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As cinquentonas

Publicado terça-feira, 10 de fevereiro de 2015 às 13:13 h | Atualizado em 12/02/2015, 15:41 | Autor: Ronaldo Jacobina
Muquiranas5
Muquiranas5 -

Com a ajuda de uma esponja, ele espalha a base no rosto para deixá-lo uniforme e pronto para receber a maquiagem. Primeiro, a sombra azul cintilante nas pálpebras; depois, o blush avermelhado para ressaltar as maçãs do rosto. Os cílios, postiços, claro, ganham ainda mais destaque com leves pinceladas de rímel. Para arrematar, o batom rosa-carmim nos lábios. Confere o resultado no espelho e sorri satisfeito.

Hora de ajustar a peruca e colocar o laço na cabeça. Levanta uma das pernas peludas e a veste com uma meia arrastão. Faz o mesmo com a outra. Ajusta a minissaia na cintura para deixá-la o mais curta possível  e ajeita o bustiê no corpo musculoso. Retira da bolsa brincos,  pulseiras e colares. Muitos colares. Dá aquela última olhadinha no espelho e se perde na avenida com seu indefectível bicho de pelúcia a tiracolo.

A cena descrita acima tem como protagonista o policial militar Bruno dos Santos Costa, 32, que ilustra a nossa capa hoje e que integra o exército de homens travestidos do bloco As Muquiranas. Mas bem poderia ser qualquer um dos demais integrantes da entidade, que, logo mais, à tarde, participará do pré-Carnaval, na Barra. No sábado (14), o capricho do PM e dos cerca de seis mil outros foliões que seguem o bloco será ainda maior. "É a nossa estreia na avenida em 2015, celebrando uma data especial", diz o decorador Francisco Pedro Ribeiro, 67, que, pela 39ª vez, ininterruptas, vai incorporar uma das irreverentes "meninas" do bloco de travestidos que, este ano, entra para a galeria dos cinquentões. Nos últimos carnavais, Chicão, como é conhecido, tem contado com a ajuda da filha, a publicitária Daniele Ribeiro, 28, na produção. "Ela hoje gosta de ajudar a me montar, mas antes eu fazia sozinho", diz. E que produção! "Não gosto de vestir só a fantasia do bloco, gosto de incrementar, de criar acessórios para compor o visual".

Personagens

Ao longo deste tempo, ele já incorporou gueixa, paquita e as personagens Emília (Sítio do Pica-Pau Amarelo), Xuxa, Carla Perez, She-Ra e até a Barbie, só para ficar nessas. Para cada uma criou um acessório ou uma alegoria diferente. "Quando a fantasia foi de Cleópatra, mandei confeccionar uma cobra de dois metros".
Este ano, Chicão se prepara para reviver uma baiana na avenida, tema repetente, mas que foi o escolhido pelos associados para celebrar o cinquentenário. O acessório da vez será um tabuleiro com acarajés, abarás e fitas do Senhor do Bonfim, que distribuirá entre os integrantes do bloco e o público.

Assim como a maioria dos companheiros de folia, Chicão capricha não só no visual como nos trejeitos femininos para enfrentar as cerca de seis horas de desfile. Rua acima, rua abaixo. Por onde passam, as "meninas" atraem olhares, provocam gargalhadas e espalham alegria. "Puro êxtase", anima-se Bruno. Vez por outra, exageram. Ora nas investidas contra as mulheres, ora contra os rapazes. "Só de brincadeira", garantem. 

Algumas de mau gosto. Como a de apertar o gatilho das pistolas de água, brinquedo que se popularizou entre os sócios mais jovens nos últimos anos e que nem sempre têm sido bem aceito pelo público, especialmente o feminino. Por motivos óbvios, se é que me entendem. As reações negativas impulsionaram uma campanha interna, aprovada pela maioria dos associados, para banir seu uso na avenida. Este ano, juram de pés juntos, a pistola será definitivamente abandonada. 

Grande parte desse exército nutre pelo bloco um amor quase incondicional. A maioria sabe de cor e salteado o tema de cada uma das fantasias adotadas. Ano a ano. Chicão guarda todas as 39 que usou. Cada uma traz lembranças, algumas inconfessáveis. Seu acervo tem mais de 100 camisetas, bonés, adesivos e alegorias com a marca da entidade, que para ele são como troféus. Troféu, por sinal, ele também tem. Ganhou dos donos do bloco, Luciano, 45, Raimundo (Nenê), 52, e Washington Paganelli, 56, quando completou 30 anos como sócio. "Eles anunciaram meu nome do alto do trio e me fizeram essa linda homenagem", conta um emocionado Chicão.

Essa deferência é uma das marcas da agremiação desde os tempos dos seus criadores, o casal Isa e Lindolfo (o Charita), pais dos atuais proprietários. Os irmãos assumiram a direção das Muquiranas após a morte dos dois. Herdaram e preservaram os valores do passado. "Somos um dos únicos blocos que mantêm uma sede aberta aos associados durante todo o ano. Isso nos torna próximos deles, que são a razão de o bloco existir", gaba-se Luciano.

Memórias

A banda de sopro que puxava o bloco nos tempos de seu Charita e dona Isa há muito ficou para trás. Com a modernização da indústria do Carnaval, As Muquiranas se profissionalizou. Mas, ao contrário de outros blocos contemporâneos, seguiu fiel às suas tradições. "Não participamos de nenhuma central de vendas. As fantasias são vendidas unicamente na nossa sede, no Campo Grande", diz Washington. O preço, para os três dias, varia de R$ 740, para os sócios antigos, a R$ 790, para os novatos. Para se tornar uma muquirana, o cidadão tem que ser apresentado por um sócio, que assina um termo de responsabilidade sobre o novo membro que está trazendo.

Como nos velhos tempos, os sócios costumam comprar os carnês, logo após o Carnaval, para ir pagando suavemente, ao longo do ano. Essa é a forma que a direção tem de manter o vínculo com o associado. E consegue. Raimundo (Nenê) é capaz de citar nome por nome dos sócios. Especialmente dos mais antigos. "Não vendemos mais de uma fantasia para nenhum sócio. O pretendente a muquirana tem que vir aqui e se associar",  explica.

Ditadura

Charita teve a ideia de criar o bloco no caminho de volta para casa, depois de bater um baba com os amigos. Queria uma entidade que homenageasse as mulheres, e daí surgiu a ideia de adotar os trajes femininos, como era costume na época entre os marmanjos. Isa, sua mulher, foi uma das maiores entusiastas. Era ela que costurava as fantasias, feitas sob medida.

Naqueles tempos eram cerca de 150. Hoje, são feitas em grande escala e as medidas variam de P, M, G, GG, XG e Jesus. Esta última, segundo Luciano, é o maior tamanho disponível e foi apelidada assim pelos próprios foliões numa referência a Jesus Sangalo, irmão de Ivete Sangalo. "Eu quero uma Jesus", costumam pedir os associados até hoje. "E o pior é que Jesus nem gordo é mais. Mas pegou", brinca Luciano. 

As Muquiranas surgiram no início da ditadura militar. A irreverência dos homens vestidos de mulher chamou a atenção dos militares. Espiavam de longe. Mas a política passava ao largo dali. "Só nos interessava a diversão", diz Washington, o primogênito do fundador, que, desde pequeno, acompanhava os pais no circuito. A mãe, sempre parceira, dava suporte aos foliões e aos músicos da banda de sopro, do alto do carro de apoio.

Aos poucos, os militares começaram a se achegar. Hoje, centenas deles desfilam, alguns anonimamente, ao ritmo do pagode das bandas Psirico, Harmonia do Samba e do cantor Léo Santana. "Não abrem mão", diz Luciano. O gênero musical (se o de fato)  não é a única exigência dos participativos foliões. A fantasia também tem que ser aprovada por eles e apresentada um mês antes do desfile. "Eles querem fazer a produção da fantasia, escolher os acessórios", diz Nenê.

Tanto cuidado não lhes tira a masculinidade. Pelo menos é o que garante Rudelmara Ferreira Sacramento, casada há 33 anos com um dos mais fervorosos foliões, o funcionário público Plínio Atanázio, 61. "Ao contrário, eles aprontam muito. Ele já me deu muito trabalho, sumia no bloco, não havia quem o achasse. Quando eu ia atrás, os amigos o avisavam que eu estava lá e ele desaparecia".

A ousadia dos marmanjos travestidos garantiu-lhes a fama de pegadores. "As mulheres é que se jogam. Elas acompanham o bloco coladas na corda para tirar casquinha deles. E homem, você sabe como é, ainda mais bebendo", alfineta Rudelmara. Hoje, ela diz que não sofre mais. "Agora é a vez de consolar minhas noras quando meus filhos e meu neto, de 11 anos, saem para o bloco com o pai". Plínio concorda que já aprontou muito, mas hoje está sossegado. "Só quero me divertir com os amigos e com a família nesse bloco que é uma das coisas mais importantes da minha vida".

Nos últimos 36 anos, ele só tomou falta uma vez. E não foi por querer. Às vésperas do Carnaval de 2005, durante uma consulta de rotina ao cardiologista, descobriu que estava infartando. Lá mesmo ficou. A cirurgia para colocação de quatro pontes de safena foi marcada para dali a uma semana. No hospital, a única coisa que lamentava era perder o desfile. Driblou a segurança familiar e mandou pegar a fantasia na sede do bloco. "Eu ia fugir, desfilar, e depois voltar para fazer a cirurgia, mas a mulher descobriu e escondeu a fantasia", conta.

Se não pôde ir até o bloco do seu abalado coração, o bloco veio até ele. Do quarto do hospital, no bairro do Canela, apurava os ouvidos para tentar captar o som que vinha do Campo Grande. De repente, ouviu seu nome ecoar das potentes caixas de som do trio elétrico. Eram As Muquiranas saudando seu folião ausente com uma Ave Maria e pedindo pelo seu restabelecimento. "Quase infartei de novo", brinca.

Após o desfile, os dois filhos (Bruno, 26, e Leonardo, 33) e o neto, Eron, 11, foram vê-lo no hospital. Vestidos de muquirana, claro. "Fiquei orgulhoso. Estava certo de que, acontecesse o que acontecesse comigo, a tradição estava mantida na família", diz. Se depender dos três, a relação de amor com o bloco nunca se quebrará. "Aqui, a paixão é de pai para filho, não tem como dar errado", brinca Leonardo.

Renovação
Se, para Plínio, a questão é manter a tradição, para o porteiro Erivaldo Conceição Couto, 37, integrar os filhos ao bloco desde pequenos é uma prevenção. No domingo passado (25/1), ele e seus dois meninos, Júnior, 7, e Alisson, 3, muquiranas desde os primeiros anos de vida, se juntaram aos cerca de mil associados que desfilaram pela rua Carlos Gomes, para celebrar o retorno do bloco ao circuito Osmar. Mais do que passar para os filhos o amor que sente pela entidade, Erivaldo quer mostrar aos dois o  sentido da diversão. "Quero ensiná-los, desde pequenos, que a diversão não precisa caminhar com as drogas. Aqui o objetivo é ser feliz. E eles aprendem isso desde cedo", observa, enquanto carrega o menorzinho no pescoço. Desfilar com os dois no longo circuito não é fácil, mas Erivaldo conta com a ajuda do exército de muquiranas. "Quando um cansa, um amigo o coloca no ombro e aí me alivia", diz.

Foi essa solidariedade que o estudante Álvaro Sena, 19, que debutou no bloco no ano passado,  viu de perto. "Nunca fui tão feliz. Recebi o carinho dos foliões, do público, da diretoria, que queria me colocar em cima do carro de apoio, mas as muquiranas disputavam o comando da minha cadeira de rodas e cumpri todo o circuito no chão", conta.

Este ano, Álvaro já está se preparando para sair na avenida com a fantasia de baiana. Se depender dele, do policial Bruno Costa, dos filhos de Plínio, dos de Rivaldo e de outros os foliões da nova geração que, ano a ano, fazem a corda esticar, não há cinzas que façam a alegria escrachada se apagar.

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