CONTANDO OS DIAS
Vítimas da poluição convivem com doenças irreversíveis em Areias
Comunidade associa alta incidência de enfermidades à exposição de décadas a metais pesados lançados pela Tronox na água e no ar
Às margens da estrada do coco, a poucos metros da praia, uma estrutura destoa da paisagem. Das dependências da indústria química Tronox, instalada há 53 anos no litoral de Camaçari, uma chaminé libera grandes quantidades de fumaça tóxica.
A vegetação esbranquiçada, contrastando com o cinturão verde que se estende pela orla, denuncia que algo ali vai muito mal. Moradores do condomínio Interlagos já tiveram problemas com a fábrica - que produz pigmentos para tintas a partir de dióxido de titânio -, devido ao forte odor que exala da lagoa que margeia as residências.
Mas é do lado oposto ao mar, na pequena comunidade de Areias, que décadas de poluição mostram seus efeitos mais cruéis. São pais, mães, filhos, netos e sobrinhos, maridos e mulheres, marcados pela poluição.
Após assistirem e sofrerem na pele os danos de doenças crônicas, os moradores de Areias estão cansados de denunciar, mas, ainda assim, se unem para tentar fazer com que suas vozes sejam ouvidas.
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Herança maldita
Mariele da Silva tem 45 anos e há 13 perdeu a mãe com insuficiência renal. Há quatro meses, reviveu a perda, agora com o pai, vitimado pela mesma doença. “Fumaça, águas poluídas, minha mãe mariscava, meu pai pescava, os dois nascidos e criados aqui. Bebiam água do rio e começaram a adoecer até falecer. Meu pai fez 10 anos de hemodiálise, minha mãe só fez 6 meses”, recorda Mariele que acompanha com apreensão o tratamento da tia, diagnosticada com um câncer de mama.
“Certeza que é decorrência da poluição. Meu filho já deu várias entradas na UPA com falta de ar, tossindo muito. Aqui tem muita fumaça, tem dia que amanhece tudo branco da fumaça”, denuncia.
Cleide Bonfim, 39 anos, é prima de Mariele e também tem histórias de sofrimento provocado pela exposição a metais pesados. Há um ano iniciou tratamento para pedra no rim. A insuficiência renal lhe rendeu dois infartos e quatro cirurgias.
“Às vezes ando daqui a ali e já me sinto cansada, é neblina, cheiro forte. Aprendi a nadar no rio, bebia daquela água, minha mãe lavava roupa ali, hoje em dia você vai tem aquela nata de poluição no rio. Essa fábrica só veio para cá para prejudicar a gente”, diz, se referindo à Tronox.
Severina Alves, 58, teve câncer de tireóide 20 anos atrás e há 3 iniciou o tratamento de um câncer de mama. Ela é uma das 10 pacientes de Areias que fazem acompanhamento oncológico no Aristides Maltez. “O índice de câncer aqui em Areias tá muito, agora tem muita gente que não fala”, diz Severina, que costuma encontrar vizinhos nas sessões de tratamento.
Descarga mortal
Humberto Francisco de Paula, 75 anos, trabalhou na antiga Tibrás e conhece bem os efeitos da fumaça expelida pela chaminé que pode ser vista às margens da rodovia. “Quando baixava a fumaça, queimava ‘esses mato’ tudo aí na frente”.
Em uma dessas descargas, seu Humberto recebeu a notícia mais dura de sua vida. “Eu estava trabalhando lá (Tibrás) quando recebi a notícia que meus filhos estavam tudo no chão, já. Eles mesmos (a empresa) vieram de lá pra cá, pegou, internou e veio buscar o rabecão pra pegar o menino no quintal e levar pro Nina. Já saiu daí morto”, lembra Humberto, que só conseguiu recentemente a certidão de óbito do filho, segundo ele, retida pela empresa por mais de 40 anos. Roberto Soares de Paula morreu com um ano de idade, de broncopneumonia.
Maria Lúcia dos Santos, 62, sobreviveu à fumaça, mas sua qualidade de vida foi comprometida de forma definitiva. Em 1992, ela conta que estava em casa por volta de meia-noite – os moradores relatam que as maiores liberações de gases ocorrem na madrugada -, quando houve uma descarga de fumaça. “Comecei a arder o nariz, a garganta, dor de cabeça, febre. Eu fui parar na emergência e lá eu já tava com os pulmões comprometidos”, relata Maria Lúcia.
Ela lembra que a médica que a atendeu não deu muitas esperanças. “Ela me desenganou. Disse que eu estava com os dois pulmões tomados”, recorda. Para evitar o pior, Maria Lúcia conta que teve que tomar 70 injeções de óleo “pra poder permanecer viva”.
“Daí pra cá, eu não tive mais sossego. Quando chove eu não fico aqui, porque o mau cheiro desce, arde nariz, a garganta, tenho que tomar corticóide. Já estou com problema no coração de tanto eu tossir. O médico já me pediu tantos exames, mas eu não tenho condição de fazer, eu não trabalho”, queixa-se a dona de casa, que cobra da empresa alguma assistência diante do histórico de doenças decorrentes da poluição.
“Todos nós aqui passamos por isso. Pessoas morrem, pessoas ficam doentes, nosso solo está do jeito que está, todo deteriorado, nossas plantas morrem e nós não temos mais como sobreviver da agricultura. Nosso rio está poluído. Tem dias que isso aqui parece que está caindo neve, mas não é, é poluição”, indigna-se Maria Lúcia, que cobra mais atenção da empresa e do poder público.
“Nosso povo está morrendo, outros estão doentes, as crianças ficam cansando e que condições nós temos de correr atrás de um exame? Exame caro, medicação cara. Então nós temos que procurar nossos direitos. Eu vou gritar até o fim porque eu tenho família e aqui é uma comunidade”.
Gerações condenadas
Leila Soares Nascimento, 41, é mais uma da comunidade que carrega as marcas da poluição. A tosse persistente é o sinal mais evidente da perda de qualidade de vida. “De noite que eu fico mais sufocada, durante o dia se eu ficar no fundo da minha casa, quando a fumaça bate eu fico pior ainda. Eu fico com falta de ar e começo a cansar mais forte”.
O filho de 2 anos segue o mesmo caminho e também já apresenta um cansaço incomum para uma criança dessa idade. “Ele não cansava não, de um ano pra cá começou também a cansar”, diz Leila, que também sofre com a falta de diagnóstico e tratamento adequados. “A gente vai e vem na UPA, só piora, dão medicação para os sintomas, mas não investigam”.
Pedro Góes, 65, foi segurança em Interlagos e hoje é dono de um bar em Areias. Há um ano perdeu a esposa para o câncer. “Ela tinha problema de respiração, duas a três vezes por semana eu levava ela para a UPA, puxando, não achava o ar. Foi indo, foi indo, foi indo, até que Deus levou, toda ‘barreada’ com problema de câncer, de tudo”.
Para ele, não há dúvida de que a poluição foi responsável pela perda da companheira. “Qualquer tanto que cavar, meio metro que cavar, a água já sai assim aquele negócio vermelho, parecendo óleo. Se você cavar o chão sai até enxofre debaixo do chão”, relata Pedro.
Ele lembra que a Tronox fornecia água para os moradores de Areias mas suspendeu a entrega há cerca de quatro anos. “Se não é a Embasa que entrou com água não sei o que seria da gente. De primeira a gente bebia água de poço, depois que poluiu não tinha mais condições de beber água de poço”.
O consumo da mesma água extraída do lençol freático é apontada por Carlos Cardoso, 67, como responsável pelo câncer que atingiu o seu joelho e culminou com a amputação de uma de suas pernas.
“Eu cheguei aqui em 94. Comecei a beber água de cisterna, mesmo filtrada não era boa. A água era meio amarelada, tipo uma ferrugem, devido à própria produção da Tronox, eles usam o ferro e o ácido sulfúrico, o enxofre, deixa o chão todo com cor de ferrugem”.
Cardoso tem mobilizado a comunidade para cobrar, na justiça, a responsabilização da Tronox para, pelo menos, arcar com a investigação e tratamento das doenças que sejam comprovadamente resultantes da exposição à poluição. “Queremos que a Tronox se manifeste e faça uma audiência pública aqui para esclarecer e fazer justiça”.
Laudos comprovam contaminação
Um laudo produzido em 2015 pela Fundação José Silveira e encaminhado ao Ministério Público, no procedimento que apura o descumprimento do TAC firmado em 2012 para cessar a poluição do lençol freático, comprova a presença de titânio, ferro, alumínio, manganês, zinco, Bário, Boro, Cobalto, chumbo, níquel, cromo e sulfato de enxofre nas águas subterrâneas.
Apesar disso, as licenças ambientais seguiram sendo renovadas pelo Inema, órgão estadual responsável pelo meio ambiente. Em dezembro de 2023, provocado pelo MP, o Inema realizou uma vistoria na planta da Tronox, que resultou numa multa de R$ 400 mil por “não realizar o monitoramento contínuo do parâmetro material particulado no ar atmosférico da localidade de Areias” e pelo “armazenamento de matérias-primas sem cobertura e sem contenção (...) com risco de poluição ambiental”.
Na vistoria realizada pelo Inema foram detectadas as presenças de ferro, alumínio, manganês e zinco nos poços localizados no terreno da fábrica. Segundo Vladmir Cláudio Cordeiro de Lima, médico Oncologista clínico e membro do Comitê de Oncogenômica da SBOC (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica), o níquel é classificado como carcinógeno tipo 1 pela IARC (agência internacional de pesquisa em câncer).
Ele acrescenta que a presença desse metal no sangue está associada a leucemias agudas, câncer de pulmão e de seios nasais. Além disso, o chumbo, outro dos metais encontrados no lençol freático de Areias, está diretamente ligado ao câncer de rim.
Ana Flávia Moura é médica nefrologista e presidente da Sociedade Brasileira de Nefrologia, seção Bahia. Ela reforça o perigo da ingestão prolongada de metais pesados para o funcionamento doas rins.
“A intoxicação por metais pesados como níquel, chumbo, cobre, pode causar lesões renais. No início da exposição essas lesões acontecem da forma aguda, que é quando a gente consegue intervir e reverter essas lesões. Para que essas lesões agudas não se tornem crônicas a gente precisa interromper a exposição ao agente intoxicante o mais precoce possível”, diz Ana Flávia, destacando a gravidade da omissão e da demora em interromper o lançamento de resíduos poluentes no subsolo.
“Se a exposição ao agente tóxico persistir, essas lesões agudas podem se transformar em fibroses, que são lesões crônicas ou seja, com caráter irreversível. Se a gente não instituir o tratamento no momento adequado, essas lesões irreversíveis podem ir evoluindo e aumentando a área de tecido renal comprometida e pode atingir os últimos estágios da doença renal crônica, quando há necessidade de diálise ou de transplante renal”, alerta a Dra., deixando evidente a irresponsabilidade de não se realizar monitoramento de saúde da população do entorno de uma área reconhecidamente afetada pela poluição.
E os danos não estão restritos ao sistema renal, como os moradores de Areias são capazes de atestar. “Além de distúrbios renais, esses agentes tóxicos, esses metais pesados, eles podem causar distúrbios neurológicos, gastrointestinais, dermatológicos e respiratórios, inclusive muitas vezes distúrbios graves. No pulmão, por exemplo, pode acontecer fibroses, assim como nos rins, e essa fibrose pulmonar também tende a progredir e gerar perda de função pulmonar naquele paciente, que também vai reduzir sua expectativa de vida e sua qualidade de vida”.
O que diz a Tronox
A reportagem de A TARDE solicitou posicionamento à Tronox quanto ao monitoramento da emissão de metais pesados e o acompanhamento da saúde dos moradores do entorno. A resposta segue abaixo:
“A Tronox opera suas nove plantas de pigmento de dióxido de titânio, localizadas em seis continentes, de forma responsável nos aspectos social, ambiental, produtivo e econômico. A empresa considera a Sustentabilidade fator estratégico do negócio, atuando de forma a garantir o alcance das suas metas por todas as plantas. No Brasil, e demais países onde opera, atende rigorosamente as legislações vigentes e vai além, investindo em tecnologia, inovação e capacitação de suas equipes para manter padrões de sustentabilidade em constante evolução, realizando sua operação de forma segura para o meio ambiente, seus funcionários, comunidades vizinhas e clientes”.
Veja reportagem no A TARDE Play:
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