DEBATE
Projeto que propõe revogar Lei da Alienação Parental divide opiniões dos baianos
Lei tem sido usada para tirar os filhos das mães, mesmo quando há violência no lar; mas tem avanços
Por Gabriel Vintina*
A discussão em torno do projeto que visa revogar a Lei da Alienação Parental (Lei 12.318/2010) divide opiniões na Bahia, especialmente entre especialistas, ativistas feministas e operadores do direito.
A proposta de revogação, defendida por deputadas do PSOL, através do PL 2.812/2022, reacende debates sobre o impacto dessa legislação na dinâmica familiar e na proteção de crianças e adolescentes em casos de separação e disputas de guarda.
Se aprovada, a nova proposta promete alterações profundas na maneira como o sistema judiciário lida com essas situações, mas as opiniões sobre suas consequências são divergentes.
A Lei de Alienação Parental foi instituída em 2010 com o objetivo de coibir a prática de alienação - quando um dos genitores tenta manipular a criança para afastá-la do outro.
O debate
A assistente social Deyse Cruz, com 15 anos de experiência na defesa dos direitos das mulheres, é uma das vozes críticas à manutenção da Lei. "Vivemos em uma sociedade patriarcal, e quando falamos de Salvador, estamos falando de uma realidade onde aproximadamente 54% a 55% da população é composta por mulheres, muitas delas negras.
A Lei de Alienação Parental atinge diretamente essas mulheres e seus filhos, perpetuando um ciclo de violência nos lares".
Deyse entende que a lei da Alienação Parental “tem sido usada para tirar os filhos das mães, mesmo quando há violência no lar". Ela explica que há casos em que a mulher hesita em denunciar o agressor porque ele é o pai de seus filhos. “Se ela sai de casa, o agressor pode alegar abandono e forçar a volta dela, usando o Conselho Tutelar”, argumenta, acrescentando que a revogação da lei seria um passo importante para proteger as famílias.
Outro ponto de vista é apresentado por Lara Soares, advogada e presidente da Comissão de Direito de Família da OAB-BA. Para Lara, a Lei de Alienação Parental possui falhas, mas sua revogação total pode ser precipitada. "As críticas à Lei de Alienação Parental são válidas, especialmente em casos onde ela é usada como forma de vingança contra as mães.
No entanto, a alienação parental é uma forma de abuso que realmente existe. A lei foi recentemente alterada para incluir a necessidade de escuta qualificada com apoio técnico de psicólogos, o que é um avanço", explica.
Lara Soares pondera que o ideal é aperfeiçoar a aplicação da lei para proteger tanto as crianças quanto suas famílias, sem prejudicar o direito de convivência entre pais e filhos.
A proposta de revogação, de autoria das deputadas do Psol Fernanda Melchionna, Vivi Reis e Sâmia Bomfim, tem como base a visão de que a lei tem sido usada de forma perversa, forçando crianças a manter contato com pais abusivos. Essa posição é amplamente defendida por movimentos feministas, que apontam a legislação como um instrumento que favorece os homens em uma sociedade patriarcal e racista, como aponta a assistente social Deyse Cruz.
Caso em julgamento
Tamires Reis, fonoaudióloga que disputa a guarda da filha de 4 anos, compartilha essa perspectiva da revogação. Ela expôs seu caso nas redes sociais, relatando a luta judicial para proteger sua filha de possíveis abusos cometidos pelo pai. “Após uma denúncia de estupro de vulnerável, a lei foi usada para arquivar o processo. A revogação dessa lei é urgente para que mães como eu não percam seus filhos para abusadores”, conta Tamires, ressaltando que muitas mulheres vivem o mesmo drama, mas não têm voz.
“A lei [da Alienação Parental] em muitos casos é aplicada mais rapidamente que medidas protetivas para as crianças ou uma condenação do agressor. Nossa luta é questionar essa aplicação. Essa lei está retirando os filhos de suas mães, que lutam pela proteção e segurança de seus filhos após denúncias, principalmente de abuso sexual cometido pelos pais”, conta a mãe.
A fonoaudióloga reforça a importância da revogação da Lei para garantia dos direitos à saúde, respeito e dignidade da criança e do adolescente. “Há relatos de mães em que as crianças, durante as escutas especializadas, verbalizam o que o pai fez, mas ainda assim os juízes e promotores afirmam que foi a mãe que induziu a criança a falar. Nós pedimos a revogação dessa lei para que as mães não percam seus filhos para os abusadores. Esses crimes acontecem entre quatro paredes, sem testemunhas oculares, o que torna a comprovação física difícil”.
Proteção x Alienação
Os defensores da Lei argumentam que a alienação parental é um problema real que precisa ser enfrentado. Para eles, o que está em jogo é tanto a questão do abuso de poder por parte de alguns genitores quanto a proteção das crianças que podem ser manipuladas psicologicamente. Antonio Adorno, psicólogo e psicanalista, lembra que a teoria que originou a lei, apesar de contestada, trouxe uma nova visão sobre os impactos emocionais das separações conflituosas. “Em alguns casos, o afastamento pode ser uma proteção, enquanto em outros, pode ser uma alienação. Isso deve ser analisado caso a caso, levando em conta o contexto envolvido”.
A psicologia, segundo Adorno, defende que, em casos comprovados de alienação, o Estado deve garantir o direito à convivência familiar, levando em consideração o melhor interesse da criança. "Isso não significa que a lei deva ser usada para justificar a má-fé de alguns indivíduos que tentam restringir a convivência de forma ilegal. Em geral, a lei foi criada para proteger indivíduos em situações de vulnerabilidade, mas também é importante reconhecer que existem abusadores, até mesmo familiares, que podem tentar usar essa lei para se beneficiar", analisa.
Lacunas do sistema
O debate sobre a revogação da Lei de Alienação Parental traz à tona questões mais amplas sobre as lacunas no sistema de proteção à infância e às mulheres. Enquanto uma parte dos especialistas ver na lei um obstáculo à justiça, outros defendem sua reformulação, apontando que a legislação foi um avanço no combate ao abuso psicológico em disputas de guarda.
O projeto de revogação, que deveria ter sido votado na última quarta-feira na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família (CPASF), da Câmara Federal, está no centro de um debate que envolve gênero, raça e direitos das crianças. O projeto de lei teve, recentemente, parecer favorável de seu relator, deputado Pastor Eurico, embasando-se em recomendações feitas pelo Conselho Nacional de Saúde e pela Organização das Nações Unidas, propondo a revogação da Lei de Alienação Parental sob a argumentação de que uma teoria utilizada para embasar o projeto no Brasil (a teoria de Gardner) está obsoleta e mal fundamentada.
Movimentos de mães, como os que organizam a II Caminhada em Prol do Combate ao Abuso Sexual Infantil e Violência Doméstica, em Salvador, reforçam a importância da revogação. "Essa é uma luta de todos nós", afirma Tamires, uma das organizadoras, convidando a sociedade a participar do evento no próximo dia 19, em frente ao Shopping da Bahia.
Independentemente do desfecho da votação, a polêmica em torno da Lei de Alienação Parental continuará a dividir opiniões, ressaltando a complexidade das relações familiares e a necessidade de soluções que equilibrem o direito à convivência familiar com a proteção das crianças e adolescentes envolvidos em conflitos.
*Sob a supervisão da editora Isabel Villela
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