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Banco de dados reúne milhares de cartas de alforria

Sistema amplia as possibilidades para a pesquisa de pessoas escravizadas e de senhores de escravos na Bahia

Por Gilson Jorge

01/09/2024 - 6:00 h | Atualizada em 01/09/2024 - 10:51
Carta de alforria de Maurício, assinada pro Maria Quitéria em 3 de novembro de 1852
Carta de alforria de Maurício, assinada pro Maria Quitéria em 3 de novembro de 1852 -

Desde que se aposentou como professor de história da rede estadual de ensino, em 2019, o historiador e pesquisador Urano Andrade ocupa uma grande parte de seu tempo investigando documentos digitalizados em seu trabalho de consultor freelancer para pesquisadores que precisam de dados históricos. Já aconteceu de ele ficar 18 horas em um dia ao computador.

O consultor estende o seu expediente mesmo quando não há uma demanda específica. No último domingo, enquanto sua família dormia, Urano foi mexer nos arquivos e fez uma descoberta importante. A versão digitalizada da carta de alforria que comprova ter sido a heroína da independência Maria Quitéria proprietária de um escravizado.

Na página 111 do livro de notas 305, armazenado no Arquivo Público do Estado da Bahia, consta o compromisso firmado pela heroína, através de sua filha única, Luiza Maria da Conceição, de conceder a liberdade ao escravizado nagô, Maurício, que pagou 300 mil réis, menos do que os 400 mil réis que ela teria estipulado anteriormente. No texto, Quitéria justifica o desconto: "Eu lhe perdoo 100 mil réis por caridade".

Se o banco de dados montado por Urano revela uma faceta desconhecida de uma das personagens mais queridas da história baiana, também joga luzes sobre as bizarras cláusulas impostas pelo senhorio na hora de concessão da alforria nas décadas que antecederam a abolição da escravatura.

"Há alforrias que levaram 15, 20 anos para acontecerem, porque eram condicionais. Por exemplo, o senhor alforriava o escravizado, mas exigia que ele lhe fizesse companhia e lhe obedecesse até a sua morte, sob pena de voltar a ser escravizado", explica Urano.

Historiador Urano Andrade
Historiador Urano Andrade | Foto: Raphael Muller / AG> A TARDE

Cerca de 60% das cartas de alforria catalogadas até agora apresentam condicionais. Há um caso de uma escravizada que ganhou alforria com a condição de que todas as vezes em que a senhora vinha do Rio a Salvador a alforriada tinha que se apresentar e cozinhar para ela.

A tabulação dos dados mostrou também ocorrências de escravizados que possuíam outros escravizados, que eram vendidos em troca de sua liberdade. Homens escravizados tinham conhecimento de um lugar onde se vendiam os chamados refugo, que eram os escravizados fragilizados e adoecidos, que viajavam no porão do navio negreiro, e que por isso eram vendidos por menor preço e comprados por escravizados urbanos sãos. Estes os alimentavam, cuidavam deles e depois os vendiam aos seus senhores em troca da sua alforria.

"Os escravizados da cidade tinham uma dinâmica diferente em relação aos do campo. Ele se virava com jogos e vendas de produtos", afirma Urano, que já digitalizou cerca de vinte mil cartas de alforria emitidas entre 1800 e 1853.

O pesquisador considera que as condicionais impostas nas cartas ajudam a explicar a longevidade da cultura escravagista no pós-abolição. "Tudo o que a gente vê ali repercute muito nas relações sociais de hoje", afirma o pesquisador, ressaltando o instituto do quarto de empregada.

O banco de dados traz, por exemplo, a carta do cachoeirano Manoel Fernandes Pereira, que em 1828 concedeu alforria ao pardo João, desde que ele servisse a ele e aos seus filhos até a morte do senhor e se sujeitasse a castigos domésticos. E o coronel José Mirales Brito, que alforriou a parda Benta em 1850, com a condição de que ela o acompanhasse até sua morte e de ele ter "toda a liberdade de a castigar da maneira que me parecer".

Ojo Ladile

O projeto surgiu de uma demanda da professora estadunidense Kristin Mann, especialista em história da África Ocidental, que em 2012 entrou em contato com Urano em busca de informações sobre o destino de Ojo Ladile, um homem iorubá capturado durante uma guerra no território da atual Nigéria e vendido como escravo a um empresário baiano.

A historiadora e antropóloga Lisa Earl Castillo foi quem descobriu que Ojo Ladile foi batizado como Felipe ao chegar. Com a ajuda de Urano e do historiador João José Reis, Kristin descobriu que Felipe tinha sido vendido a João Simões Coimbra, dono de sessenta escravizados, que foi retratado pelo historiador brasileiro-estadunidense Richard Graham no livro Alimentar a cidade: das vendedoras de rua à reforma liberal, sobre a Salvador de 1780 a 1860.

Kristin veio a Salvador em busca de informações sobre os iorubás locais, ficou impressionada com a riqueza de detalhes nas notas de cartório do Arquivo Público do Estado da Bahia, mas também com a lentidão do processo para o acesso aos documentos. A historiadora, que ensina na Emory University, em Atlanta, teve a ideia de criar um banco de dados digitalizado, conseguiu verbas nos Estados Unidos para executar o projeto e contratou Urano para fazer o intenso trabalho de pesquisa e digitalização dos arquivos.

Ao longo de sua carreira como historiadora, Kristin descobriu que os registros dos primeiros tribunais coloniais britânicos, introduzidos na década de 1860, são ricas fontes de informação sobre as transformações sociais, econômicas, culturais e jurídicas que ocorreram na África Ocidental no século 19.

Na Bahia, a historiadora estadunidense pretendia compreender de forma mais ampla a trajetória dos cidadãos daquela região africana que foram trazidos ao Brasil. "Eu queria ver o que mais poderia aprender sobre as suas vidas enquanto escravizados, bem como sobre os seus caminhos para a alforria e a decisão de regressar à África Ocidental", afirma Kristin, que ressalta o apoio recebido dos professores e historiadores João José Reis, Lisa Earl Castillo e Urano Andrade, além da instituição Universidade Federal da Bahia.

O banco de dados montado por Urano foi tema de um artigo recente na Enslaved, publicação acadêmica sobre preservação de documentos relacionados à escravidão. “O intervalo publicado na revista online, de 1831 a 1840, é apenas a ponta do iceberg, tem muito mais material transcrito", afirma Lisa Earl Castillo, ao ressaltar que só nesse período são milhares de cartas.

A historiadora destaca que uma das vantagens de um banco de dados é a possibilidade de fazer análises quantitativas das cartas de alforria, o total de cartas, quantas foram de africanos, de mulheres, de crianças, o preço médio e o trabalho que o cativo exercia.

Mas um outro aspecto importante é que o material oferece recursos para resgatar as histórias de vida dos alforriados. "Ao cruzar as informações nas cartas com outras fontes, é possível acompanhar o que aconteceu com o liberto depois", aponta Lisa. Entre as outras fontes possíveis há, por exemplo, os livros de compra e venda de escravos do Arquivo Público Municipal, e os testamentos de libertos, também no Arquivo Público do Estado da Bahia.

E, ainda por cima, o banco de dados tem cartas de personagens históricos. Há a carta da fundadora do Terreiro do Gantois, Tia Julia, que comprou sua liberdade em 1840, no dia 25 de setembro, uma sexta-feira. A descoberta do documento explica porque na quarta sexta-feira de setembro se inicia o calendário religioso do terreiro.

O banco de dados traz também a carta da segunda mãe de santo da Casa Branca, Marcelina da Silva, a trisavó de Mestre Didi, que comprou sua liberdade em 1836, logo antes de ir para a África. Há também cartas de vários réus da Revolta dos Malês. "A carta de Aprígio, um dos cabeças da rebelião, é de 1831. Ele era nagô, quer dizer, iorubá, e seu senhor também foi africano, mas de outra nação, jeje", explica a historiadora.

Outro malê cuja carta está digitalizada é Ajadi, que foi liberto apenas em 1834. "A carta dele é interessante porque mostra que ele tinha coração de rebelde e antes da alforria fugiu várias vezes. O senhor lhe vendeu a liberdade porque estava com medo de ele fugir de novo", relata Lisa.

Nas cartas catalogadas no Endangered Archives Program, o programa da British Liibrary usado por Urano, há uma vastidão de histórias disponíveis para serem contadas. "Precisa de paciência e determinação, mas o banco de dados representa um atalho fundamental que ajuda a reduzir bastante a quantidade de tempo a ser investido na pesquisa", estima Lisa.

As cartas de alforria do período 1831-1840 podem ser lidas aqui

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Tags:

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