ENTREVISTA – MACAÉ EVARISTO
‘Segurança Pública não deve ser sinônimo de medo’, diz Macaé Evaristo
Ministra dos Direitos Humanos defende mudanças na formação de agentes de segurança e afirma que é preciso democratizar o debate sobre o tema
Por Divo Araújo

Se a Segurança Pública ainda provoca medo em vez de proteção, algo precisa mudar — e é justamente esse modelo que a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, quer transformar. Para ela, é urgente abandonar a lógica que trata determinados grupos como inimigos e garantir que todos sejam reconhecidos como cidadãos a serem protegidos.
“É fundamental reforçar a ênfase em Direitos Humanos na formação dos agentes de segurança pública”, afirma a ministra, em entrevista exclusiva ao A TARDE. “Infelizmente, ainda há grupos sociais que não são vistos como cidadãos, mas como ameaças”, lamenta.
Mulher negra à frente de um dos ministérios mais simbólicos do governo, Macaé esteve na Bahia no início do mês para o lançamento da campanha “Justiça Climática é Justiça Social”, promovida pela Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos. Na entrevista, ela detalha ações para enfrentar o racismo estrutural, prevenir o assédio no serviço público e ampliar os direitos de povos tradicionais e comunidades vulneráveis.
A senhora veio recentemente à Bahia para o lançamento de uma campanha da Defensoria Pública sobre Justiça Climática. Sabemos que as mudanças climáticas afetam com mais intensidade as populações em situação de vulnerabilidade social. De que forma o Ministério dos Direitos Humanos atua para proteger e melhorar as condições de vida dessas pessoas?
O Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania tem atuado de forma transversal para garantir que os direitos das populações vulneráveis sejam protegidos frente aos efeitos crescentes das mudanças climáticas. Isso envolve tanto ações diretas quanto a articulação com outros órgãos e instâncias do poder público. Entre as principais iniciativas, destaco o “Guia de Orientação para Pessoa Idosa em Situação de Riscos e Desastres”, que fornece informações práticas sobre como identificar riscos, se preparar e agir em emergências. O material orienta sobre os principais perigos relacionados a desastres naturais e tem como objetivo fortalecer a autonomia e a segurança das pessoas idosas em todo o país. Entre os grupos mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas estão os povos indígenas, quilombolas e outras comunidades tradicionais, cujas vulnerabilidades estão muitas vezes ligadas à disputa por territórios. O que o ministério pode fazer para prevenir esses conflitos e garantir a proteção desses povos? Nós temos atuado para fortalecer a proteção de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais por meio da escuta ativa, articulação institucional e monitoramento de violações de direitos. A atuação inclui o acompanhamento de conflitos fundiários e ambientais, apoio à regularização de territórios e fortalecimento de canais de denúncia, como o Disque 100, que desde 2023 conta com protocolo específico para emergências e desastres.
O Brasil vai sediar, neste ano, a COP 30. A senhora pretende levar o tema da justiça climática para a conferência climática?
No meu entendimento, a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima será uma grande oportunidade para debater esses temas e buscar soluções para a crise que, infelizmente, já enfrentamos. A oportunidade se mostra ainda mais evidente, por reunir lideranças de todo o mundo este ano em Belém, no Pará, para tratar da pauta. Esse é um momento que estamos aquecendo os corações rumo à COP 30, porque, além de fazer políticas públicas no nosso país, entendemos que precisamos de um pacto global para efetivamente proteger o nosso planeta.
A Bahia é o segundo estado com maior número de povos indígenas e abriga também um grande número de comunidades quilombolas. De que forma o ministério tem atuado, em parceria com o governo estadual e as prefeituras, para proteger e melhorar as condições de vida dessas populações?
Nós temos atuado em parceria com governos estaduais, prefeituras e universidades públicas para fortalecer os direitos de populações indígenas, quilombolas e tradicionais. Um exemplo é o Programa Viva Mais Cidadania, que promove ações voltadas à valorização da população idosa em territórios vulneráveis, com atenção às especificidades étnicas, sociais e territoriais.
A senhora tem defendido a construção de pontes entre o setor público e o privado para promover um desenvolvimento sustentável, justo e centrado nos direitos humanos. Como essas parcerias têm se desenvolvido até agora?
Temos trabalhado para fortalecer o diálogo com o setor privado a partir de uma agenda comum baseada nos princípios dos direitos humanos, da responsabilidade social e da sustentabilidade. Entendemos que o desenvolvimento só será efetivamente justo se envolver todos os setores da sociedade. Nesse sentido, o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania tem buscado ampliar parcerias com empresas, organizações da sociedade civil e instituições acadêmicas, com foco na inclusão produtiva, no combate à discriminação, na valorização da diversidade e na promoção de ambientes seguros e acessíveis para todos. Essas parcerias têm se refletido em ações como programas de capacitação, inserção de públicos vulneráveis no mercado de trabalho, incentivo à responsabilidade corporativa e apoio a iniciativas de impacto social. O setor privado tem um papel estratégico nesse processo e, quando atua com compromisso ético, se torna um aliado importante na construção de um país mais justo e inclusivo.
Em relação à realidade urbana da Bahia, chama atenção o aumento expressivo dos assassinatos de jovens negros, enquanto os índices entre jovens brancos vêm diminuindo. O que o Estado pode e deve fazer para proteger essa parcela da população?
O debate sobre Segurança Pública precisa ser democratizado. Estamos elaborando a Tecer Direitos Humanos - Rede Nacional de Educação em Direitos Humanos e um dos segmentos com que pretendemos trabalhar são os agentes de segurança. Outro projeto que gostaria de destacar é o “Vidas Protegidas”, que visa fortalecer a atuação do Estado brasileiro contra a violência letal contra crianças e adolescentes, com base em ferramentas, estratégias e análise de dados, promovendo o mapeamento da rede de atendimento às vítimas de violência armada e a articulação entre diferentes esferas e setores do poder público neste aspecto.
A senhora tem defendido mudanças na formação das forças policiais no Brasil. Na sua avaliação, essas mudanças são viáveis em um horizonte de tempo razoável ou as resistências ainda são muito grandes?
Segurança Pública é um direito de todos e o debate sobre ela precisa incluir todo mundo. Temos que ter a participação das comunidades, dos movimentos sociais e das associações locais. Só assim vamos conseguir fazer mudanças reais. Um ponto que precisa mudar é a ênfase em Direitos Humanos na formação dos agentes de segurança pública. Essa formação deve enxergar todos como cidadãos para serem protegidos, mas, infelizmente, alguns grupos sociais não são vistos assim, são vistos como inimigos. Queremos conversar sobre isso e ajudar a melhorar esse processo. Também temos nos empenhado para demonstrar que Direitos Humanos não são uma pauta para defender “bandidos”, como alguns segmentos alegam para desvirtuar o debate. Direitos Humanos são para proteger todo mundo. Por isso, criamos no ministério a rede Tecer Direitos Humanos, que vai reunir cursos e ações sobre direitos humanos, juntando órgãos do governo, organizações internacionais, sociedade civil e universidades. Além disso, estamos reforçando a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos para garantir que as denúncias de abusos sejam atendidas com celeridade. O diálogo com o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), governadores e sindicatos têm ajudado muito nesse caminho. Sabemos que mudar tudo isso não é fácil, mas é possível e necessário. Segurança Pública tem que ser sinônimo de proteção, respeito e cidadania — nunca de medo ou exclusão.
A senhora é uma mulher negra que chegou a um lugar de destaque ainda pouco acessível para a maioria das mulheres negras no Brasil. O que pode ser feito para mudar essa realidade de desigualdade racial ainda tão dominante?
A desigualdade racial e de gênero é estrutural no Brasil, com raízes históricas profundas. Mudar essa realidade exige reconhecer o racismo estrutural e promover políticas públicas com recorte de raça, gênero e classe. O governo Lula tem valorizado trajetórias populares e lideranças femininas, especialmente negras, na formulação de políticas. Programas como o Empodera+ são exemplos concretos, ao fomentar a autonomia política e econômica de mulheres negras e periféricas nos seus próprios territórios. Também houve avanços significativos na ocupação de espaços de poder: hoje, 76% dos cargos de direção criados no atual governo são ocupados por mulheres, e a presença feminina em cargos de liderança aumentou de 34,9% em 2022 para 39,2% em 2025. Esses dados mostram que é possível construir um Estado mais representativo e comprometido com a justiça social.
A violência digital e a proteção de crianças, adolescentes e idosos no ambiente virtual são prioridades do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Que tipo de resposta o Estado brasileiro deve dar às plataformas digitais que se omitem no combate a essas práticas criminosas?
Tenho defendido a necessidade da regulamentação das plataformas digitais para proteger crianças, adolescentes e idosos em ambiente digital. E tenho alertado para a falta de legislação suficiente para combater a violência no ambiente digital direcionada às mulheres, crianças e adolescentes, idosos nestes ambientes. Medidas anunciadas pelas plataformas digitais, como o a redução de filtros/moderação e o fim da checagem, potencializam a difusão de discursos de ódio e a desinformação. O MDHC tem trabalhado para combater a violência no ambiente digital com a criação de canais de denúncia e a promoção de ações de prevenção e de combate à violência contra crianças, adolescentes e idosos. Tenho participado de encontros e debates para discutir a regulamentação das plataformas digitais e a proteção de crianças, adolescentes e de idosos no ambiente online. Esses debates têm se intensificado com diferentes perspectivas sobre a responsabilidade das empresas e a necessidade de equilibrar a liberdade de expressão com a proteção dos direitos fundamentais.
O ministério tem atuado com campanhas de prevenção, canais de denúncia e na divulgação de materiais educativos, como o Guia para Uso de Dispositivos Digitais, elaborado pela Secretaria de Comunicação Social (Secom) em parceria com a Unesco. Nosso ministério também elaborou a Cartilha Direitos Humanos das Pessoas Idosas no ambiente virtual. Defendemos uma legislação que responsabilize as plataformas pela moderação de conteúdos perigosos e incentive um ambiente digital mais seguro. É possível equilibrar a liberdade de expressão com a proteção dos direitos fundamentais, em especial o direito à vida, à dignidade e à integridade de quem está mais exposto à violência digital.
Para concluir, ministra, quando a senhora assumiu a pasta dos Direitos Humanos, no lugar de Silvio Almeida, destacou a importância de ampliar o debate sobre o assédio na sociedade brasileira. A senhora acredita que estamos avançando nesse processo?
O assédio foi por muito tempo normalizado na sociedade brasileira, em diversos ambientes — governos, empresas, igrejas —, mas hoje esse comportamento não é mais tolerado. O ministério criou o Plano de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio, alinhado ao programa federal instituído em 2024, que atua contra o assédio moral, sexual e outras formas de discriminação no trabalho. O plano prevê ações de prevenção, proteção às vítimas e denunciantes, processos disciplinares que alcançam até terceirizados, e foco especial em grupos vulnerabilizados. Além disso, o ministério oferece acolhimento psicológico gratuito e sigiloso para servidores, promovendo a saúde mental e o bem-estar no ambiente de trabalho. Também mantemos um canal ético de denúncias, gerido com sigilo absoluto pela Comissão de Ética, que garante segurança para possíveis retaliações e trata as denúncias com rigor e imparcialidade. A Comissão promove ações educativas para fortalecer uma cultura ética e de respeito. Essas iniciativas, junto ao compromisso firme da gestão atual, mostram que estamos construindo um ambiente institucional mais digno, seguro e respeitoso, e que o debate sobre o assédio está avançando no país.
Raio-X
A ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Maria Evaristo dos Santos, tem trajetória marcada pela educação, pela luta antirracista e pelo ativismo em defesa dos direitos humanos. Professora e assistente social, foi secretária de Educação de Minas Gerais e de Belo Horizonte, além de ter exercido mandatos como vereadora e deputada estadual. É graduada em Serviço Social pela PUC-MG, mestre e doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Também integrou a equipe de transição do governo Lula. No governo Dilma Rousseff, foi titular da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, do Ministério da Educação.
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