ABRE ASPAS
De Amargosa para o mundo: a chef baiana que conquistou Dubai com doce da avó
Lisiane Arouca tem revolucionado com releituras de sobremesas clássicas da confeitaria baiana
Por Pedro Hijo

Acostumado a sobremesas extremamente doces, o paladar baiano começa a ser delicadamente desafiado pelas mãos da chef confeiteira Lisiane Arouca. Ao lado de Fabrício Lemos, com quem comanda o Grupo Origem, Lisiane tem revolucionado o segmento ao propor releituras de sobremesas clássicas da confeitaria baiana. No ano passado, o casal recebeu o título de “classe mundial” no The Best Chef Awards 2024, em Dubai.
O reconhecimento internacional celebra a proposta de equilibrar sabores e romper com o excesso de açúcar sem abrir mão da tradição. Amante dos doces desde a infância, Lisiane lembra que começou a fazer os próprios bolos aos dez anos, para ter lanches em casa. As empreitadas na cozinha tinham a companhia das tias e da avó Marieta, de quem herdou uma receita adaptada de ambrosia.
“Ela modificou a receita porque tentou economizar nos ingredientes e acabou criando uma versão mais saborosa", conta Lisiane, que atualmente serve o prato nos restaurantes do Grupo Origem. No menu assinado por ela, clássicos como a ambrosia da avó recebem novas camadas de sabor, com acidez, notas salgadas e toques amargos. “É uma forma de reeducar o paladar do baiano, surpreender e, ao mesmo tempo, manter viva a nossa cultura”, afirma a chef.
Qual foi o seu primeiro contato com a confeitaria?
Eu nasci em Salvador, mas cresci no interior da Bahia. Com três anos, fui para uma cidade chamada Amargosa e, por lá, fiquei até os 13. Foi em Amargosa que, de fato, eu entrei na cozinha por vontade própria. Sempre gostei de comer doces. Minha mãe não cozinhava, e eu ficava curiosa para aprender e poder fazer. Com oito anos, já pegava receitas com as pessoas e tentava reproduzir. Comecei a fazer meus primeiros bolos, minhas primeiras sobremesas, na intenção de ter lanches em casa. Tenho duas tias que são doceiras, e elas criaram os filhos vendendo doces, salgados e fazendo bolos. Eu estava sempre com essas minhas tias, nas cozinhas delas.
Aos 10, 12 anos, enquanto meus irmãos e primos estavam brincando, eu estava fazendo brigadeiro. Ao meu lado, sempre esteve a minha avó. Se ela estava cozinhando, eu estava com ela. Tanto que o doce de família, o mais importante para a gente, é a ambrosia que ela fazia – uma receita desenvolvida por ela e bem diferente da ambrosia tradicional. Ela modificou a receita porque tentou economizar nos ingredientes e acabou criando uma versão mais saborosa, com mais gosto de leite do que de gemas. Na versão da minha avó, para um litro de leite, são apenas duas gemas. Então, fica um doce com muito sabor de leite e do açúcar queimados.
A gente nem chamava de ambrosia, chamava de doce de leite. Esse é o doce da família, e eu fui a escolhida para carregar essa receita. Em todos os encontros, sou eu quem faz o doce de leite da vó Marieta. O meu interesse pela cozinha veio de uma junção de coisas: um pouco da influência das minhas tias, um pouco da influência da minha avó, mas muito do meu próprio paladar.
A Bahia tem uma confeitaria muito particular, cheia de histórias, influências e simbologias. Na sua visão, o que torna a confeitaria baiana tão única?
É justamente isso. Eu acho a confeitaria baiana superinteressante e importante, porque ela é realmente uma junção de culturas. Tem um pouco das influências dos ingredientes africanos, uma presença muito forte da confeitaria portuguesa e também da indígena. Dentro da nossa confeitaria, você consegue encontrar, de fato, um pouquinho de cada coisa.
É encantador quando começo a pesquisar e estudar essas influências e a importância das mulheres para o desenvolvimento da nossa confeitaria. Foram as mulheres pretas que iam para os seus tabuleiros, inicialmente, vender doces para conseguir a alforria. Algumas tentavam conquistar a própria liberdade, outras, que já eram livres, buscavam comprar a liberdade de outras pessoas por meio dessas vendas. Me encanta essa história da mulher que vem através dos doces.
Eu não acho que exista um doce representativo da Bahia, mas sim um ingrediente: o coco. É possível encontrar essa fruta em muitas receitas de doces baianos. Você encontra coco no quindim, nas cocadas, em várias preparações típicas e tradicionais. Eu acho o coco simplesmente incrível.
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Existe um limite entre inovar e respeitar a receita original? Como você lida com esse equilíbrio no seu trabalho?
Um dos nossos maiores objetivos – meu e de Fabrício [Lemos] – é justamente levar a nossa cultura, através da comida, para outros povos. Nossa meta é que as pessoas possam conhecer um pouco da nossa Bahia através do alimento que a gente faz. Dá para inovar, mas a essência do doce precisa estar sempre presente. Isso precisa ser mantido. Acho que foi exatamente isso que minha avó fez. Ela pegou a ambrosia, transformou um pouco, até por necessidade, usou menos açúcar, menos gema, e acabou criando um novo doce, com as mesmas características, só que, na minha opinião, com mais sabor.
Eu sou assim também. Tento trazer essas receitas que aprendi quando criança, baseadas nos caderninhos que tenho dessa época. Tiro um pouco do açúcar para conseguir equilibrar, acrescento algo aqui e ali para compor. Então, transformar, para mim, é isso: tirar um pouquinho do açúcar, acrescentar algum elemento ácido para equilibrar, mas sempre mantendo as características principais.
Há espaço, hoje, na Bahia, para doces que tragam notas mais amargas, ácidas ou menos adocicadas?
A confeitaria baiana tem uma dificuldade, que é o excesso de açúcar. A referência de confeitaria no mundo é a francesa, e não há como negar que eles tentam equilibrar muito no açúcar. É uma confeitaria, claro, completamente diferente da brasileira, mas é uma confeitaria com doces que é possível comer até o fim sem ficar enjoado. Mas acho que os profissionais de confeitaria daqui estão buscando trazer mais equilíbrio para os doces, para que as pessoas possam comer a sobremesa até o final – e tenham vontade de comprar e comer outra. Isso é muito importante, principalmente para quem tem negócio.
Atualmente, na Bahia, temos recebido muitas pessoas de fora. Então, não dá para fazer o doce só para o paladar do baiano. Quem tem esse objetivo de mostrar os nossos ingredientes para fora precisa buscar esse equilíbrio. Por exemplo, tenho uma sobremesa que é uma das mais queridas do cardápio. Já tentei tirar algumas vezes, mas não consigo. Se chama Dona Marieta, que leva, justamente, a ambrosia da minha avó. Eu coloco um creme de queijo, umas frutas ácidas, e vou acrescentando algumas outras coisas. Trago a acidez, o salgado, o amargo, para conseguir esse equilíbrio. E, no final, ela se torna uma sobremesa que surpreende, mas que tem, como carro-chefe, a nossa doce ambrosia.
Acho muito importante falar sobre isso, porque os profissionais que estão chegando agora precisam entender que não é necessário descaracterizar completamente as receitas tradicionais. A gente só precisa acrescentar alguns elementos para que elas fiquem mais equilibradas. É uma forma de reeducar o paladar do baiano, surpreender e, ao mesmo tempo, manter viva a nossa cultura. E não se engane: para o profissional, ver uma pessoa finalizando um prato, uma sobremesa que você fez, é muito mais prazeroso do que ver alguém dar duas garfadas e deixar de lado porque ficou enjoado e não consegue comer.
Como você imagina o futuro da confeitaria baiana? Mais voltada para a tradição, para a inovação ou para um meio-termo?
Quando eu comecei, eu percebia que, na maioria dos restaurantes, praticamente todas as sobremesas eram as mesmas. Era sempre pudim, brownie, cocada... no máximo, um quindim. E, nos restaurantes mais sofisticados, não podia faltar o petit gâteau, que nem é daqui, é uma sobremesa de fora. Com o tempo, comecei a perceber que isso foi mudando. As pessoas estão buscando criar novas sobremesas, trazer coisas diferentes. Fazer o que a gente, no Grupo Origem, tem feito: pegar uma receita tradicional e inovar, ativar a curiosidade das pessoas.
Lembro bem que, quando comecei, estagiava nos lugares e percebia que ou as sobremesas eram compradas congeladas – o cozinheiro só esquentava no micro-ondas, jogava um caldinho em cima e servia – ou eram feitas pelo próprio chef de cozinha, que não era confeiteiro, não gostava de confeitaria, mas fazia porque tinha que fazer. Ou seja, não existia um chef de confeitaria dentro da cozinha. Era uma profissão que não tinha valor, não era considerada importante. Hoje, isso está totalmente diferente. É legal ver a quantidade de colegas que me ligam dizendo que estão precisando de um confeiteiro. E eu fico feliz, porque vejo que estão se preocupando de verdade com essa parte da confeitaria dentro dos estabelecimentos.
Outro fato que me anima é perceber que quem tem restaurantes de comida baiana pensa em incluir sobremesas que façam sentido com a proposta da casa. Afinal, não combina vender moqueca e, na mesma casa, servir um petit gâteau francês. Hoje, não é necessário mais ir a São Paulo ou para outro lugar para ver coisas diferentes. Muito pelo contrário. Aqui em Salvador já temos estabelecimentos maravilhosos, que estão conseguindo trazer coisas novas, surpreendentes, e seguindo exatamente essa linha que eu também busco: valorizar nossas sobremesas tradicionais e transformá-las com criatividade, aguçando a curiosidade das pessoas e oferecendo experiências diferentes.
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