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Pai do pai

Publicado segunda-feira, 10 de agosto de 2015 às 14:17 h | Autor: Carla Bittencourt
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O menino era cheio de arte. Jogava bola, ralava o joelho, esmerava-se na traquinagem. Vivia na rua, suado, batendo e apanhando, como os outros de sua idade. O pai conversava, às vezes dava pito, mas não passava disso. Osvalrízio Espírito Santo ensinou algo muito importante a Osvalrízio Júnior, ou Arizinho, seu caçula: quem tem nome incomum tem obrigação de ser direito. Porque, veja, se um Antônio apronta, basta se misturar com aquele mundo de Antônios e ficar ali, diabinho no anonimato. Agora vá um Osvalrízio chutar a bola na vidraça e tentar correr. Arizinho aprendeu logo, mesmo sabendo que aquilo era mais uma alegoria paterna do que um peso para sua identidade. Mais importante tinha sido ganhar do pai o próprio nome, motivo de orgulho para os dois. Já faz um tempo que os papéis entre eles andam meio trocados. A saúde veio cobrar de seu Osvalrízio, 67, um comportamento que ele ainda está aprendendo a ter. Controlar o sorvete, o uísque, a sobremesa, manter as caminhadas, entrar na academia. Aos 36, Arizinho agora é pai do pai também.

O que significa dividir. Cuidar da empresa de recursos humanos, do filho de 7 e da filha de 4 anos e depois do filho mais novo, que já nasceu mais velho até do que ele mesmo. Tem que fiscalizar, dar conselho, levar para o médico, afinal, o pai teve vários diagnósticos complicados de uma só vez. Pressão alta, diabetes, gastrite, gordura no fígado. Semana passada, começaram as sessões de radioterapia para o câncer na próstata. Pensa que o veterinário aposentado está com medo? "Não é nenhum bicho de sete cabeças, não. Daqui a pouco estou zerado".

Relações como essa têm sido cada vez mais comuns. Arizinho faz parte de uma geração pivô, explica a psicóloga Kátia Bernardo, professora da Universidade Aberta à Terceira Idade, projeto da Uneb. Hoje, como os filhos saem de casa mais tarde e os pais vivem mais anos, cabe à geração do meio o papel de cuidar de todos. Também é da nossa cultura não deixar os idosos sozinhos, temos, inclusive, leis que os protegem, como o Estatuto do Idoso, de 2003.

Cada família deve fazer isso do seu jeito, não existe fórmula, defende a psicóloga. Tem quem cuida sozinho, quem se reveza com os irmãos, quem contrata cuidador  profissional e quem recorre aos abrigos. Para os pais dos pais de primeira viagem, Kátia Bernardo acredita que o que vale é o afeto, sem mágoa do passado. Respeitar a autonomia já conquistada - se o pai ainda consegue ir ao banco ou ao supermercado, dar uma volta na orla ou um passeio no parque, é importante que vá - e, sempre que possível, estimular que seja um aprendizado coletivo e intergeracional.

Sobre diferentes gerações, um bom exemplo: nos Estados Unidos, em Seattle, uma creche foi inaugurada dentro de uma casa de repouso. Todos os dias, crianças de 5 anos convivem com 400 idosos e, juntos, eles desenham, merendam, dançam e contam histórias. "Cuidar é uma tarefa importantíssima e, se existe respeito, sempre será prazerosa", observa a psicóloga. Arizinho faz questão de que o filho brinque com os irmãos, melhor dizendo, que o avô brinque com os netos, assim como acontecia em sua infância.
"Temos uma relação de muita cumplicidade", ele explica, e seu Osvalrízio concorda sobre os netos, mas guarda um certo xodó para o pai, quer dizer, para o filho: "Ele é assim por causa da criação, sempre agarrado comigo. E não é só quando estou doente, não, viu, apesar de ser melhor do que o médico.  Ele pode até ser um pouco meu pai, mas é, acima de tudo, meu parceiro".

Estamos preparados?

O Brasil está envelhecendo. Com melhores indicadores de saúde, vivemos hoje cerca de 11 anos a mais do que em 1980. Segundo o último censo do IBGE, há 26 milhões de idosos no país, 13% da população. A projeção para 2060 é de 27%. "O que temos que nos perguntar agora é: estamos preparados para esses idosos?", provoca a gerontóloga Maria Emília Azevedo.

Em dez anos, seremos o 6º país do mundo com o maior número de idosos, o que interfere diretamente nas políticas de saúde, previdência social e na economia. Mas o Brasil segue não apenas ignorando este fato como desrespeitando direitos adquiridos, critica Azevedo. "Temos uma aposentadoria achatada, planos de saúde caríssimos, um sistema de saúde pública deficiente e ainda há quem questione o que os idosos já conseguiram, como o direito à prioridade na fila ou à meia-entrada".

Por isso, às vezes, ser pai do próprio pai é segurar uma barra. Está sendo assim desde que o comerciante Marcos Viana Nunes, 80, foi diagnosticado com glaucoma e, pouco depois, ficou cego. Coube ao primogênito, Marcos Júnior, 50, assumir o Bar do Caboclo e o cuidado com o Caboclo, apelido do pai. Moram só os dois na casa, em Itapuã, onde a família sempre viveu e onde o bar funciona - uma pequena mercearia, na verdade, com umas mesinhas para o cliente que vai buscar um fósforo ou um sabão e também tomar um trago.

Seu Marcos dorme no quartinho atrás da venda e Júnior improvisa uma cama pelo chão. O quarto maior, que ficava perto do quintal, pegou fogo e, com o movimento fraco do comércio mais o tempo que o pai demanda de atenção, ainda não deu para recuperá-lo. Os outros seis filhos e a ex-mulher ajudam como podem. Um irmão manda o almoço, uma irmã manda sopa, mingau. Os outros visitam. "Mas 80% do grosso fica para mim", diz Júnior.

Dar o café, o banho, despachar os clientes, dar o remédio da pressão, o almoço, arrumar para o cochilo da tarde, voltar para os clientes, dar a merenda, pingar o colírio, fechar o caixa, limpar o bar, dar o café, os outros remédios, colocar na cama até começar tudo de novo. E ter paciência. Porque nem sempre aquele senhor, que já foi um enérgico dono de barraca de praia, obedece. A barba mesmo, só deixa fazer quando quer. Júnior apela para as pilhérias que ouvia na infância: "Tá me ouvindo não? Tá com o ouvido no cabo, é? Quem não toma banho é maluco".

Ser pai do próprio pai é ter coragem. Para saber que cada dia que passa ele vai estar mais fraquinho, que pode cair. Júnior nos leva ao quarto de seu Marcos, que numa manhã chuvosa está deitado, levanta meio a pulso e diz com muito esforço: "Estou cansado".  Coragem, porque a vida passa também para o filho, que ainda sonha  ser músico. Que não teve filhos, mas virou pai de um senhor de 80 anos. Por respeito, Júnior vai desempenhar seu papel até o fim, sempre com esse norte: "A maior riqueza do homem é o tempo".

A velhice é feminina

Em uma cooperativa baiana de cuidado a idosos e pessoas com dependência, a Cuidacoop, constatamos que a velhice é feminina. Os idosos de hoje foram rapazes que se expuseram mais, principalmente ao trabalho, e que não tinham o hábito de se cuidar. Resultado: a expectativa de vida das mulheres é sete anos maior, ressalta a terapeuta ocupacional Selma Ribeiro.

Outro dado relevante: as mulheres também são maioria quando o assunto é cuidar dos mais velhos. Das 50 famílias cadastradas nessa cooperativa, por exemplo, menos da metade tem filhos ou netos à frente da assistência aos idosos. Para os homens, fica o papel de mantenedor: o que paga as contas, organiza e supervisiona. "É o reflexo de uma sociedade onde brincar de boneca e de casinha sempre foi coisa de menina".

Para Selma Ribeiro, a situação só vai mudar educando as pessoas. "A gente não discute sobre envelhecimento ou, quando faz, é de forma atrasada, relacionando apenas à saúde e não à qualidade de vida. Ficamos inventado nomes, terceira idade, melhor idade. O nome é velhice. Queremos viver muito e, ironicamente, negamos a velhice, tentamos escondê-la".

Dito isso, o leitor entenda que é difícil achar histórias como a do funcionário público Sílvio Viana, 53. Há dois anos, o pai dele, seu Leonel Viana, 81, está acamado. Artrose nos joelhos e um princípio de Parkinson transformaram tarefas cotidianas em lutas diárias: levantar, andar, ir ao banheiro, trocar de roupa. "O começo foi um baque, a gente não sabia o que fazer".
Foram intuindo. Adaptaram uma cama hospitalar na sala, para seu Leonel não ficar isolado. Imprimiram em papéis com letras bem grandes os telefones mais importantes, os horários dos remédios e os exercícios de fisioterapia e colaram no espelho e na parede, para não ter desculpa de esquecer. Na época, Sílvio também cuidava da mãe. "Cansei de dar banho nela, que eu nunca tinha visto sem roupa".

As estatísticas não valeram nessa casa, e seu Leonel ficou viúvo. Sílvio, que ainda tinha cuidado dos sogros, manteve a função, mas, por causa do trabalho, precisou dividi-la com os quatro irmãos e com uma cuidadora. Ele vai à casa do pai quase todos os dias e dorme às terças. Assumiu a tarefa de trazer as compras, as roupas, as fraldas e os remédios. De não deixar faltar nada, que era o que seu pai fazia quando todos eram meninos. "Era a maior folia ir com eles ao mercado. Deixava pegar biscoito, queimado, um saquinho de gude e voltava todo mundo contente", conta seu Leonel.

É ele quem lembra também o trabalho que aqueles meninos davam quando se mandavam para pescar piaba, no tempo em que Avenida Garibaldi ainda tinha um rio.  Aponta para Sílvio e quase revive a cena: "Ele sempre foi mais esperto. Quando eu ia bater de sola, já tinha fugido para a rua!".  Sílvio, que é pai de uma moça de 29 e de um rapaz de 26, diz que está vivendo a lei do retorno e que um dia será a sua vez. "Não tenho dúvidas de que meus filhos farão o mesmo por mim".

Cuidado em casa

O filho que inverte com o pai o papel de cuidar deve saber que o maior medo dos idosos não é a morte: é se tornar dependente, diz o geriatra Leonardo Salgado. Não poder mais tomar decisões e executá-las. Outro medo é o de ser abandonado, perder as visitas, mesmo as sem motivo.

Diretor médico de uma empresa de home care, a Assiste Vida, o geriatra enfatiza que o melhor cuidado é o que acontece em casa. Ambiente hospitalar para idosos só é recomendado em casos mais críticos. Não é uma tarefa simples, porém. "O cuidador também precisa cuidar de si, ter uma higiene mental muito boa para saber agir".

Foi o que fez o publicitário Marco Ballena, 49, não apenas para tomar conta do pai, mas de si mesmo. Seu Arivaldo Ribeiro nunca escondeu certo desgosto pelo filho que largou a escola e só queria saber de música. Marco fazia que não, mas tinha uma ponta de mágoa por não caber naquele papel de empresário engravatado.

O caminho foi duro: ele teve câncer duas vezes e infartou uma. Sobreviveu para ser uma pessoa mais leve e a única disponível para cuidar do pai quando o Alzheimer chegou, aos 70 anos. "Fizemos coisas simples e mágicas, como bater perna na Avenida Sete, comer feijão com macarrão e cacetinho mergulhado no café". Marco ensinou o pai a rir do que sempre tinha criticado.

E riram muito juntos, pai, filho e a neta, de 16 anos. Ouvindo os discos que o filho gravou, seu Arivaldo era todo exclamação: "Gordinho, que batida!". Hoje é o primeiro Dia dos Pais sem ele, e Marco sente que a experiência foi um resgate. "A gente nunca deve perder tempo para amar". 

> Pai, avô e bisavô cuida de toda a família aos 102 anos

Seu Edgar Silva, 102, não dá entrevistas de manhã por causa do trabalho. Foi trabalhando que chegou aos três algarismos na idade, sugere, desfazendo o segredo de seu muito viver. Nascido em Andaraí, na Chapada Diamantina, ele começou cedo, aos 11 anos, atendente de farmácia. Como era pobre, fez do estudo uma linha reta e também cedo se diplomou, abriu escritório, casou.

Dos cinco filhos, 10 netos e oito bisnetos, nenhum inverteu com ele a lógica do cuidado. Não por ingratidão, mas seu Edgar manteve o posto: é a ele que recorrem todos, seja para conselho, carinho ou consulta com esse advogado que só aposentou no papel. "Eu não parei, e é isso que me dá alegria". Lúcido, ele espera o próximo aniversário. E, à família, fica a sorte de aproveitá-lo.

> Aos 21 anos, Fernando Aguzzoli  teve filha de 80

O gaúcho Fernando Aguzzoli, 24, virou pai da avó. Em 2011, quando dona Nilva foi diagnosticada com Alzheimer, ele trancou a faculdade de filosofia e escanteou a pequena empresa que estava abrindo para cuidar dela. De um jeito intuitivo - como afinal é a paternidade - e bem-humorado, os dois  atravessaram juntos o tempo de se despedir da memória e inventar novas. Assim foi até o fim.

A experiência rendeu uma página no Facebook e um livro, batizado com a pergunta que Nilva adorava repetir: Quem, eu? Teve a vez em que ela queria achar no próprio corpo uma tatuagem que nunca existiu. "O material do cara era tão ruim que deve ter saído no banho", se explicou.  Certa vez, se encantou com Fernando: "Como tu és lindão. Se não fosses meu primo...". Quando soube que era o neto, rebateu: "Pelo menos não errei que te amo".

Hoje Fernando quer estudar psicologia e conta em palestras pelo Brasil que retribuiu o que ganhou. Aprendeu com a filha de 80 anos a valorizar o agora. "Não sei como vai ser amanhã, mas não quero me arrepender de hoje". No amanhã, cabe uma filha criança. "Sinto saudade de cuidar de alguém".

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