Cantoras trans destacam o Dia da Mulher como símbolo de resistência | A TARDE
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Cantoras trans destacam o Dia da Mulher como símbolo de resistência

Ao Portal A TARDE, Majur e A Ninfeta compartilharam suas trajetórias e suas perspectivas sobre a data

Publicado sexta-feira, 08 de março de 2024 às 07:00 h | Atualizado em 08/03/2024, 07:38 | Autor: Isabela Cardoso
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Marcado pelas conquistas e desafios enfrentados pelas mulheres cisgênero, o Dia Internacional da Mulher, comemorado nesta sexta-feira, 8, também abriu um lugar de reconhecimento da luta de mulheres trans. Mesmo dentro de um país que mais mata pessoas trans no mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a comunidade está conquistando mais espaços nos últimos anos, com mulheres na política, na TV e na música, sendo símbolo de representatividade.

A baiana Majur dos Santos Conceição, conhecida como Majur, de 28 anos, é uma das artistas que se consolidou na indústria musical. Aos cinco anos, ela começou a cantar no coral da Orquestra Sinfônica da Juventude de Salvador. Já na faculdade, em 2016, montou uma banda para cantar nas noites soteropolitanas e, desde então, continuou no caminho da música. Hoje, a artista coleciona parcerias com Liniker, Daniela Mercury, Psirico, Emicida e Pablo Vittar, além de participação em diversos festivais e eventos de grande porte.

Outra cantora baiana que se destacou foi Nathalia Araújo, conhecida como A Ninfeta, de 25 anos. Ela começou a gostar de música ainda na infância, através dos shows de talento, dança e teatro promovidos pela escola. Em 2018, a artista se lançou no estilo do pagodão baiano e disparou hits pelo estado. Hoje, ela também é atriz, modelo e estudante do Bacharelado Interdisciplinar (BI) de Artes da Universidade Federal da Bahia (UFBA), colecionando trabalhos em eventos como a Parada LGBTQIAPN+, Carnaval de Salvador e desfile no Afro Fashion Day, assim como Majur.

As duas artistas são mulheres trans pretas que têm em comum o amor pela música. Em entrevista ao Portal A TARDE, elas compartilharam suas perspectivas sobre o Dia da Mulher, suas trajetórias na indústria musical e as lutas enfrentadas durante todos esses anos.

Para Majur, o Dia da Mulher significa o reconhecimento de suas conquistas enquanto mulher trans e a afirmação da própria identidade. Segundo a cantora, a data lembra ainda sua principal referência como mulher: a mãe.

“Eu não só me reconheço enquanto mulher, como também tenho o reconhecimento da minha família, do Brasil em si, eu consegui alcançar um lugar de respeito. Engraçado que a mulheridade é algo que não é conquistado, a gente nasce mulher. Em um país que mais mata pessoas trans e que tem um preconceito como parte da vivência social, precisei conquistar essa mulheridade. Hoje eu me sinto inteira de mim mesma e não tenho dúvidas de quem eu sou. Tenho minha mãe, a minha matriarca, como a minha grande referência de mulher. Para eu ser mulher hoje, precisei ver ela lutar muito pela gente, para que eu pudesse também me ver lutando pelos meus sonhos e pelo o que eu sou”, declarou.

Para Nathalia Araújo, o Dia da Mulher reforça a resistência das mulheres trans dentro de uma sociedade que exige a validação constante do seu gênero.

“A gente precisa estar resistindo sempre, bater o pé e falar ‘eu sou mulher sim, essa é minha identidade de gênero e eu exijo respeito’. A gente tem que lutar pelo respeito, às vezes chega a ser cansativo, eu me sinto muito exausta. É a minha sobrevivência, eu preciso sobreviver nesse mundo e eu não tenho o que fazer, não tenho como mudar o que eu sou, não tenho como fingir que eu não sou isso, sendo que eu sou uma mulher trans. A maioria das pessoas que recebem um ‘feliz dia das mulheres’ são mulheres cis, porque muitas as mulheres trans sempre ficam para escanteio”, relatou.

Majur já cantou com Liniker, Daniela Mercury, Psirico, Emicida e Pablo Vittar
Majur já cantou com Liniker, Daniela Mercury, Psirico, Emicida e Pablo Vittar |  Foto: Arquivo Pessoal enviado ao A TARDE
 

As duas artistas compartilharam dificuldades durante a trajetória musical, desde transfobia até barreiras estruturais. Majur contou que sempre faltou oportunidades para se destacar e mostrar realmente o seu trabalho, mas nunca desistiu.

“Mesmo com todas as dificuldades que se tinham de ser, porque antes de ser artista, tem o ser mulher, e tem o patriarcado que desenvolve diversas ferramentas para que a gente não se desenvolva, para que a gente não avance. Mas eu burlei tudo, me sinto uma grande hackeadora desse sistema. São milhares de anos lutando por esse espaço, mas, nos últimos seis anos, a pauta da mulheridade, do feminino em si, reconhecido em diversos corpos, tem se tornado cada vez mais forte e abre espaço para pessoas como eu. Se eu estou aqui agora, é justamente porque esse espaço foi construído há muitos anos, sob muita morte, muito sangue, muita luta, mas também sob muita conquista”, pontuou.

O pagodão baiano é um estilo ocupado majoritariamente por homens e muitas vezes invisilibizam as mulheres, como afirma Nathalia. Segundo a artista, é necessário que as cantoras trans busquem um lugar de protagonismo nesse meio.

“As pessoas não valorizam o corre da mulher sozinha e independente. Eu vejo que elas consomem mais homens cantores de pagode, são mais contratados para shows, principalmente na parada LGBTQIAPN+, que era pra ser um momento nosso. A maioria das pessoas que são contratadas no pagodão são homens héteros. Então, invadir esse espaço majoritariamente masculino pra mim é revolução, é resgatar e tomar um protagonismo que é nosso. As mulheres trans precisam sair desse local de figurinha de cena e mostrar que nós podemos comandar bandas de pagode, sermos as donas”, comentou.

A cantora Nathalia Araújo, conhecida como A Ninfeta, já participou da Parada LGBTQIAPN+ e Carnaval de Salvador
A cantora Nathalia Araújo, conhecida como A Ninfeta, já participou da Parada LGBTQIAPN+ e Carnaval de Salvador |  Foto: Arquivo Pessoal enviado ao A TARDE
  

Para Nathalia, a indústria musical de Salvador precisa de mais união e apoio entre os artistas, além de mais políticas públicas.

“Em Salvador tem muita panelinha, muita falsidade, muito artista que puxa o tapete do outro, que não quer dar espaço para o outro. Empresários de festa, casas de show, você tem que estar bajulando, tem que ser amiguinho de fulano e eu acho isso um absurdo. Tem que melhorar também a questão das oportunidades, criar mais editais, Salvador também precisa ter mais aquelas políticas públicas mesmo para que os artistas independentes consigam ter espaço”, opinou.

O crescimento da comunidade LGBTQIAPN+ no meio artístico trouxe uma maior representatividade para o momento atual da sociedade, segundo Majur. No entanto, a cantora destacou que é necessário haver mudanças na constante reafirmação do gênero e da sexualidade de uma pessoa.

“O que precisa ser mudado é a gente não estar mais em espaços que antes da gente entrar diga ‘lá vem a artista LGBT’, porque o gênero e a sexualidade é algo que pertence apenas a pessoa. Acho que a gente precisa passar a conhecer as pessoas pelo seu nome, acessar por quem elas são de fato e não pelo que elas representam. Mas a gente ainda está em um momento que falamos sobre representatividade, porque ainda está presente a necessidade da representatividade, de criar um espaço de poder e um espaço político onde essas pessoas possam ser humanizadas. Mas eu sonho com um dia em que a gente não vai precisar mais falar sobre esse nome e que todas as pessoas vão ser reconhecidas como seres humanos de fato”, ressaltou.

Com toda a trajetória de luta por reconhecimento e espaço, Majur se conforta na música, um lugar que encontrou segurança para ser ela mesma. “A música representa o meu espaço de reflexão, o meu lugar seguro. É onde eu não consigo ser irreal, é onde eu não consigo mentir ou esconder absolutamente nada de ninguém. É o único lugar que eu consigo ser e totalmente eu e não me senti julgada por nada nem ninguém”, descreveu.

Compartilhando sentimentos semelhantes, Nathalia enxerga na música um espaço para expressar tudo o que sente. “Muitas das minhas músicas de pagode contam as minhas histórias, as minhas vivências, as minhas desilusões amorosas, contam coisas que eu passei, em mensagens subliminares. Algumas músicas tem sentimentos de relacionamento abusivo que já passei. Recentemente, lancei um EP por causa desse relacionamento abusivo. Eu acabei transformando a dor em música, em arte. Hoje eu não consigo viver sem a música, é o meu amor, é o meu xodó”, descreveu.

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