ABRE ASPAS
Caso Leo Lins: piada tem limite quando vira ataque a minorias, diz especialista
Daniela Portugal é advogada criminalista e professora de direito da Ufba e da Uneb
Por Gilson Jorge

A condenação do humorista Leo Lins a oito anos e três meses de prisão, por contar piadas que, segundo decisão da justiça, fomentam a violência verbal e a intolerância, ganhou destaque internacional. O jornal Washington Post, do multimilionário Jeff Bezos, viu no episódio um esforço do poder judiciário brasileiro para restringir a liberdade de expressão, enquanto o espanhol El País enfatizou o caráter ofensivo dos chistes feitos por Lins durante um show em Curitiba, em 2022, que motivou a ação.
Esquetes apresentados pelo humorista dentro de um teatro teriam ferido a dignidade de minorias sociais, segundo o processo. Para explicar os conceitos de liberdade de expressão e de discurso de ódio, que envolvem as acaloradas discussões sobre o caso, A TARDE ouviu a advogada criminalista Daniela Portugal, professora de direito da Ufba e da Uneb.
A pena aplicada ao humorista foi exagerada?
Avaliar exagero ou não de pena é um pouco complexo. O código penal traz os critérios de dosimetria de pena, ou seja, as circunstâncias judiciais, no artigo 59. As circunstâncias agravantes e atenuantes, no artigo 71. As causas de aumento e diminuição de pena, como por exemplo a prática da ofensa na presença de várias pessoas. O resultado final da pena é fruto de uma combinação de fatores que estão regrados em lei. Não é algo tão subjetivo quanto a sociedade em geral pensa.
No momento em que o magistrado fixa a pena, ele vai ter que avaliar quantos crimes são objetos de denúncia, porque eventualmente esse juiz vai ter que somar as penas quando a gente está diante de um concurso de crimes. Cada uma dessas penas pode envolver a incidência de agravantes e de causas de aumento. Quando a gente avalia os crimes contra a honra de forma isolada, as penas são pequenas. São infrações de menor potencial ofensivo, de modo geral. Mas a depender dos crimes e dos grupos atingidos, se a gente está aplicando ou não a Lei de Racismo (Lei 7.716), vai-se chegar ao resultado final da pena.
Alguns humoristas saíram em defesa de Leo Lins, falando em cerceamento à liberdade de expressão. E Rafinha Bastos pediu a prisão de Deborah Bloch e Adriana Esteves por falas das personagens Odete Roitman e Carminha. Mas são situações diferentes, não?
São. Entendo que são situações diferentes. Quando a gente pensa em liberdade de expressão, a gente está diante de um direito fundamental, que está previsto na Constituição Federal, que diz respeito ao direito que todos nós temos de manifestar as nossas opiniões, as nossas ideias, nossos pensamentos, nas mais variadas formas, sem que a gente sofra censura, sem que a gente sofra interferência do Estado. Agora, o próprio Supremo Tribunal Federal quando pensa a liberdade expressão, pensa dentro de um binômio que vai, de um lado, assegurar essa liberdade, e, de outro, prevê também a responsabilidade pelo que nós expressamos.
Todos os direitos fundamentais previstos na Constituição não possuem caráter absoluto. Da mesma forma que eu tenho o meu direito à liberdade de expressão, todos nós resguardamos o nosso direito de não sofrer ofensas à nossa dignidade, de não sermos discriminados. Trazendo para o caso prático, na televisão, mas encenações, no humor, na arte, eventualmente a gente vai estar diante de situações em que há conflito entre direitos fundamentais.
Qual direito fundamental prevalece? O STF tem um entendimento bem interessante. Não existe hierarquia entre direitos fundamentais, mas a liberdade de expressão possui uma espécie de precedência prima facie. Ou seja, em princípio a liberdade de expressão vai prevalecer em um conflito. A menos que estejamos diante de um abuso.
E aí, principalmente hoje, quando a gente observa o impacto das violências que são projetadas nas práticas de discursos de ódio contra minorias representativas, a gente tem tido maior consciência dos efeitos negativos sociais e individuais dessas práticas abusivas que acabam sendo autorizadas em nome da liberdade de expressão. Nós já temos restrições à liberdade de expressão, não apenas nesse caso, quando a gente está diante de um discurso de ódio. E esse discurso de ódio pode estar camuflado em uma piada, em uma encenação.
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Nesse caso do humorista, não houve censura. Ele fez o show e depois respondeu criminalmente pelo teor das piadas. Ele não foi impedido de fazer algo...
Perfeito. A Constituição veda a censura prévia. Eu não vou te impedir de falar, eu vou permitir que você fale. Mas você deve estar ciente de que a sua fala, a depender do limite que ela atravesse, poderá sofrer responsabilização, justamente porque não há direitos fundamentais absolutos. Nem mesmo a liberdade de expressão. Eu não posso impedir que você fale, isso seria censura prévia. Mas posso lhe responsabilizar pelo que você disse. Esse é o binômio, liberdade e responsabilidade, com o qual o STF trabalha.
Agora, em alguns julgamentos a gente vê censura prévia mesmo. A biografia Roberto Carlos em Detalhes, de Paulo Cézar Araújo, não pôde ser vendida. E há casos de revistas com denúncias sobre políticos que são impedidas de circular. A legislação é contraditória ou é o mesmo entendimento?
É o mesmo entendimento. É a análise, em cada caso concreto, de qual direito fundamental terá maior peso ali. Nos casos, por exemplo, das biografias não-autorizadas, o STF, em princípio, não exige a prévia autorização do biografado para que aquela obra possa ser publicada. Agora, uma vez eu publicando uma biografia não-autorizada e eu me valendo dessa prática para discriminar a pessoa que está sendo biografada, eu posso ser responsabilizado.

Esse debate também tem por trás os interesses das chamadas big techs. O secretário de Estado dos Estados Unidos, Marco Rubio, ameaçou retaliar o ministro Alexandre de Moraes caso a liberdade de expressão de cidadãos estadunidenses fosse afetada.
Quando a gente entra no debate internacional sobre o tema, cada Estado nacional, dentro do exercício da sua soberania, vai regular o assunto de um modo diverso. Nos Estados Unidos, por exemplo, quando a gente pensa em liberdade de expressão, a matéria vai ser regulada com contornos totalmente diversos dos contornos legais soberanos.
Cada Estado soberano possui a sua tradição jurídica, as suas diretrizes e os seus parâmetros constitucionais. Nos Estados Unidos, existem grupos, organizações sociais declaradamente racistas, como a Ku Klux Klan, de funcionamento regular. Já a maneira como o Brasil lida com a prática da discriminação racial é guiada pela própria orientação constitucional de que o racismo é um crime imprescritível. A doutrina vai analisar a constituição brasileira e identificar já no próprio texto constitucional, diferente do estadunidense, uma vedação expressa ao discurso de ódio.
Então, é natural que a gente enfrente essa divergência. Mas dentro do território nacional o que vale é o exercício da nossa soberania. E a nossa soberania vai ser guiada a partir das nossas diretrizes constitucionais. E, inclusive no âmbito internacional, da mesma forma que os tratados e normas internacionais sobre direitos humanos têm enfatizado a defesa da liberdade de expressão, essas mesmas normas internacionais também têm enfatizado a necessidade de proteção às minorias representativas, que, via de regra, são os alvos preferenciais deste humor que eventualmente está sofrendo responsabilização pelos seus abusos.
No âmbito internacional, se a gente sai da legislação estadunidense, da mesma forma que as normas privilegiam a liberdade de expressão, elas também prestigiam a dignidade e a não discriminação.
E quando se tratam de ofensas feitas por políticos com mandato, como fica a questão da imunidade parlamentar?
A Constituição prevê que deputados e senadores são invioláveis civil e penalmente por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos. Ou seja, eles gozam do que a doutrina chama de uma imunidade absoluta de caráter material. Eles não vão poder sofrer, de acordo com o texto constitucional, nenhum tipo de responsabilização nem civil nem penal por aquilo que eles disserem. Se a gente pensa dentro de uma perspectiva histórica, isso é uma previsão constitucional que tem o seu sentido de ser, já que nós somos um estado que viveu a experiência da ditadura militar.
E a Constituição que está em vigor, a de 1988, é um texto pós-ditatorial. Isso tem o sentido da garantia do bom exercício da atuação parlamentar. Para que os parlamentares se sintam livres para o exercício da função, sem temer qualquer tipo de responsabilização. Mas o que o Supremo Tribunal Federal e o Supremo Tribunal de Justiça vêm entendendo? Que isso só se justifica dentro do exercício da função. Todas as vezes que o parlamentar extrapola os limites dessa função, ele pode sim ser responsabilizado. Precisa haver uma conexão direta entre aquilo que se fala e a função desempenhada.
Em 2023, houve o episódio em que Eduardo Bolsonaro acusou Tabata Amaral de fazer campanha para a distribuição de absorventes como forma de atender o lobby de uma empresa fabricante desses materiais. Tabata apresentou queixa-crime ao STF acusando o deputado de crime contra a honra e o Supremo entendeu que existe a possível prática de crime, possíveis elementos de materialidade de autoria e recebeu a queixa-crime para apurar as falas que foram ali trazidas.
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