REPORTAGEM ESPECIAL
O desejo de fala na arte indígena contemporânea
Na cultura tupinambá, os encantados são seres que saem de sua morada para fortalecer os indígenas em sua luta
Por Gilson Jorge
Há exatos 20 anos, em 2004, o povo tupinambá começava a ocupar novamente o território da Serra do Padeiro, no sul da Bahia, invadido inicialmente pelos colonizadores portugueses e depois por fazendeiros brancos. Era a pressão dos povos originários pela demarcação da terra pelo Governo Federal, ainda pendente. O território foi reconhecido e delimitado pela Funai em 2009, mas a demarcação ainda não saiu. É uma jornada de resistência indígena que inclui passagens violentas, como o massacre de tupinambás pelos europeus em 1559, no Recôncavo Baiano, e a luta contra cacauicultores na década de 1930.
Dois anos depois de iniciado o processo de retomada da terra no sul da Bahia, a artista e pesquisadora Glicéria Tupinambá começou a entrevistar membros mais antigos da tribo. Ela queria entender como seus ancestrais faziam o manto tupinambá, vestimenta sagrada produzida com penas de aves que era utilizada por mulheres, caciques e pajés.
Sabe-se que 11 mantos tupinambás originais, produzidos no período colonial no Brasil, ou Pindorama, como diziam os povos originários, foram parar na Europa, mais precisamente na Dinamarca, Suíça, França, Bélgica e Itália. A Dinamarca aceitou devolver a peça que possui ao país, mas o destino será o Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
Na Bahia, Glicéria tornou-se a referência na produção das peças, quatro séculos depois que o costume foi interrompido. "Voltar a fazer os mantos era uma forma de oferecer algo à altura aos encantados", afirma Glicéria.
Na cultura tupinambá, os encantados são seres que saem de sua morada para fortalecer os indígenas em sua luta pela identidade e pelo direito à terra, como definiu a antropóloga Patrícia Navarro de Almeida Couto em sua dissertação Morada dos encantados: identidade e religiosidade entre os Tupinambá da Serra do Padeiro. Exemplos de encantados são a Caipora e o arco-íris, como cita Glicéria, uma das principais vozes do povo tupinambá.
Destaque brasileiro na Bienal de Veneza deste ano, a história de reconexão com a ancestralidade tupinambá é uma das atrações da exposição Nhe’ e se (Desejo de fala, em guarani), que será aberta nesta terça-feira na Caixa Cultural de Salvador, na Rua Carlos Gomes, com visitação gratuita.
Inaugurada em Brasília, em 2022, a exposição foi pensada a partir de pesquisa do doutorado em antropologia social de Sandra Benites Guarani Nhandewa, artista da Nação Guarani, em andamento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na tradição guarani, as mulheres reservam um período de até três horas para falar com as amigas sobre um determinado assunto que esteja ocupando os seus pensamentos. "Eu já praticava a roda de conversa no pátio do Museu Nacional com mulheres não-indígenas, no mestrado", explica Sandra. As conversas incluíam profissionais de diferentes áreas, como professoras da universidade, da rede estadual de ensino e médicas da Fiocruz.
A roda de conversa no pátio era uma reprodução de um costume das sociedades guaranis, em que mulheres adultas se encontravam para conversar entre si, assim como faziam também as mulheres mais jovens, os homens adultos e os homens jovens.
Mas o conceito de Nhe´e Se, praticado pelas mulheres guaranis, é mais profundo do que uma simples conversa em grupo. "Tem a ver com um segredo ou algo que é guardado delicadamente por uma pessoa e não pode ser dito de qualquer forma ou a qualquer pessoa, é preciso aguardar o momento certo", explica Sandra.
O Nhe´e Se pode ser, inclusive, uma fofoca. Mas nem para falar da vida alheia as guaranis consideram que a conversa possa ser feita açodadamente, sem reflexão e com qualquer pessoa. "Há todo um ritual de cuidado com as suas palavras, com os seus desejos. Para nós, guaranis, a palavra é sagrada. É preciso dizer as coisas com muito afeto, com muito carinho", explica a doutoranda, que tem o guarani como língua materna.
Essa noção de coisas que precisam ser comunicadas foi o ponto de partida para que a exposição fosse montada, depois de uma provocação feita pela produtora cultural Vera Nunes, que coordenou a mostra em Brasília e agora, em Salvador, assina como co-curadora, junto com Sandra.
Na versão que vem à capital baiana foram alterados quatro expositores, com a inclusão das artistas locais Glicéria Tupinambá e Yacunã Tuxá. "Foi mais uma questão de aumentar a representatividade", justifica Vera, pontuando que a exposição teve a preocupação de trazer artistas indígenas de diferentes regiões do país.
Em segurança
Um dos participantes, Xadalu Tupã Jekupé, do Rio Grande do Sul, não virá a Salvador para a abertura da exposição por causa das enchentes naquele estado. "Ele está em segurança, mas não poderá vir. Nesse momento teremos na abertura Glicéria Tupinambá, Yacunã Tuxá, Sandra Benites e eu", declarou Vera, na última quinta-feira. O trabalho de Xadalu Tupã, que é fotógrafo, mostra pessoas indígenas de diferentes idades vestidas não com mantos ou vestes tradicionais, mas com coletes à prova de bala.
Outra baiana da exposição, Yacunã Tuxá tem desejo de fala sobre muitas coisas. Não faz muito tempo, a artista se queixava por não estar encontrando espaços em Salvador para exibir a arte indígena. O tempo virou e, atualmente, os soteropolitanos têm muitas chances de entrar em contato com o trabalho dos povos originários, inclusive o seu.
Neste domingo, às 14h, ela aparece como uma das principais atrações do Prêmio Sim Igualdade Racial, exibido pela Rede Globo de Televisão, que destaca jovens talentos de diferentes etnias. Ela é finalista na categoria Arte em movimento. O programa foi gravado esta semana.
"Foi uma festa extremamente linda, eu estava junto com pessoas que estão lutando no seu dia a dia para tornar esse país menos desigual. Eu convido todos a assistir. Tem Alcione, Péricles e vários artistas indígenas", conta a baiana.
Yacunã também integra o grupo de artistas-curadores da exposição Hã-Haw Arte Indígena Antirracista, em cartaz no Solar do Ferrão. O evento é uma parceria entre a Universidade Federal da Bahia e a Universidade de Manchester.
Sobre a exposição Nhe' e Se, na Caixa Cultural, a artista avalia que o evento marca um lugar de retomada da cultura indígena em Salvador. "É importante falar da minha relação com a Caixa Cultural. A gente fez uma formação para falar de arte indígena e arte colonial. Teve um público maravilhoso e uma resposta muito positiva", pontua Yacunã. E, para ela, a exposição coletiva ajuda a trazer a discussão na cidade sobre arte indígena contemporânea.
Sobre a ausência de Xadalu Tupã Jekupé no evento e a situação dos povos indígenas do Rio Grande do Sul em face da recente crise, Yacunã destaca o peso da desigualdade social no enfrentamento da tragédia e também da falta de ação do poder público.
"A gente está falando de uma coisa que está escancarada no mundo, que é a crise climática. E é evidente que quando acontece isso que está ocorrendo no Rio Grande do Sul, as pessoas negras e indígenas são as mais atingidas", afirma a artista, ressaltando que o sul do país tem muitos povos indígenas que estão sendo duramente afetados por essa tragédia. "Tem amigo meu indígena do sul, Oderiê, que mora em Salvador e está fazendo campanhas de doação para esses povos", conta Yacunã.
Linguagens
Uma das expositoras é a artista manaura Auá Mendes, que transita entre o design gráfico com ênfase na ancestralidade, o grafite, a maquiagem artística e a performance, entre outras linguagens. Filha de pessoas de diferentes nações indígenas, Auá participa da exposição com uma homenagem à sua avó materna, que não chegou a conhecer.
"Eu tenho uma ligação espiritual com minha família. E de uns tempos para cá tenho sentido a necessidade de me conectar com minha avó, assim como me conecto com meu avô, já falecido, através de sonhos e visões", afirma.
No ano passado, Auá fez uma pintura baseada no rosto de sua avó materna, trabalhando as noções de passado, presente e futuro, inspirado no livro O futuro ancestral, de Ailton Krenak.
"O livro ensina que a gente só consegue seguir em frente se pensar em nossos ancestrais, que nos proporcionaram a possibilidade da fala e da voz", declara a artista.
A obra em homenagem à sua avó, que Auá traz a Salvador, surgiu após uma vivência em terreiros de umbanda: "Eu tive uma visão depois de giras com pretos velhos e pretas velhas. Em uma dessas giras, eu conversei com uma preta velha e no meio da conversa eu pensei muito na minha avó".
A artista ouviu da preta velha que para construir um véu dos mundos, conectando-a à sua avó, ela deveria pegar uma flor amarela e colocá-la no pé de uma árvore.
"Depois dessa vivência, eu sonhei com minha avó. Eu a encontrava nessa árvore da vida, em cima de um rio, que abria e fechava o véu dos mundos. E ali eu a via em cima de um pirarucu, segurando uma flor amarela", conta a artista.
Dos indígenas do sul do país, que atualmente sofrem com as enchentes, como o conjunto do povo gaúcho, às nações que continuam sendo violentamente atacadas pela posse da terra na Amazônia ou no Sul da Bahia, a mensagem dos artistas indígenas presentes na exposição Nhe' e Se, é o desejo de chamar a sociedade para uma conversa demorada e enfatizar a sua existência.
"Fala-se muito de Salvador como um pedaço da África. Mas nós estávamos aqui. Na Avenida Sete foi descoberto, recentemente, um cemitério indígena", sublinha Glicéria Tupinambá.
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