EDUCAÇÃO
Estudantes baianos driblam dificuldades econômicas na Argentina
Taxar estudantes estangeiros em universidades também está entre as possíveis mudanças nas reformas econômicas
Por Carla Melo
Em 2015, o estudante baiano Ícaro Aian, 27 anos, havia sido aprovado em um curso de medicina no Brasil e estava a um passo de realizar o sonho de ser o primeiro médico da família. A entrave era que ele ainda estava cursando o ensino médio, e o alto custo do trâmite advocatício e judicial para que ele pudesse segurar a vaga, o distanciava ainda mais do seu objetivo.
Enquanto ainda não cursava medicina, Ícaro resolveu iniciar o curso de enfermagem, e foi um incentivo de uma professora que o fez pensar que estudar fora poderia ser uma ótima opção. Pesquisando mais sobre a possibilidade, o estudante foi atraído pelos baixos valores da mensalidade nas universidades da Argentina e pela facilidade de ingresso nas instituições, sem a necessidade de vestibular - forma popular de entrada nas universidades brasileiras.
“Pesquisando, eu vi que a Universidade de Buenos Aires, que até então era a melhor da América Latina, por quase oito anos consecutivos, eu decidi que a Argentina estava além de dentro do meu orçamento, por ser mais barato para me manter. O país me ganhou pela qualidade de vida, por ser extremamente seguro, com diversas opções de lazer gratuito, pela qualidade do ensino das faculdades, pelo incentivo à ciência e às pesquisas e por me permitir ir ao Brasil todo o final de ano para passar com a minha família”, disse o estudante.Após sair de Catu (BA), e completar cinco anos no país argentino, Ícaro viu a sua rotina mudar drasticamente. Antes da posse do atual presidente da Argentina Javier Milei, o estudante tinha aulas pela manhã e pela tarde, três dias na semana e em dois dias na semana ia para o trabalho. Isso proporcionava que ele tivesse dias na semana livres para estudar, descansar ou desenvolver outras atividades de lazer.
O bolso foi o primeiro item que começou a pesar para o baiano. O que antes ele pagava 100 pesos argentinos (R$ 0,58, em cotação atual), em uma passagem de ônibus, agora ele precisa desembolsar 550 pesos (R$ 3,18, em cotação atual) - um aumento de 448%. Para se manter no país, Icaro precisa pagar um aluguel, já que para estrangeiros, a moradia deve ser algo temporário, e isso também foi um sufoco para o estudante.
“A principal dificuldade que eu percebi, que eu comecei a ter depois da posse de Milei, foram os aumentos dos alugueis, porque teve um aumento de 235%, quase 240% de aumento. Percebi que estava mais difícil achar apartamentos ofertados na moeda do país, que é o peso argentino. Todos os apartamentos, por exemplo, que eu olhei na época, estavam precificados em dólares americanos. O que antes a gente pagava no valor de um apartamento inteiro, morando sozinho, é o custo hoje de apenas um quarto de dividir com mais duas ou três pessoas”, desabafa o estudante.
Taxar estudantes brasileiros em universidades também está entre as possíveis mudanças impostas nas reformas econômicas do presidente argentino. Além de permitir que as instituições particulares repassem um valor maior, as públicas também podem cobrar taxas para os estudantes estrangeiros. Ícaro, que antes pagava 350.000 pesos, está se redobrando para custear os 780.000 cobrados pela instituição em que estuda.
No dia 23 de abril, um milhão de pessoas saíram às ruas em diversas cidades na Argentina contra os cortes nas universidades públicas. Foi a maior manifestação registrada no governo Milei.
Segundo o Itamaraty, cerca de 20 mil brasileiros estudam medicina na Argentina. Entre os principais motivos que levaram a escolher o país para realizar este sonho seria o baixo custo na mensalidade do curso. Estimativas da Secretaria de Comunidades Brasileiras e Assuntos Consulares e Jurídicos, no Ministério das Relações Exteriores, apontam que a Argentina possuia 90.320 brasileiros no país em 2022.
Política Milei
No final de 2023, Javier Milei publicou um pacote de medidas econômicas, entre elas, um decreto que propõe uma remodelagem no sistema educacional, e permite a taxação aos estudantes estrangeiros que usufruem da gratuidade nas universidades argentinas.
A medida impacta principalmente aqueles estudantes com residência temporária, ou seja, quem opta por estudar na Argentina, mas têm a intenção de retornar aos seus países após a conclusão do curso.
O cenário, entretanto, enfrenta outro grande empecilho, tanto para os estrangeiros, quanto para os próprios argentinos: a inflação. Em abril deste ano, o Índice de Preços ao Consumidor registrou variação de 8,8%, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Censo (Indec). O cenário foi puxado pelas variações na habitação, água, eletricidade, gás e outros combustíveis (35,6%).
Apesar de ser celebrada pelo presidente argentino, os dados ainda preocupam, e muito, especialistas econômicos, que atribuem uma consequência mais severa, principalmente para as pessoas mais pobres.
“A inflação da Argentina é pontual e perigosa. Esse cenário me lembra muito o início do governo Collor, quando ele cortou custos sociais, confiscou aplicações de caderneta de poupança e outros tipos de aplicação financeira. As pessoas não tinham dinheiro. Quando você não tem dinheiro, você não compra, quando você não compra, a inflação cai. O que está acontecendo com a Argentina, apesar da inflação estar caindo, é que junto com os cortes no funcionalismo público, ele está fazendo cortes em áreas sociais e a população que já está flagelada com o aumento dos custos, tenha uma renda menor. Quando você tem uma oferta e renda menor, você não consome”, explica a professora da Fundação Escola de Sociologia e Política, Daniela Cardoso Pinto.
A economista ainda aponta que a Argentina está passando por um cenário em que rompe com o chamado ciclo virtuoso - quando a inflação diminui, proporcionando mais renda e consumo entre a população e aumentando a produção da indústria -, e passa a alimentar o ciclo vicioso - quando a inflação está alta, os gastos sociais são cortados, a renda do trabalhador diminui e não há consumo.
“O Milei candidato prometeu acabar com a hiperinflação que caracteriza em uma inflação de de três dígitos, provocando uma variação de preços, onde de dia o valor é um, de tarde, outro e de noite, outro. Isso impacta principalmente os pobres porque perde o poder aquisitivo e perde a capacidade de comprar produtos. O presidente disse que acabaria com esse cenário através da dolarização da economia, com um peso valendo U$S 1 porque os produtos ficariam mais baratos e você combateria o aumento de preços internos, com produtos mais baratos e importados. O fato é que para você fazer isso, você precisaria de reserva internacional, e a Argentina não tem, ou seja, dólares suficientes para colocar na economia. A primeira promessa não pode ser concretizada e faz com que a inflação permaneça”, continua ela.
Daniela explica ainda que a política de Milei afeta os estudantes estrangeiros, que em sua maioria, precisam sobreviver, com trabalhos ou rendas familiares.
“Estudantes muitas vezes precisam de ajuda de custo para se manter, e todas essas medidas econômicas fazem com que eles tenham poucas condições de se manter lá e terminar os seus estudos. Por outro lado, já está sendo encaminhado pelo governo Milei, um pacote que restringe acesso a estudantes estrangeiros às faculdades argentinas justamente com esse conceito preconceituoso de ter uma Argentina voltada aos argentinos. Essa medida ainda deve passar pelo Congresso da Argentina, que provavelmente deve reprovar. A popularidade de Milei está caindo devido algumas promessas que não foram cumpridas por ele”, complementa a especialista em economia internacional.
É a realidade de Guilherme Matos Nascimeto, 25, que saiu de São Paulo em 2018 em direção à Argentina para também realizar o sonho de ser médico com um baixo custo no orçamento familiar. Segundo relata o estudante, antes da chegada do Milei ao poder, a sua rotina era 'tranquila'. "Era acordar, fazer alguma atividade física, fazer as tarefas de casa, ir à faculdade e na volta para casa, estudar".
Durante o período de férias da faculdade, no Brasil, o estudante foi informado que o aluguel do apartamento em que morava subiria de R$ 2.500 para R$ 4.700. Foi o primeiro baque para Guilherme e sua família.
"Ficamos nos questionamos se esse valor realmente compensaria. As coisas do mercado estavam começando a ficar caras. Eu estava gastando mais do que eu gastava normalmente. A faculdade também tinha avisado que haveriam vários reajustes para 2024", desabafou o estudante.
Driblando dificuldades
Para sobreviver na Argentina, Ícaro, que também recebe um auxílio financeiro da família na Bahia, precisou arranjar outros trabalhos para custear a moradia e outras coisas relacionadas a sua manutenção na Argentina.
“Então, além de trabalhar com a questão do marketing de publicidade em uma empresa de trâmites e intercâmbio estudantil, eu também tenho outros trabalhos na área de marketing com empresas de fora da Argentina que me pagam em real e em dólar para conseguir uma moeda mais estável e chegar, por exemplo, no final do mês, e tentar driblar um pouco a inflação”, explica o estudante.
Guilherme precisou ser mais radical, e preferiu, assim como muitos estudantes estrangeiros que estão na Argentina, se mudar para países vizinhos como o Paraguai e a Bolívia, para finalizarem seus estudos em medicina a um custo ainda menor
"Eu descobri a opção do Paraguai com um meu amigo que veio para cá no meio do ano passado. Ele já tinha dito que era bom e mais barato que na Argentina. Segundo ele, as faculdades eram tão boa quanto no país argentino. Conversando com outro meu amigo meu, que também fazia medicina, decidimos vir para cá no começo do ano", disse Guilherme.
Apesar da turbulência na vida estudantil, o paulistano diz que agora, diferente do que estava planejado na Argentina, consegue vê o seu futuro mais próximo na área que sempre desejou atuar.
"Existe um grande estigma com a faculdade do Paraguai, um preconceito muito grande, mas quando eu cheguei aqui, eles foram sendo quebrados. Aqui se formam excelentes médicos, como em qualquer lugar do mundo, na Argentina, no Brasil, também na Bolívia. Estar aqui me renovou as energias para voltar a estudar, e quanto ao meu futuro, consigo me ver formado daqui um tempo, já que, diferente da Argentina, temos uma data para se formar. Eu estou muito feliz em poder voltar para o meu país, com o meu diploma, fazer uma revalida, e se Deus permitir, tudo vai dar certo", finaliza o estudante.
Para Daniela Cardoso, a fuga de estudantes estrangeiros para países vizinhos, diante das dificuldades de acesso à educação argentina e de se manter no país devido à hiperinflação escancara uma perda econômica ainda maior.
“Para a economia argentina há uma menor massa de consumo porque o volume de estrangeiros na Argentina, que movimentam também assim como o turismo. A Argentina não é um país barato para o estrangeiro por conta dessa inflação. A moeda se desvalorizou, mas o valor subiu muito. Antes, se o preço da desvalorização valia 100 pesos, hoje custa 1.000 pesos. A Argentina está perdendo com a saída de estudantes brasileiros uma grande quantidade de consumidores que poderiam aquecer a economia local. O país também perde trabalhadores porque esses estudantes dificilmente voltariam para o Brasil porque é um país lindo e seguro em termos de violência”, finaliza Daniela Cardoso.
Apesar dos preços da mensalidade do curso de medicina ainda serem mais baixos do que a maioria das faculdades brasileiras, o cenário é desafiador para estudantes, e também para empresas de intercâmbio, que são responsáveis por conectar estudantes estrangeiros a universidades argentinas.
Para driblar as dificuldades, estrangeiros têm optado por estudar por universidades mais distantes de Buenos Aires, onde o custo é ainda mais baixo do que as universidades mais concorridas da Argentina.
“Sentimos que houve, realmente, mais procura por universidades públicas, mais do que para particulares, mesmo que as mesmas, por mais que tenham subido de preço, ainda custam 4, 5 vezes menos que no Brasil. Tivemos mais procura pela Universidade pública de La Plata, a UNLP, que está no interior do Estado de Buenos Aires, cujo custo de vida é aproximadamente 30% mais econômico que em Buenos Aires”, explica Juliana Wisnievski da Cunha, CEO e fundadora do EducAR Intercâmbios.
Em nota, o Itamaraty informou que continua prestando assistência e serviços para os brasileiros que estão na Argentina. “O Ministério das Relações Exteriores, por meio de sua rede consular na Argentina, permanece à disposição para prestar assistência consular aos brasileiros que assim solicitarem”, disse a pasta.
O ministério não informou, entretanto, se houve aumento da demanda de serviços de brasileiros ao Itamaraty nos últimos meses.
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