CRÔNICA
A escrita precisa de pele — e tesão também
Literatura, Loucura e Libido: um texto com a bunda de fora
Por Clara Cerqueira*

Quando algo que leio me afeta, começo a caminhar – pelo quarto, pela sala, pela cozinha, olho pela janela, abro a geladeira – ando em círculos ou me deixo moldar pela forma dos cômodos, seus vãos e seus cantos. Observo as formigas em seu caminhar coletivo, subindo e descendo as paredes sem parecer notar a gravidade. Subo eu mesma as paredes, esqueço delas, entro em estado de excitação.
Às vezes, tiro peças de roupa, quero me despir do velho e abrir espaço para o novo? Talvez. Talvez seja apenas o tesão tomando conta e o tesão precisa de pele, a escrita precisa de pele.
Meu companheiro me assiste com um misto de confusão e encantamento e quase posso ouvir a pergunta se formando em seu íntimo: o que essa mulher quer com a bunda de fora? Ele sabe que em breve ouvirá o ruído do teclado. Está tudo bem.
Não que minhas próprias manias não me causem um certo espanto. Às vezes me pergunto se sou louca, às vezes tenho certeza, mas me sinto menos só quando leio Hélène Cixous, sempre foi assim. Em nosso primeiro encontro, disse a minha orientadora que Cixous era meio doida, ela me disse que eram palavras minhas, não dela. Justo, mas fico me perguntando qual o problema com a loucura.
Hélène Cixous conta que, certa feita, perguntou a Lacan se ela era doida, ele disse que sim, ela não gostou. Mais uma vez, qual o problema com a loucura? Por acaso sentir que a própria identidade está fragmentada e distribuída em vários eus é coisa de gente sã?
Quem são eu? Hélène se pergunta e eu, pesquisadora de sua obra, faço coro.
A multiplicação do eu me move, me comove, é uma parte de mim que nunca consegui nomear, mas ela sim. Um sujeito, ela diz, é ao mesmo tempo mil pessoas – aquelas que fomos, que somos, que seremos e que não seremos. O sujeito é uma jornada através de si e de outros, combinações instáveis, intercâmbios, amores, línguas, fluidos, sexos. Como não sentir tesão?
Subo pelas paredes, tiro peças de roupa, me masturbo. Mas a masturbação não pode ser o fim, é preciso escrever, escrever sobre ela, sobre mim, sobre nós, escrever sobre a escrita. Preciso me planejar, me aproximar e me apropriar de um vocabulário específico, estabelecer critérios, definir um corpus, selecionar temas e procedimentos e, além de tudo isso, encontrar uma voz – a minha voz.
Um dia, ouvi falar que outra escritora que admiro escrevia, trabalhava, comia e dormia – em suma, fazia tudo – na cama. Achei corajoso o fato de admitir que também comia ali, uma vez que a maioria das pessoas deve sentir nojo disso. No que me diz respeito, achei a ideia libertadora e passei a praticá-la. Não a parte da comida, eu já comia pipoca ou guloseimas em minha cama assistindo filme (embora prefira fazer minhas refeições à mesa, olhando para a cara de meu respectivo companheiro que, por sua vez, olha para a tela de seu celular), mas a da escrita.
É como se a cama me desse o aconchego e o conforto que preciso para escrever um texto pessoal e íntimo, mesmo que em registro impessoal – a famosa terceira pessoa da teoria acadêmica. Agora mesmo, escrevo esta crônica em minha cama, embolada aos meus travesseiros e lençóis, pensando que esqueci de mencionar que a cama também é o lugar do sexo e do prazer.
O sexo, que como a leitura, é uma via de aproximação, de contato, de fricção – a ponte para o outro e para o novo, ato que nos desfaz, refaz e nos transforma em texto. A escrita que toma corpo, tornando-se prazer e gozo.
*Escritora
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