ACOLHIMENTO
Projeto criado na UFBA apoia migrantes e refugiados de vários países
Iniciativa contempla atendimento jurídico, psicossocial, acesso a benefícios, ensino do português e até encaminhamento para emprego
Por Alan Rodrigues
O sorriso largo e a comunicação fácil denunciam. Estamos diante de um vendedor de seguros. Mas não qualquer vendedor. Friday Eke, isso mesmo, Friday, ou sexta-feira, em inglês, é um contador nigeriano que há dois anos escolheu a Bahia para viver.
Ao contrário do personagem de mesmo nome do romance de Daniel Defoe, ‘Robinson Crusoe’ – onde Sexta-feira é um indígena escravizado pelo personagem principal -, Friday, de 35 anos, veio para a Bahia em busca de dignidade e emancipação financeira. Para isso, sonha em poder exercer sua profissão no país que escolheu como lar.
“A gente precisa trabalhar, não posso fazer nada sem falar português”, diz o nigeriano, que recebe Bolsa Família e, no seu país de origem trabalhava em bancos, com venda de seguros. Para vencer a barreira da língua (Friday fala inglês e alguma coisa de português), ele é um dos alunos da professora Ilma Teles, do Balcão Solidário do Núcleo de Acolhimento de Migrantes e Refugiados (Namir/UFBA).
Ilma é Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da UFBA e criou um projeto pedagógico chamado PLAc Intercultural. PLAc quer dizer ’Português como Língua de Acolhimento’. No projeto, além do ensino da língua com proposta mais funcional os alunos participam de aulas externas.
“São visitas a equipamentos culturais, possibilitando aos alunos migrantes ocuparem esses espaços púbicos, socializarem-se com a comunidade local e qualificarem à saúde mental. Depois da visita, eles produzem textos que trazem conexões com as suas respectivas culturas”, explica a professora Ilma.
Em uma dessas visitas, os alunos estiveram no subsolo do Mercado Modelo, transformado em galeria de arte no início deste ano. “Eles se emocionaram muito nesse dia”, conta Ilma, que desenvolve o trabalho no Namir de forma voluntária, assim como os demais integrantes do projeto. “É muito enriquecedor para mim receber essa diversidade, enquanto professora. Quando eles reconstroem vidas, reconstroem identidades”, diz a professora.
O Namir foi criado após a pandemia e funciona na sede do Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO/UFBA), no Largo Dois de Julho, em Salvador. Lá, além de aprender a língua portuguesa e conhecer a cultura local, os migrantes recebem encaminhamento de saúde, apoio jurídico, fazem revalidação de diplomas e têm acesso à rede Suas (Sistema Único de Assistência Social) e se cadastram no Cadúnico, para se habilitarem a receber Bolsa Família e até moradias dentro do programa Minha Casa, Minha Vida.
Parceria
Lauro de Freitas é um dos municípios parceiros do Namir. Lá, a Prefeitura implantou o Centro de Referência e Apoio aos Imigrantes (CRAI). Em um ano, a unidade localizada no Jambeiro já acolheu 278 pessoas, com atendimentos sociais, jurídicos, psicossociais, pedagógicos, além de encaminhamentos de políticas públicas e realização de cursos profissionais com foco na autonomia financeira, como a produção de acarajé.
Pelo segundo ano consecutivo, o município recebeu o certificado internacional MigraCidades 2023, concedido pela OIM, agência da ONU para migrações, e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
O selo que reconhece o empenho da gestão na melhoria da integração dos migrantes e na construção da coesão social, é concedido aos municípios que concluem com sucesso todas as etapas do processo para a certificação ao longo do ano, considerando o diagnóstico das políticas locais, definição e monitoramento de áreas consideradas prioritárias pelos governos para o desenvolvimento de ações.
1º mundo
Os migrantes vêm de diversos países. Venezuela, Nigéria, Mali, Senegal, Guiné-Bissau, Colômbia, Chile, Afeganistão, Síria, Paquistão, Haiti, Marrocos, Egito. Segundo a professora Ilma, a migração pode ser motivada tanto pela busca de melhores condições financeiras, quanto por questões políticas, climáticas, guerras, desastres e restrições de liberdades. É o caso de Ali Koddane, 50 anos, produtor audiovisual no Marrocos.
Ali chegou à Bahia em setembro do ano passado. Deixou o seu país, segundo ele, por não poder expressar sua opinião livremente. Hoje, com mais de 31 mil seguidores no Facebook, ganha até R$ 1 mil pelas visualizações dos seus vídeos.
Ele conta que decidiu vir para o Brasil para se casar com uma baiana que conheceu pela internet, mas a namorada ‘ ainda não se decidiu’. Ali, que é muçulmano, recebe cesta básica de uma igreja católica no Imbuí. No Marrocos ele trabalhava numa gigante do ramo de eletrônicos. Para ele, as relações de trabalho no Brasil são um diferencial. “Aqui a lei protege o funcionário, lá não tem a quem recorrer. Saúde é só para quem tem dinheiro. O Brasil é 3º mundo mas é diferente, pra gente é 1º mundo”, diz Koddane.
A legislação trabalhista e o acesso ao SUS são pontos que chamam muita atenção de quem vem de fora. “Brasil tem boa regra , carteira de trabalho não existe no meu país, saúde e educação só para quem tem dinheiro”, compara Friday, referindo-se à Nigéria.
“O Brasil tem benefícios que não se vê em outros países, documentos gratuitos, vacinas, consultas, exames”, enumera Mohamed Diab, 34, administrador de empresas nascido no Egito e que conquistou a cidadania brasileira após 7 anos no Brasil.
Casado com uma brasileira, ele é pai de uma criança de cinco anos e lembra que veio para o Brasil porque ‘a política não estava legal’. Para Diab, o Brasil ‘é um país maravilhoso, tem oportunidade para todo mundo crescer’. Há quatro anos, ele foi contratado por uma grande loja de materiais de construção. “Quando cheguei falei que queria chegar à gerência”, diz o egípcio-brasileiro, que já foi convidado para fazer um curso de logística.
Alabede Maruf, 66, é um dos mais recentes na Bahia. Engenheiro marítimo , veio da Nigéria em outubro do ano passado e um mês depois já estava casado. Hoje, realiza alguns serviços no porto de Salvador e pretende se reconectar com o mercado de trabalho. Segundo ele, o principal motivo para deixar seu país foi a migração das rotas de muitos navios para Brasil, devido ao aumento do investimento.
Sem patrão
Uma boa parte dos migrantes, no entanto, não quer emprego. Sobretudo os africanos. Segundo a professora Ilma, eles alegam que ‘não querem ter patrão’. É o caso de Babacar, que veio do Senegal há 14 anos e há 5 abriu uma loja no Largo do Cruzeiro.
Antes da pandemia, a loja funcionava junto à Casa do Carnaval, também no Centro Histórico de Salvador. Em sua loja, ele vende tecidos trazidos do SenegaL. No Namir, aprendeu a ler e escrever em português. “Eu já falava, me indicaram ao Namir e pessoal me abraçou”, conta Babacar, que vive sozinho e não revela a idade.
Vizinho a ele, no Largo do Cruzeiro, Akolade Kamorudeen, 56, veio da Nigéria e não tem nenhum embaraço com a língua, além do sotaque. Acelerado, ele tomou a caneta da reportagem e começou a escrever sua história.
Ele também vende tecidos africanos há 6 anos, desde quando chegou a Salvador e abriu o negócio. Casado na Nigéria, não pode voltar ao seu país devido à condição de refugiado. Confiante que a publicação da reportagem pode ajudá-lo, ele manda recado ao Presidente da República: ‘fala com Lula pra liberar meu papel’, diz, irreverente.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes