na comida e nos lugares que tocaram o seu coração. Se esvazie de qualquer referência, "têindêincia", malabarismos técnicos, sensacionalismo midiático, que você não é disso e nem tem rabo preso (oh, glória!), e lembre-se dos lugares quentinhos, dos atendimentos humanizados, dos banheiros carinhosos e rigorosamente limpos, e da temperatura da bebida, que restaurante também é tudo isso.
A comida é fácil! Lembre-se daquela que te fez fechar os olhos de um prazer e alegria, que da língua escorregaram em ondas de calor até o coração.
E, de repente, tudo foi ficando mais fácil. Mandei catar coquinho aquele sensor mala da Grande Justiça e abracei o tal voto de memória com inusitado carinho, que é o que tínhamos para o dia.