MUITO
Arte no bar? O projeto que leva artistas e ateliês aos botecos de Salvador
Com um ano de história, Circuito de Arte em Boteco transforma botecos do 2 de Julho em espaços de criação
Por Priscila Miraz*

No dia 12 de abril passado o CAB – Circuito de Arte em Boteco completou um ano. Novamente as ruas em torno do Largo 2 de Julho, corpo antigo da cidade, atravessado por histórias centenárias, arquivo das memórias registradas e das que pairam nas vozes e nos gestos dos que vivem ali seu dia a dia, compartilharam com artistas e visitantes a experiência do encontro com a produção contemporânea e diversa da cena artística de Salvador.
Milena Ferreira e Busca, artistas visuais e moradores do bairro, juntos conceberam e produzem esse encontro em que artistas e suas produções em processo, os donos e trabalhadores dos bares e seus frequentadores, os moradores e visitantes interagem tendo a arte como ponto de contato de suas trocas.
Por ocasião do primeiro CAB, escrevemos aqui para essa coluna, destacando, a partir da conversa com Milena e Busca, o que os motivou a criar o evento naquele momento. Para os artistas, uma questão se sobressaía e incomodava: a falta de espaços coletivos de trabalho, ateliês compartilhados que pudessem ser abertos à visitação gerando proximidade entre o fazer artístico e o público, quebrando com o distanciamento dos espaços expositivos formais.
A ideia de um circuito surgiu, mas onde realizá-lo? Olhando ao redor, o que tinham era um bairro cultural, conhecido como centro boêmio da cidade, com muito botecos frequentados por moradores e visitantes. O boteco foi incorporado ao processo artístico, ao inacabado, ao ainda em definição pelos artistas, outra questão presente desde o primeiro CAB como ponto importante do encontro.
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Dessa incorporação entre boteco, lugar de conversa descontraída e processo artístico, momento de atenção aos caminhos possíveis que a obra pode tomar, se abre um espaço de deslocamento para a conversa, a interação, para uma informalidade que aproxima e torna arte e o artista próximos de um público muito diverso, de vários lugares da cidade, de idades e interesses diferentes.
Depois de três edições voltei a conversar com Milena e Busca sobre o CAB e a cena artística de Salvador, sobre a concepção do projeto e as necessidades que entendiam que ele poderia acessar: “Nós temos alguns pontos que são importantes para a gente. O CAB surge de uma demanda real: a falta de ateliês. A gente observava experiências de ateliê aberto no Sudeste, principalmente no eixo Rio-São Paulo, e pensava como isso é difícil de acontecer aqui, porque boa parte dos artistas não tem ateliê – trabalham em casa ou usam espaços da universidade. Essa experiência do ateliê aberto, do diálogo direto, da vivência com a arte, sempre nos pareceu muito interessante”.
Além desses pontos levantados, existe também um posicionamento crítico dos artistas com relação aos espaços institucionalizados das artes, principalmente no que se refere ao acesso a eles: “Porque, mesmo os museus sendo, na maioria das vezes, gratuitos, não é todo mundo que entra neles, que frequenta, que convive com esse ambiente. E isso incomoda muito a gente, porque nós não viemos de um recorte social que frequentava museus. A nossa aproximação com esses espaços veio através da arte, da universidade, da vontade de ver mais. Mas somos muito contra essa elitização das artes visuais, essa sacralização. O CAB também é uma forma de quebrar isso, tirar a arte desse lugar sagrado, cheio de protocolos. É uma arte próxima, sem segurança, sem porta, sem entrada marcada. Sem esse lugar que, de alguma forma, pode constranger o acesso”.
A dessacralização do espaço da arte na cidade, no caso do CAB, tem então uma relação direta, próxima, íntima com o bairro, seus moradores. Quando perguntados sobre como a movimentação promovida pelo CAB é recebida por eles no bairro, já sendo possível entender melhor essa questão por já haver acontecido três edições, responderam que é de expectativa.
“As pessoas já sabem o que vai acontecer, então a interação se intensifica. Essa relação está mais próxima e mais fluida. Acreditamos que a periodicidade do evento também ajudou nesse processo. Ao fixarmos datas mais claras, a cada edição o público cria uma expectativa e se prepara para o que está por vir. Existe agora uma ‘espera’ pelo CAB, o que fortalece a conexão com o bairro. Para nós, é importante que o CAB se torne um evento calendarizado, algo que as pessoas esperam a cada novo ciclo. Isso ajuda a consolidar ainda mais o movimento dentro do bairro e também com a produção artística local”.
Estar na rua, caminhar, criar seu próprio circuito ou seguir o que é proposto pelo mapa que é disponibilizado pelo evento são formas de o público estar em relação com o CAB, ir de bar em bar, conversar com os artistas e com outros visitantes que estão por ali também, sentar, beber, comer, voltar a caminhar.
São várias e pessoais as formas de estabelecer seu trajeto no CAB: “Dentro dessa configuração, o público se torna ativo: ele não é apenas espectador, mas um ente que se envolve fisicamente, caminhando, explorando e interagindo com as obras e com os artistas. Essa aproximação direta permite um contato mais imediato com as obras, tocando nelas, experimentando a arte de forma mais concreta. Desde a primeira edição, a gente pensou no CAB como um momento de fazer o público se sentir parte do processo, em que o ato de caminhar entre os bares, de encontrar os artistas e as obras, fosse um movimento que transformasse o próprio corpo do espectador, criando um gesto ativo de apreciação da arte”.
Outra questão importante é a relação dos organizadores e artistas com os bares que abrem suas portas para receber o evento. Milena e Busca dizem que é uma relação de ajuda mútua, de respeito e entendimento da realidade de cada um, já que não existe uma equipe que vá cuidar exclusivamente dos artistas. Todos se ajudam criando conexões que fortalecem o evento. Alguns bares compraram obras dos artistas e artistas já doaram obras para os bares.
Em relação à seleção dos artistas participantes, cada uma das três edições teve necessidades distintas, por isso, formas de seleção diferentes. No caso da primeira, a curadoria foi feita pelos próprios realizadores, que convidaram diretamente os artistas com os quais já tinham vínculo, já que o CAB era uma novidade, “um grande teste”.
Já para a segunda edição foi feita uma chamada aberta e a curadoria realizada por uma banca externa composta por Lanussi Pasqualli, gestora do espaço Galeria Ativa Atelier Livre, Paola Barreto, professora de Artes da Universidade Federal da Bahia, e Chancko Karann, artista que havia participado da edição anterior.
Já para a terceira edição, data de comemoração de um ano do evento, Milena e Busca decidiram ampliar o alcance da curadoria, abrindo para que cada um dos artistas da segunda edição convidassem um novo artista de maneira livre, buscando assim alcançar outras gerações, diversificar idades, interesses e propostas.
Já no que se refere às futuras edições com chamadas abertas, a ideia dos artistas é manter a estrutura de curadoria com três instâncias complementares: um artista da edição anterior, um gestor de espaço independente e alguém da academia. “Acreditamos que esse tripé é essencial para garantir uma curadoria que tenha uma visão ampla e diversificada da arte”.
As propostas da edição de aniversário foram diversas, desde o jogo proposto por Padmateo, artista desaparecida que deu ao público o lugar de autoria de seu retrato, que poderia ser feito nos cartazes de desaparecida que estavam disponíveis em uma mesa com as regras para participar, invertendo os lugares de artista e de público; a distribuição de folhinhas, calendários de parede com as fotografias de Caliban, em que corpos negros aparecem como imagens divinas; a apresentação das fotografias de rua em formato 3X4 dispostas em cartazes de promoção de mercados, de Gustavo Araújo; o altar para Omolu de Cristian Dessa, que fotografou várias festas para o orixá em Salvador.
Além deles participaram ainda Aura, Hannah Pfeifer, Heitor Gabriel, Hilário Zeferino, Junaica Nunes, Kelner Atikum Pankará, Luísa Maciel, Marcos Vinicius, Marina Melo, Mario Vasconcelos, Mirella Ferreira, Rask, Vico, Vitu, Yohanna Marie, Yudi Vitorio, e Victor Brasileiro, com uma performance de projeção sonora no encerramento do evento. Esperamos a quarta edição no segundo semestre desse ano.
*Doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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