AJUSTE
Bahia vai investir menos? Entenda os impactos do Fair Play Financeiro
Especialista explica os riscos e ajustes que o Bahia terá de fazer para se manter dentro das regras

Por Lucas Vilas Boas e Téo Mazzoni

O primeiro modelo de Fair Play Financeiro finalmente chegou ao futebol brasileiro através do Sistema de Sustentabilidade Financeira (SSF), apresentado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) na última quarta-feira, 26, prometendo ajustar a rota dos clubes de acordo com as regras inspiradas em padrões internacionais.
Protagonista em janelas de transferências desde que vendeu 90% da sua Sociedade Anônima do Futebol (SAF) para o City Football Group, o Bahia é uma das equipes que precisará se redirecionar em direção à maior estabilidade financeira definida pelo SSF.
A maneira que o clube encara suas economias, com o nível de investimento em elenco, e suas consequências, retratadas pelo tamanho do déficit operacional nos primeiros anos de projeto, é o principal causador da "zona de atenção", o real estado do Bahia em relação às sanções caso o Sistema fosse aplicado desde o início da SAF, de acordo com Renato Gueudeville, Especialista em Finanças Corporativas e Conselheiro Consultivo.
Em entrevista ao Portal A TARDE, Renato alertou o perigo, mas destacou um "movimento importante" realizado pelo Tricolor que "contaria a favor em qualquer análise financeira".
"Se a régua atual fosse aplicada desde o início da SAF, eu diria que o Bahia certamente estaria em “zona de atenção”, principalmente por dois pontos: o nível de investimento em elenco e o tamanho do déficit operacional nos primeiros anos de projeto. Por outro lado, a SAF também vem fazendo um movimento importante de limpeza de passivos antigos e de profissionalização, o que contaria a favor em qualquer processo de análise: dívidas antigas foram renegociadas, questões trabalhistas foram equacionadas e existe um controlador com capacidade de aporte. Seria um cenário de “monitoramento de perto” pela métrica do Sistema de Sustentabilidade Financeira", comentou o Especialista.

A venda bem efetuada — e não desesperada — dos ativos é a forma mais rápida de crescer economicamente e impedir futuras "zonas de atenção", ou coisa pior. Questionado se o Bahia pode ter que vender jogadores precocemente em uma possível situação de alerta, Renato Gueudeville afirmou que o clube não será "obrigado", mas, se o custo de elenco continuar muito alto em relação à receita recorrente, o mercado de transferências deverá ser utilizado com mais disciplina.
Isso significa "comprar melhor, desenvolver ativos e vender em bons momentos".
"Não é que o clube “seja obrigado” a vender jogadores cedo, mas o fair play empurra todos os clubes, inclusive o Bahia, para uma mentalidade em que esse tipo de receita (não recorrente) passa a ser ainda mais uma linha muito relevante de modelo de negócios. Não há forma mais rápida de crescer economicamente do que venda de direitos econômicos desde que o clube ou SAF estejam estruturados na sua divisão de base, o que é o caso do Bahia", iniciou Renato.
"Se o custo de elenco continuar muito alto em relação à receita recorrente, a consequência natural é que o Bahia tenha de usar o mercado de jogadores com mais disciplina: comprar melhor, desenvolver ativos e vender em bons momentos para financiar parte do próprio projeto esportivo", completou.
Vender bem, não vender desesperado, essa é a diferença
As contratações de Kauê Furquim e David Martins, que se encaixam na "filosofia" do Grupo City em adquirir jovens e desenvolvê-los, deverão ser mais frequentes segundo o especialista.
"Casos como o de Kauê Furquim e David Martins, adquiridos junto ao Corinthians por R$ 14 milhões e ao América-MG por R$ 12 milhões, respectivamente, deverão ser mais frequentes. Esse modelo (comprar barato, desenvolver dentro de um ambiente competitivo e vender no auge) gera ROI (retorno sobre investimento) positivo, sustenta a folha, e cria uma dinâmica sustentável entre futebol e finanças", completou.
Em suma, o Fair Play Financeiro promete fazer do Bahia um clube "ainda mais preso a um plano de médio prazo". As regras não impedem a ambição do Tricolor, e sim apenas o redireciona para "dentro de um trilho bem definido".

"O Fair Play Financeiro muda a lógica da tomada de decisão. O Bahia passa a ter de organizar sua gestão olhando, o tempo todo, para alguns indicadores-chave: quanto gasta com elenco em relação à receita, quanto se endivida no curto prazo, qual o tamanho do déficit operacional e como ele é coberto.
"Na prática, isso significa um Bahia cada vez mais assertivo e mais preso a um plano de médio prazo: folha, contratações, vendas, uso de aportes do controlador e até estruturação de dívidas passam a se relacionar com um limite regulatório. O clube continua podendo ser ambicioso, mas dentro de um trilho bem definido", disse.
Mas há, sim, áreas em que o Bahia vai precisar ajustar a rota.
"Especialmente em três frentes: reduzir gradualmente a relação custo de elenco/receita, tornar mais clara a relação entre dívida com o controlador e aportes de capital e planejar o caminho para sair de um ciclo de déficit relevante para um equilíbrio operacional mais próximo do que o regulador vai exigir. É justamente por isso que existe um período de adaptação dos clubes e SAFs ao modelo proposto", completou.
Veja outros trechos da entrevista
Com o limite de que a folha e os custos de elenco não ultrapassem 70% das receitas (no longo prazo), o Bahia terá de revisar contratos e projeções salariais?
"Sim, isso é inevitável de alguma forma. Hoje o Bahia opera em um momento de investimento forte, típico de início de projeto, o que tende a pressionar esse indicador. Com o tempo, o clube terá de ajustar a curva: ou cresce receita numa velocidade muito grande, ou reduz o peso relativo da folha. O ideal é fazer os 2 movimentos em paralelo".
"Isso significa ser mais criterioso em renovações, ter política salarial clara, limitar apostas caras e calibrar a duração dos contratos. O fair play não impede o clube de ter jogadores caros; ele impede que a soma de todas as decisões coloque o orçamento em risco".
As regras de endividamento de curto prazo (dívida líquida menor que 45% das receitas) podem afetar empréstimos, parcelamentos ou dívidas pendentes do Bahia?
"No curto prazo, o Bahia não parece ter um problema explosivo de dívidas de curtíssimo prazo em relação à receita, justamente porque alongou passivos e tem suporte do grupo controlador. Mas o fair play vai olhar para a qualidade dessa estrutura, não só para o número seco".
"Isso pode influenciar, sim, como o Bahia contrata novos empréstimos, como organiza o fluxo de pagamento a fornecedores e agentes. A lógica passa a ser: mais previsibilidade de caixa e mais coerência entre endividamento, receita e capacidade real de pagamento".
"No cenário atual, o controlador do Bahia tem mútuos (empréstimos) dentro da empresa e que ajudam no investimento inicial e financiamento da operação. É provável que isso seja convertido em aporte (como Capital Social) o que levará a uma recomposição societária na SAF".
A necessidade de superávit operacional anual ou cobertura de déficit com aportes define uma nova lógica de planejamento: o Bahia pode ter que priorizar equilíbrio financeiro em detrimento de contratações ousadas?
"O racional é claro: os clubes e SAFs precisam entender que não dá mais para “queimar caixa” indefinidamente apostando que o resultado esportivo resolve tudo depois. Se houver déficit, ele terá que ser coberto de forma transparente por aportes de capital, e isso será monitorado. O desafio ficará muito grande nas associações e que não contam com investidores para aportar".
"Isso não significa abandonar ambição esportiva, mas muda a ordem das perguntas. Em vez de “dá para contratar e depois a gente vê?”, a pergunta passa a ser “cabe no plano, no fluxo de caixa e na régua do regulador?”. Em alguns momentos, o Bahia vai, sim, ter de dizer “não” para contratações mais impactantes porque a conta regulatória não fecha".
"Para outros clubes em processo de reestruturação financeira esse cenário será ainda mais desafiador. Serão vários “pratos para equilibrar” com os mais diversos atores do sistema e compor o alinhamento de expectativas com aquele que cobra sempre um time competitivo: o seu torcedor".
Como o controle de dívidas entre clubes (transações registradas, forma de pagamento detalhada) vai impactar as negociações do Bahia no mercado de transferências?
"O efeito principal é trazer saudabilidade ao ecossistema. Hoje há um risco sistêmico com a explosão do endividamento e das altas taxas de carregamento dessas dívidas. Os clubes terão de registrar com mais detalhe valores, prazos, formas de pagamento, comissões, cláusulas adicionais e tudo isso passa a ser visível para o regulador e comparável entre clubes".
"Na prática, isso tende a profissionalizar ainda mais o departamento de futebol: contratos mais padronizados, menos acordos “informais”, menos risco de surpresas futuras. Para um clube com investidor global como o Bahia, isso pode virar até vantagem competitiva, porque a cultura de compliance e transparência já eram consolidadas antes mesmo de virar SAF".
A obrigatoriedade de registrar contratos e transferências no sistema da CBF antes da publicação no BID muda a forma como o Bahia estrutura contratos, pagamentos e prazos?
"Muda o timing e a disciplina do processo. O Bahia terá que ter seus contratos e estruturas de pagamento redondos antes da inscrição, sem aquela cultura de “acerta depois”. Isso pressiona o clube a organizar jurídico, finanças e futebol na mesma mesa desde o início das negociações".
"Para quem já vem de uma lógica de SAF e de grupo multinacional, isso é mais ajuste de procedimento do que revolução. Mas, sim, exige mais planejamento: menos correria em fechamento de janela e mais pipeline organizado de negociações".
A nova agência reguladora (ANRESF) e a possibilidade de sanções — desde multa e advertência até perda de pontos — podem alterar a gestão de riscos do Bahia nos próximos anos?
"Esse será um impacto geral e o futuro vai responder essa pergunta, pois, no Brasil, a regulação é forte até encontrar o primeiro interesse. Quando a consequência de um erro de gestão deixa de ser só “apertar o caixa” e passa a envolver perda de pontos, restrição de registro de atletas ou até rebaixamento indireto, o risco deixa de ser apenas financeiro e passa a ser esportivo. Esse será o grande teste da agência reguladora".
"No caso do Bahia e demais clubes, isso obriga a tratar compliance financeiro e regulatório como tema de diretoria, não de backoffice. Governança, Conselho, CFO e Executivo de futebol terão de olhar o mesmo painel de riscos".
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