O dia do caçador
Quinta-feira é o dia da semana consagrado a Oxóssi - rei de Ketu -, e um dos orixás mais populares na visão afro-baiana. E a quinta-feira de Corpus Christi é um dia-marco para a Igreja, e também um dia-marco para o candomblé baiano, especialmente para a Nação Ketu, Ioruba.
Assim, num mesmo imaginário, que vai muito além do simples sincretismo religioso, unem-se o alimento simbólico que é o do "corpo de Deus" e o alimento real que é a caça.
Enquanto nos ritos da Igreja é relembrado o corpo de Deus, no candomblé é relembrado o alimento comunal, fonte da vida, e da intervenção do homem fundador e transformador da natureza.
Ambos os ritos litúrgicos culminam em Corpus Christi e, assim, integram-se ao sentimento da alimentação. A Igreja, pelo corpo de Deus com o uso da hóstia consagrada; e o candomblé, com a caça como um alimento ideal que representa todos os alimentos permitidos de acordo com a tradição.
Outra forte representação do sagrado se dá na figura de São Jorge, santo que, conforme o costume português, ganha destaque nas magníficas e teatrais procissões de Corpus Christi. São Jorge é o padroeiro de Portugal, por indicação de D. João I (século 14). Uma tradição herdada dos ingleses.
São Jorge, santo cavaleiro, um herói, um guerreiro em traje medieval, expressa uma imagem de realeza e, principalmente, de conquista. Oxóssi, por motivos vários, foi visualizado e interpretado, no olhar afro-baiano, com este santo da Igreja.
As celebrações de Corpus Christi trazem e valorizam um ideal de alimento para a necessária nutrição do espírito. E as festas de Oxóssi - o Caçador -, no dia de Corpus Christi, trazem a necessária nutrição do corpo.
Estas festas, que ocorrem em centenas de terreiros, mantêm princípio de lembrar e marcar o caçador ecológico. Aquele que seleciona a caça para alimentar, mas preserva os filhotes e as fêmeas prenhas, e assim também preserva o equilíbrio da natureza.
Oxóssi caça para alimentar, prover e dar à vida. O desejo de uma boa alimentação traz um entendimento amplo sobre a vida, e une todas as devoções e sentimentos entre o corpo de Deus, São Jorge e Oxóssi. Assim, a busca pelo alimento dá-se na Igreja e no terreiro de candomblé, e juntos eles estão integrados num mesmo entendimento de sagrado.
No dia de Corpus Christi, logo pela manhã, chega o povo do Iá Nassô Oió Acalá Magbo Olodumaré, popularmente chamado de Casa Branca ou Engenho Velho, para assistir a missa na igreja do Rosário dos Pretos.
E um grande momento de emoção quando Oxóssi chega à Igreja; é o rei de Ketu que vem para a sua missa anual. Ele é representado por uma imagem de madeira policromada de São Jorge, que está dentro de um cestinho enfeitado com papel azul, cor do orixá. Então, o santo/orixá é colocado no altar, e a missa transcorre normalmente. Em seguida, o santo volta para o seu território, a casa de Ketu, o terreiro da Casa Branca.
Na missa, vive-se a interação sagrada pela hóstia como corpo de Deus, e no terreiro vivem-se as comidas; as carnes de caprinos e de aves; o feijão, o milho, o acarajé, o abará, o acaçá, e variados preparos feitos com azeite de dendê. No terreiro, vive-se a fartura que remete a um ideal do bem comer, e de alimentar o corpo numa representação fundada na "caça primordial". Estas comidas são preparadas com todo o cuidado culinário, e seguem as orientações especiais das iabassês, mulheres responsáveis pelas cozinhas sagradas.
Faz parte da tradição do candomblé afirmar que se come muito bem e com fartura. Assim, as grandes festas públicas que acontecem nos terreiros são conhecidas como verdadeiros momentos de alimentação coletiva.