ABRE ASPAS
“O racismo no Brasil está pautado na aparência” , diz designer de moda
Carol Barreto é artista e designer de moda
Por Pedro Hijo
Os quilombos surgiram como espaços de resistência para pessoas escravizadas fugidas durante o período colonial. Há 10 anos, a artista e designer de moda Carol Barreto fundou um movimento de moda brasileira inspirada nos aquilombamentos, o Modativismo. Com roupas que não lhe cabiam e professores que não a compreendiam, Carol decidiu criar vestimentas, experiências e ambientes para ela e pessoas semelhantes sentirem-se socialmente pertencentes. Montou um ateliê, promoveu um fórum, desenvolveu uma disciplina e um grupo de pesquisa universitários e está se lançando como escritora com o livro Modativismo: quando a moda encontra a luta (Editora Paralela, do grupo Companhia das Letras), que será lançado no próximo dia 10 de abril, às 18h30, no Espaço Cultural da Barroquinha. Para ela, que é professora do departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia, o combate à discriminação de pessoas negras passa pela moda e acrescenta que o movimento não se resume à sobrevivência do povo negro: “É sobre estar dentro dos ambientes, ver a opressão ocorrer de dentro para fora e se proteger como comunidade”.
O que veio primeiro: a sua paixão pela moda ou o seu despertar pela justiça social?
É difícil ter essa separação. A paixão pela moda aconteceu naquela fase muito inicial da infância. Mas, como uma menina que cresceu no Recôncavo Baiano, a sede por justiça social acompanha a minha formação como pessoa. Venho de uma família que é majoritariamente composta por pessoas negras de pele retinta. Pequena, eu já via muita diferença na maneira como a minha mãe era tratada, por exemplo. Eu, uma mulher negra de pele clara, era lida como uma mulher não tão negra para provocar perigo e não tão branca para ser aceita e lida dentro dos padrões de valor humano.
De que forma o racismo impactou na sua formação acadêmica?
As escritas me acompanham há muito tempo. Sou graduada em Letras com Inglês pela Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs). Fui educada com referências de homens brancos europeus. Enquanto eu estava na graduação, pude ver validadas as trajetórias intelectuais de poucas mulheres, quase nenhuma negra. Na faculdade, tive um aprofundamento em tudo aquilo que prepara uma pessoa academicamente para ser escritora, no entanto, nunca me via nesse lugar. A formação acadêmica tirou de mim todas as possibilidades que eu já tinha desenhado para meu destino quando era criança. Ali, eu aprendi que eu não era artista e não era escritora como tinha sonhado quando pequena. No entanto, fui construindo meu caminho como autodidata. Eu tinha certeza que tinha nascido para trabalhar com moda e que aquele era o meu modo de atividade política. Eu pensava: eu não tenho recursos, mas vou me formar uma designer de moda. Comecei a estudar por conta própria.
Quando surge o conceito de Modativismo?
Apesar de não ter estudado Design de Moda numa universidade, essa minha carreira como autodidata me preparou para entender moda para além do vestuário. Em 2013, eu já tinha ingressado na minha trajetória como professora universitária e tinha acabado de fechar uma loja onde vendia a minha marca no Rio Vermelho. Fechei porque notei que a carreira comercial não era compatível com a universitária. Foi nesse contexto que fui convidada para representar o Brasil na Dakar Fashion Week, no Senegal. Não tinha muito dinheiro para produzir essa coleção. Então, junto com a universidade que trabalhava, transformamos uma das disciplinas no laboratório prático. Foi a primeira experiência que tive de, ao invés de desenhar com minhas assistentes na loja e mandar para uma confecção, fazer um trabalho 100% horizontalizado com um grupo amplo de mulheres. Foi aí que percebi que ao abdicar do lugar central de poder do artista, é possível encurtar a distância entre criação e execução. Percebi que era preciso entender cada pessoa que compõe o ateliê como produtora de intelectualidade também. Assim, comecei a ver resultados muito importantes nos públicos da sala de aula de Design de Moda. São pessoas bem distantes do padrão classe média alta, que andam por aí em desfiles de moda. Na minha experiência em Salvador, eu vi mulheres negras, costureiras de suas comunidades, igrejas e terreiros. São pessoas interessadas na costura.
Em uma entrevista à TV Cultura, você disse que “por meio do padrão de beleza, a gente define quem vive e quem morre”...
Essa fala me lembra que, em 2014, nos reunimos para apresentar uma coleção num desfile do Ceará, em que eu falava sobre diáspora africana. Uma das peças era bordada com paetê transparente e ficou decidido colocar búzios brancos, esses que aparecem nas roupas de axé. Uma das estudantes da disciplina não gostou da ideia e falou que búzio era coisa de pobre. Aí, eu parei o ateliê para discutir o que é coisa de pobre e qual é a cor de pessoa pobre representada a partir de um estereótipo. É importante aproximar esse debate sobre moda, sobre construção da aparência, com a expectativa de vida das pessoas. Não é a toa que a maior parte das pessoas mortas pela polícia é negra. O racismo no Brasil está muito pautado na aparência. Isso inclui vestimenta, gestual, sotaque, corporalidade. Quanto do nosso corpo e da nossa imagem participa dos processos de construção de hierarquias sociais? Uma pessoa trans, por exemplo, é mais atacada do que aquela com passabilidade cisgênero. Para ter essa passabilidade, o fenótipo de pessoa branca garante muito mais paz nessa existência do que o de pessoa negra.
A tentativa do povo negro de reproduzir costumes e características dos brancos é uma forma também de se proteger de agressões?
Sempre foi. Modativismo fala muito disso. Trago a minha história e as minhas experiências pessoais para ilustrar esse debate. Eu busco pelo meio do compartilhamento de experiências pessoais exercer um modo de instrumentalização das minhas estudantes para não ficar a sensação ilusória que a “professora doutora Carol” nunca passou por uma situação de racismo. Eu sou mais um corpo negro por aí. Hoje, temos mais liberdade para escolher modos de nos desenhar, só que isso não quer dizer que as gerações passadas não resistiram.
Você já passou por essa experiência de inadequação na hora de comprar uma roupa?
Esse senso de inadequação começa na experiência de compra. O shopping center, que é o grande feudo das cidades, sempre foi um lugar em que as pessoas são escolhidas para comprar, não o contrário. Houve, por exemplo, uma diminuição da tabela antropométrica de calças jeans para que mulheres gordas e não brancas não frequentassem determinadas lojas. Essa tabela brasileira é racista porque desenha um corpo magro, caucasiano, alto, que não veste nem mulheres brancas brasileiras que tem traços de diversos grupos humanos. Eu passei a desenhar para me ver no croqui, nas revistas, e, também, para elaborar propostas estéticas que me satisfizessem. Por meio da minha trajetória, precisei entender que eu ia ter que me adequar ao padrão esperado pela mídia para que pudesse gerar notícia e, a partir daí, marcar uma história. No livro, falo muito sobre conseguir equilibrar essa força criadora subversiva com a estratégia de resistência dessa ancestralidade, que por um tempo se recheia dos padrões da branquitude para sobreviver. Na verdade, não é só sobreviver, é sobre estar dentro dos ambientes, ver a opressão ocorrer de dentro para fora e se proteger como comunidade. Isso que inspira a criação do Modativismo. Esse aquilombamento.
O número de criadoras negras na Moda tem crescido?
A gente já pode ver uma série de marcas de pessoas negras em ascensão, mas, quantificar o número e a qualidade de mulheres negras tem sido um trabalho árduo. Estou fazendo uma lista enorme de criadores e criadoras brasileiras junto a uma pesquisadora paulista e mulheres perdem em quantidade quando equiparadas aos criadores homens. Se a gente vai para pessoas trans, temos menos ainda. Eu fui coordenadora do primeiro curso de Moda do Instituto Casa de Criadores, em São Paulo, e a gente organizou cotas diversas para o Brasil todo. Há algum tempo, começou a ser um imperativo falar de diversidade na empresa e eu sempre respondi que nunca precisei, porque muito cedo eu pude entender que eu não carrego todas as diferenças, e para ter um espaço plural eu precisava trocar com a maior diversidade possível de pessoas.
A sua proposta é reformular a indústria...
Sim, para que ela passe de fato a entender o que é a intelectualidade manual, para que as pessoas contratadas numa empresa têxtil se aproximem de todo o processo. Isso evita desperdício de material e possibilita que as pessoas se projetem para além do trabalho de produção. Desejo e crio um espaço que inspira a autonomia. Foram dezenas de mulheres que passaram pelo nosso ateliê e todas criaram seus caminhos. Algumas integram a equipe fixa do Modativismo até hoje. Todas profissionalíssimas. Somos um ateliê de prestação de serviço intelectual criativo, e o coletivo Modativismo conta com 20 pessoas. A gente não perde prazo, não entrega acabamento ruim, tudo a custo de muito trabalho, investimento e cuidado entre as pessoas. As demandas vão chegando para mim e eu tenho plena possibilidade de delegar porque confio na equipe, cada pessoa recebendo seu cachê, produzindo dentro de uma esfera maior e tomando suas decisões.
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