ENTREVISTA - GUILHERME CAPUTO
‘Torcedor infrator será banido de todos os estádios do país’
Ministro do TST afirma que torcedores envolvidos em violência ou discriminação poderão ser formalmente banidos dos estádios, com o apoio de tecnologia
Por Divo Araújo

Torcedores envolvidos em atos de violência ou discriminação poderão ser proibidos de frequentar qualquer estádio do país. A medida está sendo elaborada pelo grupo de trabalho Paz nas Arenas, criado pelo Conselho Nacional de Justiça para reforçar a atuação do Judiciário em eventos esportivos, sob coordenação do ministro do TST e conselheiro do CNJ, Guilherme Caputo.
Em Salvador, durante o seminário Racismo no Futebol – O Combate à Discriminação nos Estádios, promovido pelo Tribunal de Justiça da Bahia (TJ-BA), Caputo detalhou em entrevista exclusiva ao A TARDE as iniciativas em curso para ampliar a segurança nos estádios.
Entre elas estão o registro dos integrantes das torcidas organizadas, vinculados ao CNPJ das associações — que responderão por atos de violência —, o uso ampliado do reconhecimento facial para barrar infratores e a criação de um banco nacional de torcedores banidos. “O estádio precisa voltar a ser espaço de paz e convivência”, diz. Saiba mais na entrevista a seguir.
Ministro, o senhor participou do seminário “Racismo no Futebol – O Combate à Discriminação nos Estádios”, promovido pelo CNJ e pelo TJBA. De que forma o Poder Judiciário pode contribuir de maneira efetiva para coibir e punir práticas de racismo e outras formas de discriminação nos ambientes esportivos?
Uma das coisas de que mais gostei, quando o pessoal do marketing do Tribunal de Justiça da Bahia começou a bolar o evento, foi que eles cunharam uma expressão que, a meu ver, traduz perfeitamente o objetivo do trabalho que desenvolvemos hoje: ‘discriminação não entra em campo’. Ao trabalharmos o racismo, a gente acaba trabalhando toda forma de discriminação. Por que o Judiciário? Porque o Judiciário é o catalisador para aproximar a sociedade civil organizada e, sobretudo, os parceiros mais próximos — a Ordem dos Advogados do Brasil, os promotores, o Ministério Público Estadual e Federal, as Defensorias Estaduais e Federal, enfim, todos aqueles players que compõem o sistema de Justiça —, por meio da troca de informações. Hoje mesmo nós tínhamos um número bastante significativo de pessoas nos acompanhando virtualmente. Através dessa troca de ideias, você vai formulando políticas para acabar com essa chaga impressionante. Acabamos de ouvir, de viva voz, o empresário e grande presidente do Bahia, Guilherme Bellintani, relatar que um time do México deixou de contratar um jogador brasileiro e optou por outro da mesma agremiação. Ao ser questionado por que levava aquele e não o outro, considerado muito melhor, respondeu: lá no México, o de pele clara sofre menos pressão do que o de pele escura. Nós estamos em 2025 e ainda enfrentamos esse problema. É por isso que eu emprestei desde o início - claro que, antes, consultei o presidente do CNJ e meus colegas -, mas o Conselho quis chancelar esse evento pela importância de ter esse tema à mesa para que a gente possa refletir.
O senhor mencionou os grandes players da Justiça, mas este evento também reúne clubes, árbitros e vítimas de discriminação. Como avalia a importância de integrar esses diferentes setores da sociedade no enfrentamento desse problema?
Veja, hoje tivemos aqui uma auditora do Superior Tribunal de Justiça Desportiva do futebol, além do defensor que atualmente preside o Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Baiana. Trazer essas pessoas enriquece o debate porque elas estão na linha de frente. Não estamos trabalhando apenas no aspecto prático, nem somente no teórico. Precisamos melhorar a Lei Geral do Esporte, o Código Brasileiro de Justiça Desportiva e as normas em geral. Hoje foram feitas diversas reflexões e, a partir delas, buscamos aperfeiçoar essa normatização. O Judiciário, como afirmei há pouco, é um catalisador e, a partir dele, reunimos todos esses atores. Por exemplo, ouvimos o representante do Vitória, que trouxe uma imagem marcante de como o esporte pode ser inclusivo e colaborativo, promovendo o bem-estar com campanhas de doação. Ele lembrou de uma ação que me chamou muito a atenção: uma camisa do Vitória que, à medida que o nível de doação de sangue crescia, ganhava mais vermelho sobre o branco. Além disso, o esporte é inclusivo porque oferece oportunidades únicas a quem, muitas vezes, só as encontra nesse espaço. Enfim, com todos esses players reunidos, acredito que seremos capazes de produzir boas conclusões numa carta final deste encontro.
O senhor coordena o grupo “Paz nas Arenas”. De forma prática, como esse grupo atua e quais medidas concretas já foram ou serão implementadas para enfrentar a violência, o racismo e a homofobia nos estádios brasileiros?
O que já estamos colhendo efetivamente? Possivelmente, já no final do mês, teremos a autorização para que, na certidão de antecedentes criminais, conste a decisão do Juizado do Torcedor banindo o torcedor infrator dos estádios. Ele não poderá frequentar nem o estádio onde foi punido, nem qualquer outra arena do país. Essa condenação pelo Juizado do Torcedor estará vinculada a outra atividade mais complexa. Devo entregar também, ainda neste final de agosto, uma derivação do nosso Banco Nacional de Medidas Cautelares e Preventivas — o BNMP do Conselho Nacional de Justiça. Esse banco abriu um braço específico para reunir os dados dos condenados, os proscritos pela Justiça nos Juizados do Torcedor. Assim, as arenas poderão consultá-lo, juntamente com a base de mandados de prisão em aberto, para impedir que, através do reconhecimento facial, essas pessoas ingressem nos estádios. Esse sistema também alcançará os punidos com a pena de banimento, que não poderão acessar nem a arena onde pretendiam assistir ao jogo, nem qualquer outra. São duas regras com eficácia muito grande e tenho certeza de que, possivelmente até o final do mês, já estarão em prática. Estamos também firmando parceria com o Ministério da Justiça em um projeto muito auspicioso: o Estádio Mais Seguro. Aí já envolve a segurança no entorno e dentro dos estádios, estimulando a participação das forças de segurança. Isso porque os incidentes não estão ocorrendo mais só dentro das arenas ou em suas proximidades, mas em locais mais distantes — e precisamos estar preparados para isso. Enfim, algumas coisas já estão acontecendo. Nosso maior objetivo é que a família volte aos estádios. É inadmissível, por exemplo, chegarmos aqui na Bahia, em um clássico Ba x Vi, com casa cheia e apenas uma torcida presente. Se o jogo é no campo do Bahia, só a torcida do Bahia entra; se é no campo do Vitória, apenas a do Vitória. Isso não pode continuar.
Aproveito para fazer essa pergunta: o senhor acredita que a prática de torcida única é um caminho eficiente para diminuir a violência nos estádios ou deveriam ser adotadas outras estratégias?
Eu me lembro quando um promotor de São Paulo, um sujeito sensacional que hoje é procurador de Justiça, comentava comigo que sugeriu a torcida única em São Paulo. Eu falei, olha, você me desculpe, isso é a falência do Estado. É o Estado dizer: eu não consigo controlar a balbúrdia que as torcidas fazem nos jogos. Hoje, pensando melhor, e dado a violência que a gente tem visto o comportamento da torcida, as pessoas sendo espancadas pela cor da camisa, ou simplesmente pela cor da pele, é o humano desumanizado total, comecei a ficar mais preocupado. Talvez, o Maracanã seja um bom modelo. Ele permite, nos clássicos, 10%, 20% da outra torcida. Agora nós temos também que considerar o seguinte: é um evento privado, a troco de quê as forças de segurança têm que cuidar dele? Claro que as forças de segurança vão cuidar, porque é um evento da sociedade e ela tem que protegê-la. Por isso, acaba tendo pelo menos um pelotão que faz o primeiro ataque, vamos dizer assim, para evitar a confusão. Mas quando não dão conta, vem o Batalhão de Choque. Nesse projeto Estádio Mais Seguro, nós estamos desenvolvendo, de uma forma mais organizada, a participação das forças de segurança. Porque os comandantes-gerais da PM já me disseram, em vários estados: ministro, se eu for atender do jeito que vocês querem, todo o estádio, fora do estádio, fazer o patrulhamento, aumentar o perímetro ou acompanhar as torcidas organizadas, eu vou seguramente deixar de atender a população em outras áreas.
Como é que o senhor vê a atuação das torcidas organizadas, ministro?
Eu sou fã das torcidas organizadas no aspecto em que dão um colorido todo especial ao futebol. Uma vez, virei para a presidente do Palmeiras, Leila (Pereira), e falei — obviamente brincando, porque sei que ela tem um problema sério com a torcida organizada lá: ‘Presidente, como é que a senhora vai abrir mão dessa beleza de manifestação da torcida, apoiando os 90 minutos o time, cantando?’. Ela respondeu: ‘Pois é, se fosse só isso... O problema é a confusão que eles fazem’. Por isso, estamos desenvolvendo no CNJ outra frente de trabalho, que ainda não será entregue imediatamente. O Ministério Público de Santa Catarina e o Ministério Público de Goiás — se não me falha a memória — estão conduzindo esse projeto conosco. A ideia é identificar todos os membros registrados em torcidas organizadas. Eles terão vínculo formal, com o CNPJ da torcida, que será responsabilizada caso alguns de seus integrantes sejam pegos em confusões. Os Juizados do Torcedor farão esse acompanhamento, e queremos integrá-los a uma vara criminal para que as investigações possam ser mais aprofundadas, evitando que fiquem restritas apenas a crimes de menor potencial ofensivo.
Que medidas adicionais podem tornar a Justiça mais ágil e eficaz no enfrentamento da discriminação e da violência nos estádios?
Hoje, tudo gira em torno de inteligência. Se você não tiver aparelhamento para começar a descobrir e prevenir essas questões, acabam reforçando o mito popular de que as torcidas organizadas são compostas apenas por bandidos, traficantes ou sei lá o quê. Mas eu conheço muita gente absolutamente do bem, que adora fazer parte de torcida organizada. Em Brasília mesmo, há uma torcida da qual sou muito próximo — a do Gama — com pessoas ótimas, espetaculares. Portanto, esses mitos precisam acabar; é necessário separar o joio do trigo. Se alguém optar por levar uma vida dentro da ilegalidade, terá que responder por isso. Caso contrário, pode frequentar os jogos e se orgulhar de pertencer à sua torcida organizada. Agora, existe também um mito cultural, e precisamos trabalhar essa parte. Andando pelo país, nota-se a ojeriza que muitas pessoas têm em relação às torcidas organizadas.
Como o senhor avalia o uso de tecnologias, como o reconhecimento facial, para reforçar a segurança nos estádios?
Excepcional. A partir de junho, a lei determinou que todas as arenas com mais de 20 mil torcedores devem adotar o reconhecimento facial. Só que estamos enfrentando um problema que estamos solucionando agora: o que fazer com os bancos de dados que as arenas criam. Por exemplo, em um Ba-Vi no campo do Bahia, a arena vende 50 mil ingressos e, consequentemente, terá 50 mil fotografias com informações biométricas. Ela envia esse banco de dados para o CNJ. Temos convênio com a Secretaria de Segurança Pública, então os dados são encaminhados para lá, refinados e analisados. Desses 50 mil, podem aparecer três devedores de pensão, dois latrocidas, um assaltante de bancos com mandado de prisão em aberto, além daqueles que já foram condenados pelos Juizados do Torcedor. Esses não podem entrar no estádio, e a lista é devolvida à arena. A grande questão é: o que fazer com esse banco de dados? Essa é uma preocupação do Ministério da Justiça, da Agência Nacional de Proteção de Dados e, obviamente, do Conselho Nacional de Justiça. Já realizamos várias reuniões. Estive há pouco tempo com o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski — uns 10 dias atrás — e ele me disse que até o final de agosto entregará o projeto, todo esquadrinhado com a Agência Nacional de Proteção de Dados, a Secretaria de Direitos Digitais do Ministério da Justiça e o Setor de Tecnologia do CNJ. Tudo organizado. Vamos criar uma regra para que os clubes saibam como lidar com seus bancos de dados, evitando ataques hackers, venda indevida ou perda de informações pessoais que possam ser usadas de forma imprópria. Mas, sem dúvida, a tecnologia de reconhecimento facial é sensacional.
Os dados indicam que, em dias de jogos, há um aumento preocupante da violência doméstica contra mulheres. Como o grupo de trabalho pretende articular medidas para enfrentar esse problema, que ultrapassa os estádios e chega às residências?
É impressionante. No dia em que me passaram essa informação, tive até um pouco de dificuldade de acreditar: em um dia de clássico, a violência doméstica aumenta em torno de 26%. E sabemos que há subnotificação. O cara ganha o jogo, bate porque ganhou; ele perde, bate porque perdeu. O que estamos começando a fazer? Convencer as arenas da necessidade de ter salas de acolhimento. Já tivemos êxito em algumas arenas que me relataram estar com essas salas funcionando, oferecendo atendimento a mulheres vítimas de discriminação ou assédio. O fato de essas salas contarem com atendimento especializado por mulheres facilita a compreensão do problema. Mas a violência em si ainda depende da denúncia. O que pensamos em fazer? Campanhas educativas, entre outras ações. Muitas dessas questões só serão resolvidas pela educação: se a criança for educada no sentido de que não há diferença entre pretos, brancos, indígenas ou crianças com alguma deficiência, todos são iguais, cresceremos com essa consciência e poderemos corrigir esse problema. Mas, sem dúvida, é uma situação preocupante.
Mudando de assunto, as SAFs têm ganhado espaço devido à crise financeira de muitos clubes. Quais benefícios esse modelo traz para a gestão e a sustentabilidade dos times, e que ajustes legislativos são essenciais para torná-lo mais claro e seguro?
Essa foi uma ideia do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), espetacular. Ele concebeu uma empresa. Evidentemente, nosso Código Civil já prevê os tipos de empresa, mas ele criou uma sociedade anônima especial: a sociedade anônima do futebol, com regras próprias para esse modelo no ambiente do futebol. No entanto, ela foi muito mal compreendida pelos meus colegas juízes do Trabalho e, sobretudo, mal interpretada dentro do contexto em que foi criada. Eu acompanhei desde a sua criação esse projeto e sabia que aquela não era a intenção do legislador. Conhecer a intenção do legislador é a interpretação mais autêntica: eu sabia o que ele queria fazer e via que meus colegas não estavam interpretando a lei de acordo com isso. Mas essa é apenas uma forma de interpretar a lei, e existem várias. Então, o que o senador Rodrigo Pacheco fez? Pediu aos redatores da lei que atualizassem a legislação da SAF. Desta vez, ele me pediu para coordenar, e eu levantei quase 30 pontos em que havia divergência entre a intenção do legislador e a realidade dos julgamentos na Justiça do Trabalho, além de outros aspectos, inclusive tributários. A atualização da lei foi feita com a participação do senador Marcos Rogério (PL-RO) e outros senadores. Foi aprovada e está na Câmara, com o deputado Fred Costa ((PRD-MG) como relator. Estarei com ele na próxima semana em São Paulo, e possivelmente o projeto será colocado em pauta em breve. A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, o governo e a Casa Civil detectaram alguns pontos que queriam ver reconsiderados, e ainda não se sabe qual será a decisão final dos deputados.
Tem alguma mudança nesse novo projeto que o senhor destacaria?
Não há mudança, por incrível que pareça. Trata-se de uma atualização, para usar uma expressão do Judiciário, os embargos de declaração. Quando a decisão apresenta alguma omissão ou contradição, embarga-se de declaração. Essa atualização é quase como dizer: vamos esclarecer o assunto, deixá-lo bem claro, sobretudo em aspectos de sucessão empresarial. Eles querem criar o vínculo com o clube. Uma das formas mais utilizadas é criar a SAF através do departamento de futebol, trazendo todo o departamento para a empresa, com suas dívidas e receitas. A Justiça do Trabalho estava aplicando regras para isso, mas a lei é absolutamente didática a partir do seu registro. Alguns tentaram criar uma espécie de sucessão empresarial entre o clube original e a SAF, o que, como eu disse, misturou um pouco a intenção do legislador. Por isso, acho necessário que essa atualização venha para que a ideia original do legislador não seja corrompida, mesmo dentro do processo de interpretação do Poder Judiciário. Mas acho uma grande ideia. A lei trabalha muito a questão de gestão e responsabilização dos gestores, dá um incentivo tributário para a empresa e exige o pagamento de toda a dívida em um período de seis anos. Se pagar até 60% da dívida, ganha mais quatro anos. Ou seja, dívidas que, em alguns casos, seriam impagáveis, tornam-se pagáveis em até dez anos, dentro de um plano de credores, de uma recuperação judicial ou do regime de concentração de execuções (RCE) na Justiça do Trabalho. É uma lei muito boa, eficiente e eficaz para o propósito. Sou defensor quase intransigente da Lei da SAF. Tomara que dê certo, que emplaque, que seja uma ideia bacana, e não mais uma lei que não pega. Hoje, a realidade mostra que já temos mais de 40 sociedades anônimas do futebol em funcionamento. A tendência é crescente: o próprio Bellintani me disse que está criando uma faculdade de negócios, com eixo central em temas do futebol e das SAFs. Acho que já deu certo. Tomara que avance e que ajude a resolver os problemas do futebol brasileiro.
Raio-X
Guilherme Caputo é ministro do Tribunal Superior do Trabalho desde 2007 e conselheiro do CNJ para o biênio 2024-2026, com trajetória marcada pelo Direito do Trabalho e Direito Desportivo. É graduado em Direito pelo CEUB, com pós-graduação na Espanha e doutorado em Direito Desportivo pela Uninove. Iniciou a carreira como servidor público em 1976, ingressou na magistratura trabalhista em 1989 e foi presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 23.ª Região (MT). Fundador da Academia Nacional de Direito Desportivo (ANDD) e atual presidente da Academia Brasileira de Direito Portuário e Marítimo (ABDPM), recebeu a Ordem do Mérito Desportivo pelo trabalho no direito desportivo.
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