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Esporte reduz barreiras na vida de pessoas com deficiência

Prática esportiva é meio de inclusão e promoção da diversidade

Publicado quarta-feira, 11 de janeiro de 2023 às 06:00 h | Atualizado em 08/05/2023, 14:23 | Autor: Rafaela Souza
Pâmalla Vasconcelos, de 29 anos, é atleta de capoeira e atletismo
Pâmalla Vasconcelos, de 29 anos, é atleta de capoeira e atletismo -

Mais que a oferta de inúmeros benefícios para a saúde física e mental, o esporte representa uma importante ferramenta de transformação para pessoas com deficiência na Bahia. Em meio ao debate sobre a promoção da diversidade nos espaços, a prática desportiva é considerada um meio de inclusão social democrático, capaz de reunir modalidades voltadas para diferentes tipos de deficiência.

A atleta de capoeira e atletismo Pâmalla Vasconcelos, de 29 anos, se encantou com o esporte aos sete anos, quando começou a frequentar a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais de Salvador (Apae). A jovem se emociona ao falar da importância das modalidades esportivas na própria trajetória. Ela conta que a prática foi essencial para o processo de aprendizado na escrita e leitura e no desenvolvimento da coordenação motora. 

"Eu pratico esporte desde muito novinha, e agradeço muito à Apae pelo que sou hoje, uma menina linda, esforçada. O esporte é tudo de bom na minha vida e fez com que eu me desenvolvesse muito, aprendesse a ler e escrever. Quando cheguei aqui, eu nem sabia pegar no lápis e, hoje, eu sei escrever, toco na banda, faço capoeira, atletismo. Já ganhei várias medalhas de primeiro e segundo lugar. É muito bom para mim, eu me sinto bem, muito feliz", declara.

Além da capoeira e do atletismo, a atleta relembra o amor pela ginástica rítmica, modalidade que praticou dos oito aos 15 anos. "Eu amava, ficava contando os dias. Quando eu ia fazer o treinamento com a professora, no mesmo dia que eu voltava para casa, já chegava com aquela saudade no coração, querendo ir de novo. Me marcou muito", afirma.

A emoção de Pâmalla ao falar sobre a trajetória esportiva também se encontra com o orgulho de poder representar e inspirar outras pessoas com deficiência, além do sonho de se tornar uma atleta paralímpica no futuro. "Eu viajei representando as pessoas com deficiência na Conferência Nacional, em Brasília. Já fui a Feira de Santana e Itabuna para participar das competições. E o meu sonho é ser uma atleta paralímpica e representar todas as pessoas com deficiência", conta.

A transformação gerada pelo esporte também é ressaltada pelo atleta de jiu-jitsu e parajiu-jitsu, Igor Nogueira, de 27 anos, que se tornou bicampeão mundial (2018-2022) em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. Ele conta que o jiu-jitsu mudou a sua vida e ajudou a vencer o capacitismo, além de representar a comunidade autista mostrando a importância da inclusão.

"O esporte transformou minha vida e proporcionou reescrever minha história. Começar no jiu-jitsu me ajudou a interagir mais com as pessoas. É muito importante para a pessoa com deficiência fazer o esporte porque ajuda a evoluir, a aprender várias coisas", revela. 

Igor Nogueira se tornou bicampeão mundial em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes
Igor Nogueira se tornou bicampeão mundial em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes |  Foto: Arquivo Pessoal

O encontro com o esporte aconteceu em 2013, quando ele tinha 18 anos. Já em 2016, a profissionalização desportiva dividiu o ano com outro momento marcante da história do esporte baiano, como o primeiro autista a participar de competições e ganhar medalha. “A primeira competição foi um teste para pegar experiência e eu gostei muito. Foi o começo para ficar fera”, diz.

Atualmente, Igor concilia a rotina de treinos do jiu-jitsu com a musculação e aulas de taekwondo. "Faço os treinos de jiu-jitsu de segunda a sexta-feira à noite, academia durante três dias pela manhã e, no fim de semana, faço musculação em casa. Também comecei no taekwondo em setembro de 2021, que tem ajudado no equilíbro", detalha.

O atleta recebe apoio de programas e iniciativas de incentivo ao esporte no estado, como o Bolsa Esporte e FazAtleta, de responsabilidade da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), autarquia vinculada à Secretaria do Trabalho, Emprego, Renda e Esporte (Setre).  

Apoio familiar

Igor ainda destaca a importância do apoio familiar para realizar o sonho de ser atleta e competir pelo mundo em companhia da mãe Marleide Nogueira, de 48 anos, que atua como ativista na defesa dos direitos da pessoa com deficiência e esporte. Ela é coordenadora regional do Instituto Lagarta Vira Pupa- Bahia, vice-presidente da Associação Mães Autismo e diretora da Associação Baiana de Jiu-jitsu Desportivo, além de servidora pública.

“Ela é minha acompanhante de viagem e a gente se diverte muito. Já fomos para Florianópolis, São Paulo, Rio de Janeiro, Goiânia, Cuiabá, Espírito Santo, Aracaju, Curitiba… A gente viajou demais. Ela joga duro, acompanha e cobra o acesso de direitos durante as viagens”, conta.

Marleide destaca que é uma 'vitória coletiva ver onde Igor chegou' e reforça a importância das oportunidades de investimento no esporte para as pessoas com deficiência. Ela relembra que, aos sete anos, Igor recebeu prognóstico de analfabetismo e incapacidade de realizar atividades básicas, junto ao diagnóstico de autismo.

“Nunca imaginei. Se fosse falar alguns anos atrás que iria acontecer tudo isso? Eu ia dizer que era impossível. Meus olhos viam outra coisa. Ia dizer que era impossível e olha o impossível aqui. A importância do oportunizar, do acreditar, do investir é necessário. E o esporte tem um poder transformador. Eu digo que, literalmente, salva vidas. E não salvou apenas a vida de Igor, salvou a vida da nossa família. Quando a gente fala de pessoas com deficiência, estamos falando de famílias atípicas, porque envolve o todo e não só o indivíduo”, ressalta.

Marleide também fala que a promoção de acesso ao esporte deve estar alinhada com uma abordagem anticapacitista, que promova uma inclusão que respeite a individualidade e característica de cada deficiência. Sobre o autismo, ela ainda explica que enfrentou muitos desafios por se tratar de uma 'deficiência invisível'.

Igor Nogueira e sua mãe e ativista pelo direito das pessoas com deficiência, Marleide Nogueira
Igor Nogueira e sua mãe e ativista pelo direito das pessoas com deficiência, Marleide Nogueira |  Foto: Arquivo Pessoal
  

"As pessoas olhavam para Igor e viam um homem. Já enfrentei muitos olhares e questionamentos quando precisava acessar os direitos, como prioridade nas filas. Eu creio em uma nova cultura, do acolhimento de acreditar e enxergar o outro pelo que ele é. De não julgar o outro pelas suas limitações - até porque todo ser humano tem as suas limitações - mas de julgar pelo potencial de cada um. Porque a gente sabe que a sociedade julga, mas que julgue pelos potenciais. E é isso que a gente sempre traz, a importância de gerar oportunidades, de ocupar os espaços", pontua. 

Assim como Marleide, a mãe de Pâmalla, a autônoma Diva Carvalho, de 61 anos, também é a grande companheira da atleta na rotina de treinos e competições. Ela destaca a promoção da prática desportiva desenvolvida pela Apae para o desenvolvimento da atleta, que foi diagnosticada com hidrocefalia quando era recém-nascida. 

“O esporte faz com que eles se desenvolvam muito mais. Quando Pâmalla entrou na Apae, a neurologista disse: ‘Diva, deixe ela fazer a capoeira. Vai ser ótimo para ela’. Foi onde ela começou, e isso fez com que ela se desenvolvesse mais. O esporte na vida desses meninos com deficiência é tudo de bom, é uma coisa maravilhosa que eles gostam de fazer e se sentem bem fazendo. E faz bem para a cabeça, para o desenvolvimento deles. E a gente fica feliz em ver nossos filhos participando das competições. É muito importante para eles, que se sentem mais valorizados. Se sentem capazes, e, realmente, são capazes de fazer as coisas”, afirma.

Inclusão na prática

Atuando como orientador social na Apae há quase três anos, o profissional de educação física Fábio Maurício Silva, de 42 anos, ministra as oficinas de capoeira e atletismo para os usuários dos serviços da instituição, além de auxiliar as famílias nas atividades e buscar parcerias na área de esporte.   

"Eu vou buscando parcerias, atividades ligadas ao esporte por ser formado em Educação Física e especializado em educação especial e inclusiva. Eu já estou nessa área de inclusão social desde os 15 anos, comecei através da capoeira. Eu auxiliava meu mestre nas aulas para a comunidade. Ele fazia um trabalho social e eu fui me identificando cada vez mais. Também desenvolvi um trabalho voluntário e dava aulas para cerca de 80 crianças na cidade de Salinas das Margaridas, no Recôncavo", conta.

Pâmalla e orientador social da Apae, Fábio Maurício Silva, durante oficina de capoeira
Pâmalla e orientador social da Apae, Fábio Maurício Silva, durante oficina de capoeira |  Foto: Rafaela Araújo | Ag. A TARDE
  

O profissional considera a inclusão no esporte como 'um grande experiência de aprendizado'. "Na Apae, a gente aprende mais do que ensina. Temos um plano de aula, mas os alunos fazem a gente mudar de acordo com a necessidade deles. A gente estuda, faz pós-graduação, mas a grande faculdade é essa vivência com eles". Ainda segundo o orientador, as oficinas são desenvolvidas a fim de contemplar todos os usuários, respeitando a individualidade de cada um.

"Nós fazemos estudos de caso para incluir todos os usuários. Há um planejamento multidisciplinar. A capoeira inclui qualquer aluno que queira praticar. Por exemplo, quem não consegue ter uma desenvoltura pode cantar. A gente não busca a perfeição, mas sim a inclusão e autonomia junto à família". 

Diversidade nas artes marciais

A prática de artes marciais como taekwondo e jiu-jitsu é uma ferramenta de inclusão de pessoas com deficiência em projetos sociais e trabalhos voluntários na Bahia. Segundo o professor Rafael Caribé, que promove aulas de taekwondo para o público desde 2016, o esporte deve ser democrático para todos e o taekwondo é uma modalidade que traz diversos benefícios, como auxílio da coordenação, concentração e disciplina.

"As pessoas com deficiência são excluídas, estão à margem da sociedade em certos pontos. Mas o esporte é um importante meio de inclusão e isso é comprovado nas aulas. Os treinos são os mesmos entre quem tem ou não uma deficiência, apenas com as suas adaptações em alguns casos", afirma.

Professor Rafael Caribé no Campeonato Brasileiro de Parataekwondo
Professor Rafael Caribé no Campeonato Brasileiro de Parataekwondo |  Foto: Arquivo Pessoal
  

Além dos ensinamentos do taekwondo, o professor destaca que é preciso combater o capacitismo também na comunicação, na forma de se referir ao outro. "Fico buscando informações, até porque a gente vive numa sociedade capacitista. Preciso estar bem informado para falar da forma correta e combater o preconceito. Tenho um atleta que não tem o braço esquerdo. E aí as pessoas que não são do meio falam que é guerreiro, que se superou. Isso não é questão de superação", pontua.

Legislação

O direito ao esporte para pessoas com deficiência no Brasil é assegurado pela Lei Nº 13.146, de 2015. A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência) é destinada a garantir e a promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando à sua inclusão social e cidadania. O direito ao esporte é uma das reivindicações contempladas pela legislação.

O capítulo nove trata do direito à cultura, ao esporte, turismo e lazer. A partir disso, o poder público deve promover a participação da pessoa com deficiência em atividades artísticas, intelectuais, culturais, esportivas e recreativas, tendo em vista o seu protagonismo, devendo: incentivar a provisão de instrução, de treinamento e de recursos adequados, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas; assegurar acessibilidade nos locais de eventos e nos serviços prestados por pessoa ou entidade envolvida na organização das atividades; e garantir a participação da pessoa com deficiência em jogos e atividades recreativas, esportivas, de lazer, culturais e artísticas, inclusive no sistema escolar, em igualdade de condições com as demais pessoas.

Iniciativas na Bahia

Em relação às iniciativas focadas na inclusão das pessoas com deficiência no esporte, o diretor-geral da Superintendência dos Desportos do Estado da Bahia (Sudesb), Vicente Neto, reconhece que existe uma lacuna no país como um todo.

"Nós já temos uma ação em curso, temos modalidades que já estão conosco nessa busca de superação da lacuna que existe no esporte brasileiro e não só na Bahia. Já fiz parte do Ministério do Esporte, e lá já identificamos há alguns anos essa lacuna. Temos um Comitê Brasileiro Paralímpico muito forte. No âmbito das confederações, temos um trabalho forte na área do paradesporto. Mas temos uma lacuna muito grande nos estados em relação aos equipamentos, à formação de pessoal, participação inclusiva de atletas e de pessoas com deficiência. Nem todas as pessoas que praticam esporte são atletas. Mas as pessoas com deficiência ainda enfrentam essa lacuna na estrutura, tanto pública quanto privada", aponta.

Com o objetivo de amenizar essas falhas, o diretor conta que a Sudesb realiza uma ação que consiste na idealização de um núcleo específico para atender as demandas das pessoas com deficiência.

"Aqui no estado, nós criamos um núcleo e vamos propor ao governador que esse núcleo se transforme em uma coordenação formal da Sudesb, reunindo pessoas da gestão e do esporte, pessoas com deficiência que estão nos ajudando a pensar as políticas públicas. Avançamos em relação ao fomento de algumas modalidades, como a canoagem, o remo e o jiu-jitsu. Essas três modalidades avançaram mais aqui na Bahia em relação à prática desportiva, realização de ações e ao uso de recursos públicos. Mas ainda é pouco e queremos fazer muito mais com a frente que temos buscado com a estruturação desse núcleo", enfatiza.

Vicente Neto é diretor-geral da Sudesb
Vicente Neto é diretor-geral da Sudesb |  Foto: Divulgação | Sudesb
  

De acordo com o diretor, a criação do núcleo tem gerado resultados positivos a partir das discussões internas com a equipe e debates com as federações esportivas no estado.

"Começamos com a iniciativa interna de discutir o capacitismo. Então, tratamos sobre esse tema com a nossa equipe da Sudesb, que tem cerca de 200 colaboradores. Nós fizemos essa ação com essa temática que importa muito para gente. Já realizamos ações com outras pessoas que estão na militância do esporte, atletas com deficiência. Iniciamos debates com as federações esportivas de artes marciais sobre a participação de pessoas com deficiência a partir de termos de colaboração e fomento assinados pela Sudesb. Na área do jiu-jitsu, já tivemos uma experiência prática no bairro de Sussuarana. E o núcleo do bairro, que tem 40 pessoas, recebeu doação de material esportivo, tatames, kimonos. E avançamos com esse projeto para uma relação mais duradoura. E já firmamos para 2023, as parcerias que estarão sendo realizadas. Em termos de fomento e colaboração, nós teremos o olhar específico para as pessoas com deficiência a partir dos recursos que estarão sendo repassados para as federações para o atendimento desse público", acrescenta.

Além da atuação estadual, Neto fala da importância de parcerias com o governo federal, que recriou o Ministério do Esporte após ter sido transformado em secretaria especial no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

"A outra frente que estamos pensando para esse próximo período é a relação com o governo federal, já que foi criada a Secretaria Nacional do Paradesporto. Entretanto, foi criada sem orçamento. Nós já pedimos uma audiência à nova ministra do Esporte, Ana Moser, para tratar das parcerias do governo federal com a Bahia nessa área. Apesar de não termos dinheiro, temos a previsão orçamentária de recurso para a infraestrutura esportiva, capacitação do pessoal e investimentos diretos ligados às modalidades do paradesporto", afirma.

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