A ARTE DO SAGRADO
Mostra na Casa do Benin celebra o sagrado nos terreiros baianos
Exposição de Iuri Marc reúne fotografias, instalações e vivências sobre o universo do Candomblé e o orixá Xangô
Por Manoela Santos*

A partir de hoje, a Casa do Benin, no Pelourinho, recebe a exposição Ele é Xangô – Nos Terreiros do Candomblé em Salvador, do artista visual e fotógrafo Iuri Marc. A mostra, que segue em cartaz até outubro, será aberta ao público às 11h e ocupa o espaço Tata Somba e o pátio interno.
Fruto de um processo de imersão vivido entre 2020 e 2024, o trabalho de Iuri Marc transita entre a arte e a devoção. A exposição reúne 23 fotografias, duas instalações de forte carga simbólica e ações educativas que convidam o público a partilhar do universo sagrado dos terreiros de Candomblé.
As imagens e instalações nascem de uma pesquisa artística e etnográfica em diferentes casas de axé, como o Ilê Axé Ewé, tradicional terreiro Jeje-Nagô de Salvador. O olhar de Iuri se debruça sobre a presença invisível e potente do “vento” dos orixás, em especial Xangô, senhor do fogo, da justiça e do trovão.
“A exposição é uma grande oferenda. Espero que as pessoas a recebam de braços abertos. Ela é para os baianos, para a comunidade afro-brasileira, para todos que se identificam com a religião”, afirma o artista.
Durante o período da exposição, será realizada também a Oficina Folhas Sagradas, ministrada por Iuri Marc e um mais um membro mais velho de terreiro convidado.
A atividade gratuita é voltada para estudantes de escolas públicas e o público em geral interessado em vivenciar os fundamentos das folhas, banhos, cânticos e rezas. Ao final, cada participante levará para casa uma garrafinha com o próprio banho preparado durante a vivência.
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As datas e inscrições serão divulgadas pelo perfil do artista no Instagram.
Com curadoria de Marcelo Gobatto e Macauly Oliveira, Ele é Xangô se propõe como um espaço de encontro entre arte, memória e espiritualidade.
Cada fotografia, cada folha, cada som evocado carrega a sabedoria ancestral que sustenta os saberes dos povos de terreiro.
Olhar imerso e respeitoso
Segundo Iuri, suas fotografias buscam fugir de uma estética folclórica e exótica. Ao contrário, são documentos produzidos a partir da confiança e da convivência com os terreiros. “Normalmente, eu dialogo com casas de axé mais raiz, que não costumam permitir qualquer tipo de registro. Então, como eu conheço esse ambiente, já sei o momento de guardar a câmera. Existe um limite que precisa ser respeitado”.
Para o artista, fotografar no Candomblé exige mais do que técnica: exige presença, escuta e respeito. “Você está diante de um momento íntimo de cada pessoa. Imagine uma roda com cem filhos de santo e, no meio, alguém com uma câmera grande, invadindo aquele espaço. É preciso sensibilidade. Por isso o trabalho nasce de uma imersão real, eu circulo em todos os ambientes da casa, converso, crio laços. Isso não se força”.

Com o tempo, essa relação transformou a presença do artista em algo natural. “Hoje, quando chego num terreiro, muitas vezes escuto: ‘Cadê a câmera? Hoje eu tô linda, quero foto!’”, conta, rindo.
“É um sinal de que a comunidade entende o que está sendo feito. Eles sabem que é um trabalho artístico, mas também etnográfico e de preservação de memória”, observa Iuri.
A exposição
Ao adentrar a exposição, o visitante poderá apreciar seis esteiras de palha que compõem a instalação Corpo-Esteira, uma referência ao conhecido barco de filhos de santo da Mãe Simplícia de Ogum Dequissi, importante Ialorixá da Casa Oxumarê.
As esteiras – chamadas também de eni, dicissa ou esteira nagô – são muito mais que objetos rituais: são corpos vivos que acolhem, silenciam, sustentam e iniciam.
Sobre elas, os iaôs ajoelham, sonham, renascem. São testemunhas do borí, dos sacrifícios, dos ebós. São o chão sagrado onde o orí/cabeça/mutuê encontra caminho.
Compõem ainda esta instalação, alguidares com pigmentos – efum, osún e uáji – usados nos corpos dos iaôs/muzenzas/filhos de santo em processos de feitura, além de paramentas de orixás forjadas por um mestre ferreiro baiano. Esta instalação materializa a sabedoria das tecnologias ancestrais. A esteira, aqui, é linguagem e templo: liga o aiyé ao òrun, a terra ao céu.
Na sala Tata Somba, outra instalação acolhe o visitante. Em meio as fotografias, Iuri Marc expõe objetos ressignificados: uma série de moringas com elementos que as associam aos orixás.
Feitas de barro, as moringas vestidas com pinturas e tecidos, penas e cabaças, búzios e mariwô, incorporam os Òrìsàs que nos protegem e guiam: Xangô, Ogum, Iansã, Obá, Oxossi, Iemanjá, Oxum, Obaluaê e Oxalá.
Segundo o artista, a peça que carrega o maior peso simbólico é "o Iao", que apresenta Xangô como iniciado. A moringa está assentada sobre uma esteira adornada com folhas e tecidos brancos, evocando o axé e o mistério que cercam os rituais.

“Xangô é um orixá civilizatório. Em muitas casas de axé de Salvador, é ele quem ocupa a comieira, de onde o axé emana. Então não podia ser outro. Ele é Xangô”, explica Iuri.
Outro componente da mostra é a exibição de um filme de 20 minutos, que reúne depoimentos de duas importantes ialorixás de Salvador.
“O registro fala sobre cantos, rezas, fundamentos e saberes do Candomblé, funcionando como um material educativo”, afirma.
“Eu espero que as pessoas recebam essa exposição como o que ela é: uma grande oferenda”, declara Iuri.
“Ela foi pensada com muito amor, desde o primeiro dia. Que ela chegue linda no coração de todos que passarem por ali, baianos, religiosos, curiosos e todos que queiram conhecer de verdade o que é o Candomblé, para além dos preconceitos”, convida o artista baiano.
Sobre o artista
Iuri Marc (nascido em Salvador) é fotógrafo, artista visual e estudante de Artes Visuais na Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Sua trajetória na fotografia começou de maneira intuitiva, ainda como um hobby, enquanto cursava Publicidade. Mas foi com a arte que encontrou um verdadeiro ponto de virada em sua vida.
“Foi quando eu entendi o que realmente queria fazer. A arte me salvou em muitos sentidos”, afirma.
Em 2018, Iuri começou a registrar com o celular imagens da Feira de São Joaquim e de filhos de santo que ali transitavam. Mais tarde, ao apresentar esse material a um amigo na Europa, ouviu o incentivo que mudaria sua rota: “Essas fotos são lindas, você precisa fazer uma exposição”.

Assim nasceu sua primeira mostra, realizada em um café na Itália, onde apresentou 15 imagens e vendeu todas. “Ali foi o gatilho. Eu entendi: é isso que eu quero fazer”.
Ainda na Itália, deu início aos estudos formais em fotografia e, ao retornar ao Brasil, em 2021, publicou o livro AWO – Luzes e Sombras de uma Religião em Trânsito, consolidando seu interesse na interseção entre imagem, espiritualidade e ancestralidade.
Sua pesquisa cruza arte e liturgia, tratando a fotografia como gesto que preserva o axé, a oralidade e a memória dos povos de terreiro.
Em 2019, estreou a exposição Brasil Sagrado – Entre o Orum e o Aiyê e, em 2024, apresentou a primeira montagem de Ele é Xangô na Galeria Espaço Incomum, da Universidade Federal do Rio Grande (UFRG), no Rio Grande do Sul.
Hoje, Iuri se dedica integralmente ao seu fazer artístico, em especial à fotografia de Candomblé. “Quando estou fotografando dentro de um terreiro, é uma energia que me toma. Não sou eu. É uma força que atravessa, é diferente”, conta.
Com referências que transitam entre nomes como Lia Cerqueira e Márcio Vasconcelos, o artista segue construindo imagens que reverenciam o sagrado como força viva e presente.
Vale ressaltar que o projeto foi contemplado nos Editais da Política Nacional Aldir Blanc Bahia e tem apoio financeiro do Governo do Estado da Bahia, por meio da Secretaria de Cultura do Estado via PNAB, direcionada pelo Ministério da Cultura - Governo Federal.
Serviço
Exposição Ele é Xangô - Nos Terreiros do Candomblé em Salvador
Quando: A partir de hoje até outubro
Visitação: terça a sexta-feira, das 10h às 17h; sábados, das 09h às 16h
Local: Casa do Benin (Rua Pe. Agostinho Gomes, 17, Pelourinho)
Entrada gratuita
Agendamento de visitas: [email protected] ou 71 3202-7890
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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