Ítala Nandi, uma temporada em Salvador

A inquietude e paixão da atriz Ítala Nandi pelo que faz é algo extraordinário. Aos 82 anos, a gaúcha que foi uma voz atuante na liberação sexual das mulheres na década de 1970, persevera na bandeira a favor dos valores humanos. Ítala foi a primeira atriz a fazer nu frontal no teatro durante a ditadura militar, mas, segundo ela, essa é uma conquista superada. “O que precisamos prestar atenção agora é na perda do amor”, diz.

Morando em Salvador desde março, Ítala está com uma agenda cheia. Aqui, ela dará aulas de teatro para alunos da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e se prepara para integrar o elenco de uma peça com estreia prevista para setembro.

Com direção de Gil Vicente Tavares, o espetáculo A visita da velha senhora está em fase de produção e conta com texto do dramaturgo suíço Friedrich Dürrenmatt, de 1956. A peça gira em torno dos planos de vingança de uma mulher que enriquece e volta à cidade natal para acertar as contas com o homem que a abandonou.

Para Ítala, este é um momento oportuno para encenar o texto que se vale do humor para perguntar o que acontece com os valores morais diante do dinheiro. “É uma peça que critica justamente a corrupção e a decadência de uma sociedade, e estamos vivendo numa sociedade ocidental decadente”, opina. Para a atriz, a humanidade ignora valores básicos como a verdade, o amor e a paz: “Quem não tem esses valores, os perdeu”.

Cria do Teatro Oficina, uma das companhias de teatro mais importantes e longevas do Brasil, Ítala foi uma voz contrastante ao Regime Militar. O grupo era coordenado pelo diretor, ator e dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que foi detido e exilado pela ditadura em 1974.

Durante a década que permaneceu na companhia, Ítala encenou clássicos como Andorra, do dramaturgo suíço Max Frisch, e Galileu Galilei, do poeta alemão Bertolt Brecht, entre outros.

Para Ítala, o Brasil vive um retrocesso e os ecos da perseguição à arte durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. “Eu só pude dar aula na Ufba durante um mês e depois a universidade entrou em greve, muito por causa de tudo o que ele fez para acabar com a educação e a cultura”, comenta. “A gente está tentando reformular e renovar o Brasil porque foram anos de uma perda absoluta. Sofri duplamente, como atriz e como professora”.

O teatro é um dos espaços em que Ítala atua e dinamiza não só como atriz, mas como educadora. Fundado em 2014 e dirigido pelo filho de Ítala, Giuliano Nandi, o Espaço Nandi é uma escola de formação de atores localizada no Rio de Janeiro. A atriz ministra aulas de teatro profissionalizante no local, que também oferece cursos livres de teatro, televisão, cinema e dublagem.

Na sala de aula, a atriz e diretora fala sobre a importância da arte como expressão humana. “Se acontecer alguma catástrofe, desaparecer a humanidade inteira e sobrar apenas uma pessoa, a única arte que fica é o teatro porque essa mesma pessoa pode fazer um monólogo”, filosofa. “O teatro é inerente ao ser humano”.

Projetos

O convite para atuar em A visita da velha senhora surgiu a partir de um ímpeto corajoso do diretor Gil Vicente Tavares. Minutos antes de Ítala participar de uma reunião de departamento de Teatro na Ufba, como professora convidada, o diretor passou ao lado dela e achou o rosto da atriz familiar.

“Eu pensei que poderia ser ela, mas achei estranho ter uma pessoa famosa no Pavilhão de Aulas de Ondina”, conta Gil. “Quando entrei na reunião, lá estava ela com a sala inteira batendo palmas, eu não fazia ideia que ela estava em Salvador”.

Gil aproveitou o momento para convidá-la para encenar o texto de Dürrenmatt. Ele estava prestes a submeter um projeto com a Companhia de Teatro da Ufba e, ao ver a atriz, pensou que “não existia outra peça melhor”.

“Esse espetáculo foi um fenômeno mundial e ganhou versões no mundo inteiro. Dizem que foi uma das inspirações para Jorge Amado fazer Tieta”, conta o professor e diretor.

Os ensaios para a peça começam em julho e audições já estão sendo feitas para a escolha do elenco que terá cinco alunos da Escola de Teatro da universidade. Gil e a dramaturga Cleise Mendes são os responsáveis pelo texto que vai sofrer adaptações para “combinar mais com o Brasil”. A peça deve ficar um mês em cartaz no Teatro Martim Gonçalves, no bairro do Canela, em Salvador.

Para Gil, a oportunidade de trabalhar com Ítala é única. “É uma chance que eu nunca pensei em ter na minha vida, nunca imaginei que iria trabalhar com uma das grandes damas do teatro brasileiro”, elogia.

Independência

Com pouca participação em novelas, Ítala diz que o que a consagrou como atriz foram o teatro e o cinema. Sem titubear, a atriz diz que a escolha de atores para projetos baseada em números de seguidores em redes sociais é um retrocesso. “Isso é uma bobagem, é passageiro”, diz. “Olha só o que eram as novelas e o que elas são hoje. É uma queda absurda”.

Na Rede Globo, Ítala participou das produções Direito de amar, de 1987, e Pantanal, em 1990. Já na Record, entre 2008 e 2009, esteve nas novelas Os Mutantes, caminhos do coração e Promessas de amor. Quando perguntada sobre o porquê de não fazer mais novelas ou projetos em streaming, Ítala é categórica: “Eu nunca vou buscar, eles que vêm. Eu não vou atrás”.

Foi deste jeito que surgiram convites para Ítala atuar nos mais recentes longas de sua filmografia. Ela participa de Clube das mulheres de negócio, da diretora Anna Muylaert, que, para ela, tem tudo para ganhar um Oscar, e Malês, dirigido por Antônio Pitanga. Ambos têm previsão de estreia para este ano.

A força da arte é o que motiva Ítala a passar a experiência nos palcos e telas para colegas e alunos: “Eu falo para todos eles: formem um grupo, criem uma produtora, se juntem, não dependam dos outros, se só houver a garagem da casa, façam teatro lá. Porque é isso que nos fortalece como atores e nos faz crescer”.