EMPREGOS & NEGÓCIOS
Trabalho remoto sob vigilância: demissões no Itaú geram alerta jurídico
Especialistas advertem para falta de transparência, riscos legais e violações à proteção de dados no home office

Por Joana Lopes

O home office, consagrado durante a pandemia como alternativa para manter atividades em meio ao isolamento social, tornou-se prática comum em muitos setores. Mas, passados quase cinco anos do auge da crise sanitária, as relações de trabalho no regime remoto ainda enfrentam dilemas jurídicos que desafiam empresas, sindicatos e trabalhadores. O caso mais recente envolve o Itaú Unibanco, que dispensou cerca de mil funcionários em regime híbrido ou remoto, alegando “ociosidade digital” superior a quatro horas.
As demissões, feitas sem diálogo prévio com o sindicato, acenderam um alerta sobre três pontos centrais: a obrigatoriedade de negociação coletiva em dispensas em massa, os limites do monitoramento digital e os efeitos jurídicos do descumprimento dessas regras. Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF)fixou entendimento de que dispensas coletivas exigem diálogo prévio com o sindicato, embora não dependam de autorização formal. O objetivo é mitigar os impactos sociais das demissões e buscar alternativas de manutenção dos empregos.
Ao descumprir essa exigência, o Itaú incorre em procedimento irregular, ainda que isso não gere automaticamente indenização aos trabalhadores. “Não comunicar o sindicato não gera, por si só, direito à indenização individual, mas abre espaço para ações civis públicas e desgaste reputacional”, explica a advogada trabalhista Rithelly Eunilia Cabral.
Para ela, a ausência de negociação pode privar os empregados de benefícios adicionais, como extensão de plano de saúde, aviso prévio ampliado ou programas de recolocação.
Outro ponto controverso foi o critério usado para justificar as dispensas: métricas de produtividade baseadas no tempo de atividade em sistemas corporativos. Trabalhadores alegam não ter sido informados sobre a intensidade do monitoramento e tampouco tiveram chance de defesa.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) prevê o teletrabalhonos artigos 75-Aa 75-E, atualizados pela Lei 14.442/2022, e permite tanto o controle por jornada quanto por produtividade. Já a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) impõe limites claros: qualquer coleta deve ser necessária, proporcional e transparente.
“O empregador pode monitorar, mas precisa avisar o trabalhador sobre o que será acompanhado, como metas e métricas de produtividade. Sem essa clareza, o risco de judicialização é grande”, aponta a advogada Jéssica Coimbra.
Política de privacidade
Ela lembra que a legislação trabalhista prevê a demissão sem justa causa, mas, quando o monitoramento é usado para justificar justa causa por desídia, a empresa deve apresentar provas robustas ao juiz.
Para especialistas, a diferença entre um monitoramento legítimo e uma prática abusiva está na transparência e na proporcionalidade. “É lícito controlar login/logout em sistemas corporativos, uso de e-mails e tempo de conexão, desde que haja previsão contratual e política de privacidade clara. Mas é abusivo coletar dados pessoais, exigir câmera ligada continuamente ou rastrear cliques sem aviso prévio”, explica Giovanni Pilosio, professor de Direito do Trabalho.
Ele destaca que o problema não é a tecnologia em si, mas a forma como ela é utilizada. “O tratamento de dados precisa respeitar os princípios da LGPD, como finalidade, necessidade e transparência. Sem isso, abre-se espaço para indenizações e sanções da Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD)”.
Se o monitoramento for considerado irregular, o trabalhador pode pleitear indenização por danos morais e materiais. A reintegração ao emprego, porém, é medida excepcional e só ocorre em casos de estabilidade legal (como gestantes e dirigentes sindicais) ou quando há discriminação comprovada.
“A consequência mais comum é a indenizatória. O Judiciário pode reconhecer que houve invasão de privacidade ou violação de dados pessoais e condenar a empresa a reparar o dano”, explica o advogado Arcênio Rodrigues da Silva.
Segundo ele, uma política interna clara, assinada pelo colaborador, reduz significativamente os riscos de litígio.
LGPD fortalece trabalhadores diante de demissões automatizadas
A LGPD se tornou uma aliada dos trabalhadores em disputas trabalhistas. Pela lei, o empregado tem direito de solicitar acesso aos dados que embasaram sua demissão e pedir revisão de decisões automatizadas. Caso
identifique coleta excessiva ou falta de transparência, pode contestar a medida na Justiça ou acionar a ANPD.
“O trabalhador pode exigir que a empresa apresente logs, relatórios de impacto e critérios usados para fundamentar a decisão. Isso fortalece a posição em juízo e pode até gerar correção das práticas corporativas”, observa o professor de Direito do Trabalho, Giovanni Pilosio.
Embora a CLT já contemple o teletrabalho e a LGPD regule o uso de dados pessoais, especialistas concordam que a legislação ainda não está totalmente adaptada à nova realidade. Questões como métricas algorítmicas de produtividade, keylogging (espionagem) e vigilância em massa carecem de regulamentação específica.
“Estamos diante de um cenário de transição. O dia a dia evolui mais rápido que a legislação, e muitas respostas têm vindo da jurisprudência. Até que haja regras mais detalhadas, empresas devem agir com cautela, adotar políticas transparentes e respeitar a boa-fé contratual”, avalia Adriano Palmeira, presidente da Associação Baiana de Advogados Trabalhistas (Abat).
O caso Itaú mostra que o descumprimento dessas balizas pode ter um preço alto. Além de ações judiciais, a empresa enfrenta desgaste de imagem e riscos de sanções administrativas.
O episódio serve de alerta para o setor privado: economias imediatas obtidas com cortes de pessoal podem se transformar em custos elevados no médio prazo, caso regras trabalhistas e de proteção de dados não sejam respeitadas. “O teletrabalho é uma realidade consolidada, mas ainda em construção do ponto de vista jurídico. Empresas e trabalhadores precisam aprender a conviver com mais transparência e diálogo para evitar que a flexibilidade se transforme emconflito”, afirma a advogada Rithelly Cabral.
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