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Mãe e filha lançam livros sobre crimes da ditadura

Lançamento acontece nesta segunda-feira, 18, na Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Publicado segunda-feira, 18 de março de 2024 às 15:28 h | Atualizado em 18/03/2024, 15:37 | Autor: Edvaldo Sales
Lançamento acontece pela Aretê Editora e Comunicação, nesta segunda-feira, 18, a partir das 18h, na Reitoria da UFBA (Canela)
Lançamento acontece pela Aretê Editora e Comunicação, nesta segunda-feira, 18, a partir das 18h, na Reitoria da UFBA (Canela) -

A jornalista e pesquisadora baiana Mariluce Moura e sua filha, a professora e pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP), Tessa Moura Lacerda, lançam nesta segunda-feira, 18, dois livros que abordam, de pontos de vista próximos, uma mesma sequência de crimes da ditadura militar brasileira: o sequestro, a prisão, o assassinato sob tortura em Recife (PE) e a ocultação do cadáver do militante Gildo Macedo Lacerda, em 1973.

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“A revolta das vísceras e outros textos” e “Pela Memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, Presente!” são trabalhos que se complementam. O primeiro, escrito por Mariluce, é uma republicação de um romance lançado na década de 80, junto com outras reflexões da autora, escritos durante sua prisão, antes e depois da morte do marido, Gildo, além de artigos e entrevistas para diferentes veículos.

O segundo livro, de Tessa, filha do militante, traz quatro ensaios que abordam temas como a necessidade da edificação de uma memória sobre alguém que não se conheceu, a subjetividade de uma criança marcada por uma trágica ausência e a negação dos rituais fúnebres pela ditadura. Os lançamentos vão acontecer a partir das 18h, na Reitoria da Universidade Federal da Bahia (UFBA), no bairro do Canela, em Salvador.

Capa dos livros “A revolta das vísceras e outros textos” e “Pela Memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, Presente!”
Capa dos livros “A revolta das vísceras e outros textos” e “Pela Memória de um paí[s]: Gildo Macedo Lacerda, Presente!” |  Foto: Divulgação

Ao Portal A TARDE, Mariluce disse que o principal texto do seu livro, que é o romance ‘A Revolta das Vísceras’ foi escrito precisamente a partir da experiência pessoal dela. “É uma criação ficcional a partir daquilo que eu tinha vivido em relação à prisão e assassinato de Gildo. Foi a partir da necessidade de lidar com essa experiência pessoal traumática que comecei a escrever contos”, iniciou.

A professora aposentada classificou o processo de escrita como uma “terapia”. “Começou com contos que eu fui fazendo esparsamente, cheguei a fazer uns três, quatro contos entre 1976 e 80. Vendo aqueles contos e tendo a noção de que poderia ser um romance, eu trabalhei nos links para que tivesse essa continuidade. Basicamente é isso, é um romance, é uma ficção, a partir de uma experiência pessoal e com várias personagens que são inspiradas por personagens reais, com as quais eu convivi naquele meu período em Salvador”, revelou.

Já Tessa relatou que a sua experiência foi “bastante intensa”. “Eu parto de questões filosóficas e reivindico o testemunho, como uma categoria propriamente filosófica, inspirada nas filósofas Jeanne Marie Gagnebin que propõe um sentido alargado de testemunho, para além daquele proposto por Heródoto, para quem apenas aqueles que viram os fatos é que são testemunhos. A Jeanne Marie Gagnebin propõe um sentido mais alargado e diz que também os herdeiros dos que viram são testemunhas”, esclareceu ao Portal.

A pesquisadora contou que outra inspiração foi a filósofa Bell Hooks, “que é uma feminista negra, que se diz grata pelo testemunho das mulheres que, como elas, são capazes de narrar a partir da sua própria dor, teorizar a partir da dor, e assume esse tom testemunhal em vários de seus livros". "Fui inspirada também na feminista decolonial, Yuderkys Espinosa Miñoso, que sugere a possibilidade de uma metodologia feminista que leve em conta o testemunho de experiências de opressão na luta contra as opressões”, completou.

“Inspirada por essas mulheres, eu tomei a questão do testemunho da minha experiência como filha de um pai que foi assassinado sob a ditadura, antes mesmo de eu nascer, como o objeto principal deste livro. A dificuldade toda foi lidar com esses sentimentos de uma, mal se pode dizer perda, porque eu nem tive a presença dele, mas de total ausência. Então, a dificuldade foi lidar com esses meus próprios sentimentos e conseguir elaborar de maneira filosófica essas questões muito dolorosas que ainda restam para nós. Para ‘nós’ enquanto sociedade no Brasil, não apenas ‘nós’ familiares de mortos e desaparecidos políticos, por não termos feito um verdadeiro acerto de contas com o passado”, continuou.

Objetivo

A jornalista e pesquisadora baiana Mariluce Moura
A jornalista e pesquisadora baiana Mariluce Moura |  Foto: Divulgação

Segundo Mariluce Moura, quando o romance foi lançado originalmente, em 1982, a sua expectativa era de denúncia. Através de um relato ficcional e pessoal, ela “queria somar as denúncias que começavam a emergir na cena cultural brasileira”.

“Vamos lembrar que foi naquele ano, que o Fernando Gabeira tinha lançado ‘O Que É Isso, Companheiro’ e que Álvaro Caldas tinha lançado ‘Tirando o Capuz’. Então eram livros de narrativas vinculadas às consequências da ditadura sobre a vida das pessoas. Não tinha ainda naquele momento nenhuma narrativa de mulher brasileira que tivesse lançado alguma coisa do que viveu na ditadura”, afirmou.

A minha escrita não fazia nenhuma concessão a nada, ela não dialogava com perdões, com nada. Eu dizia, através da personagem Clara, que queria continuar sentindo toda a dor e todo o horror, para que aquele episódio não fosse esquecido. Então, naquele momento, quando eu lancei, era isso, era para ajudar a dar conhecimento dos horrores da ditadura, que ainda estava em curso. Mariluce Moura, escritora

Mariluce pontuou que, agora, o que a motivou a republicar foram duas teses de doutorado que tomaram o romance como tema, uma de 2016 e outra de 2023. “Eu comecei a pensar, se a academia está de fato interessada nessas narrativas, pelos estudos dela, é como se eu tivesse uma sinalização de que outros jovens poderiam ter interesse em alguma coisa a tirar da leitura desse texto”, esclareceu a escritora. Ela contou ainda que, no meio desse percurso, resolveu reeditar “A Revolta das Vísceras” e rever todos os outros textos que estão relacionados a ele, “que dão todo o contexto do que é essa narrativa ficcional”.

“Foram cometidos crimes hediondos, são crimes que não prescrevem. As mortes são de milhares de brasileiros e esse processo não está revisto. Se você não compreende o seu passado, como é que você analisa, vai para frente? Eu acho que as novas gerações precisam entender essa coisa oculta, precisam entender esse lado sempre escamoteado, no percurso deste país. Quanto mais romances, filmes e peças de teatro forem produzidas, mais será possível trazer o sentido dessa ditadura para as novas gerações. Todas as obras são bem-vindas no âmbito cultural. A cultura é algo fundamental para se criar a consciência de uma nação”, completou.

Com um objetivo semelhante ao da mãe, Tessa espera contribuir para a conscientização da sociedade brasileira. “Eu acho muito chocante que não se compreenda até hoje que essas feridas abertas da ditadura que os familiares dos mortos e desaparecidos políticos carregam não atingem apenas aos familiares, atinge toda a sociedade brasileira. O que a gente vive hoje é uma repetição de um ensaio para que a gente voltasse à ditadura. Eu digo hoje, pensando principalmente no governo Bolsonaro, e acima de tudo, a tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023. Enquanto a sociedade não tiver consciência desse passado essas coisas podem continuar se repetindo. O ataque à democracia continua acontecendo”, destacou.

Eu sou filha de militantes mas eu não atuei na militância política, eu já nasci em uma condição de órfã, com um pai assassinado. Então, na medida em que esse livro possa atingir pessoas que não viveram sob a ditadura ou que não viveram como militantes, eu espero que possamos sonhar com a construção de uma outra consciência do passado e, com isso, a elaboração de projetos de futuro, que sejam sobretudo democráticos. Tessa Moura Lacerda, escritora

Responsabilização

Sobre o cenário político brasileiro em relação à abertura de arquivos e à responsabilização dos responsáveis pelos crimes da ditadura militar, Mariluce Moura afirmou que enxerga de maneira “extremamente complicada”.

“Não se trata de remoer o passado, se trata de investigar o passado para que se torne conhecido aquilo que continua ocultado nos arquivos militares. Do ponto de vista da sociedade civil, nos cabe continuar nesta batalha. Ainda precisamos de uma série de informações e precisa ter julgamento. O que eu penso é que o cenário hoje é desfavorável, porque o governo se move num terreno delicado, muito cercado, com minoria no Congresso. Mas nós não vamos desistir, nosso papel é não desistir. Não desistir enquanto movimento social, enquanto indivíduos”, disse.

Para Tessa Moura, a situação é lamentável “porque o Brasil é o único país do Cone Sul em que nem os militares foram julgados pelos crimes de lesa humanidade que cometeram, crimes contra direitos humanos, e nem vieram a público fazer um mea culpa. Nos outros países da América Latina em que ocorreram essas ditaduras nos anos 70 e 80, em um contexto de guerra fria, ou aconteceram julgamentos ou aconteceu esse mea culpa público, e no geral, ex-torturadores não podem ocupar cargos públicos. Não é o que a gente vê no Brasil”.

Os representantes das Forças Armadas que atuaram diretamente nos crimes de desaparecimento de corpos, tortura, assassinato sob tortura, ninguém foi até hoje para o Banco dos Réus, ninguém foi julgado, então como que eles podem ser anistiados? O governo Bolsonaro extinguiu a Comissão Especial sobre Morte dos Desaparecidos Políticos e até hoje essa comissão não foi restabelecida. Então reviver o passado e relembrar o passado, não é remoer o passado. Pelo contrário, é poder conhecer o passado para estar no presente com consciência, projetando futuros democráticos, uma sociedade mais justa, mais igualitária, e principalmente democrática. Tessa Moura Lacerda, escritora

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