FICÇÃO X REALIDADE
Raquel da vida real? Conheça a baiana que lembra a mocinha de Vale Tudo
As semelhanças entre as duas vão além do fato de serem mulheres negras e empreendedoras
Por Andrêzza Moura

As histórias de Suzana Almeida Sapucaía, 68 anos, a dona Suzana do RéRestaurante, e de Raquel Acioly, personagem do remake de Vale Tudo, da Globo, se confundem. E não só pelo fato de elas serem mulheres negras e empreendedoras de sucesso, mas, sobretudo, por terem superado muitas dificuldades para, enfim, vencerem na vida.
Assim como Raquel, que sofreu um duro golpe da filha, Maria de Fátima, ao ter a casa da família vendida na ficção, dona Suzana também foi enganada e roubada por um funcionário de uma empresa de obras.
Antes de se tornar proprietária de um dos mais renomados espaços gastronômicos da comunidade do Solar do Unhão, na região central de Salvador, na Bahia, ela trabalhava como vendedora ambulante em algumas praias da cidade.
Com Raquel também foi assim. A personagem da atriz Taís Araújo, que era guia de turismo em Foz do Iguaçu, no Paraná, vendia sanduiches nas praias do Rio de Janeiro para sobreviver.

"Antes disso, eu lavava roupa, ia para o 2 de julho [bairro], voltava, vendia comida andando. Depois ia para a praia, vendia cerveja, bebidas, na Ribeira, em Ondina, na Barra. Vendia [trabalhava] com meus dois filhos. Uma empreiteira me 'quebrou', levou meu dinheiro, não me pagou. Fiquei devendo os outros, tive que trabalhar para pagar os outros. Então, foi isso aí, foi meu desespero", conta dona Suzana, à época de 'correria' e quando levou um grande prejuízo ao aceitar cozinhar para os funcionários de uma empresa que atuava em Camaçari, Região Metropolitana de Salvador.
Ela lembra ainda que, em meio às dívidas, a aflição e sem saber ao certo qual rumo tomar, recebeu a direção, aliás, um empurrão - no bom sentido, claro - do grafiteiro Júlio [Costa], que pintava a comunidade com outros jovens. Foram eles seus primeiros clientes no RéRestaurante, nome escolhido por Júlio, em 2013, para batizar o empreendimento e representar fielmente dona Suzana, na essência, no talento e também na gagueira.

"Os meninos do grafite pediram para fazer uma comida e vender para eles, iam pintar a comunidade. Aí começaram a chamar um bocado de gente. Italiano, francês, americano, todo mundo. Depois chegou a televisão, ele chamou a televisão para filmar e disse: 'cada dia você bota um prato, a gente filma e grava e você vai voltar a vender comida'", relembrou a empresária.

"Eu dizia: 'menino, pelo amor de Deus, eu não quero voltar a vender comida, não. Ele fazia: 'aqui é um restaurante, vai ser um re-restaurante. Eu dizia: 'aqui não vai ser um re-restaurante, não'. Não teve jeito. Ele me disse: 'vou registrar o re-restaurante'. Aí pronto, daí começou e a fama cresceu",
As telas, a internet e o mundo
Outro ponto aproximam ainda mais as histórias de vidas de dona Suzana e Raquel. Por conta do talento e desenvoltura na cozinha as duas brilharam em programas de TV e internet. Na ficção, Raquel participou do reality show gastronômico "Se vira na cozinha", onde sagrou-se campeã e levou de prêmio R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais).

Já dona Suzana foi a estrela na série documental da Netflix "Street Food: América Latina, no episódio sobre Salvador, em 2020. No seriado, que mostra a culinária de rua da capital baiana, é contada a história por detrás do 'tempero' da cozinheira e do restaurante, que fica às margens da Baía de Todos-os-Santos.
No local, são servidos o que há de melhor na gastronomia da Bahia, os tradicionais pratos feitos a base de peixe e frutos do mar com azeite de dendê.

"Ah, foi bom. Aparecer no documentário foi bom, maravilhoso. Conheci muita gente maravilhosa, estou feliz, feliz. Sou feliz mesmo!", expressou, cheia de gratidão, a cozinheira. Dona Suzana conta que, antes de ir parar no streamer, foi personagem em uma revista de bordo e foi através dela que foi convidada a participar do documentário da Netflix.
"Chegou um francês, gravou, me viu fazendo a comida e levou para a revista de avião. Aí a Netflix [produtores do "Street Food: América Latina] achou a revista no avião, leu, gostou, aí ligou, veio aqui, conversou comigo. Não queria. Terminou que o menino do grafite [Júlio] entrou no meio, mandou eu aceitar, aí aceitei", complementou ela, toda orgulhosa.
Empreendendo em família
Mas, as semelhanças entre dona Suzana e Raquel param por aí. Pelo menos, quando o assunto é apoio familiar.
Diferente da personagem da novela global, que é mãe solo e não conta com a filha, Maria de Fátima, para nada, a cozinheira baiana, desde sempre, trabalha com a ajuda do marido, o pescador Antônio Carlos Dias, e um dos filhos, o cozinheiro Márcio Sapucaía, 47 anos. Além deles, vizinhos e outros familiares trabalham no RéRestaurante. Hoje, a empresária Suzana emprega oito pessoas. "Dou emprego a todos aqui", afirma ela.

É seu Antônio o responsável por ir buscar nas águas da Baía de Todos-os-Santos parte dos pescados que são servidos no restaurante. Márcio fica na cozinha à frente dos preparos.
"Ele [marido] continua pescando. Bota a rede, vai pescar no alto mar, ele ajuda dentro de casa, vai ver peixe, vai na feira de São Joaquim, compra peixe, compra camarão. Quem trabalha na cozinha é Márcio, ele aprendeu olhando eu fazendo a comida, preparando, temperando e ele olhando para fazer também, para sair tudo certo", explicou a cozinheira.
Ela ainda completou dizendo que o filho faz tudo "com amor, com carinho e a maior dedicação. Eu dizia: 'meus filho, faz direitinho, olha como é, prove para ver se está bom. Olha, botando um pouquinho na mão para ver se está bom, bom de sal, bom de tempero. Aí ele aprendeu a fazer, aprendeu direitinho". Antes de ir trabalhar definitivamente com a mãe, Márcio se especializou e trabalhou por alguns anos na cozinha de um hotel.

Dona Suzana e seu Antônio moram no Solar do Unhão há mais de 50 anos, desde que casaram. Foi na comunidade que eles criaram os dois filhos, Márcio e o pescador Anildo, acompanhou o crescimento do quatro netos e dos seis bisnetos.
A clientela

O RéRestaurante já é ponto certo para a guia de turismo Mônia Carmo do Nascimento. É para o espaço de dona Suzana que ela leva os turistas que contratam o serviço da empresa onde ela trabalha. Neste dia, ela acompanhava um casal americanos.
"Bom, faz parte do roteiro. Nós trabalhamos com o tour afro e visitamos alguns aspectos importantes da cidade voltados para a cultura afro. Passamos pela Casa de Iemanjá, Dique do Tororó, Mercado São Joaquim, Terreiro de Candomblé e a gente finaliza aqui com almoço, na comunidade do Solar do Unhão, para mostrar um pouco de como o povo baiano vive. Então, trazer até a comunidade, apresentar o empreendimento de Dona Suzana, que é uma mulher baiana, empreendedora, negra, que está aí batalhando pelo dia a dia", afirmou a profissional.

O psicólogo mineiro Sidenir Vieira, 36, ficou sabendo do RéRestaurante de dona Suzana através do documentário da Netflix e, ao chegar ao local, ficou surpreso com o que viu.
"Fiquei sabendo través do documentário da Netflix. Vim pelo carisma dela nas redes sociais, deu para ver que é bem receptível, a gastronomia, os pratos são lindos. Então, eu e o meu amigo, tínhamos que vir. É muito afeto, muito, muito", disse o rapaz, enquanto esperava para saborear uma deliciosa moqueca de peixe.
Força para continuar
Histórias como as de dona Suzana e de Raquel nos lembram que, seja na ficção ou na realidade, o verdadeiro sabor da vida está nas conquistas diárias, nas trocas e nos aprendizados. Então, que a garra delas sirva de lição para todas as mulheres que buscam no empreendedorismo a força para se reerguer e seguir sem medo de mostrar a cara e ir à luta.

"Diria que elas não têm os meninos do grafite, mas, se elas têm o sonho de ter um trabalho digno, que lute para ter. Basta ama aquele trabalho, trabalhar com amor, com carinho. Seja vendendo um geladinho, vendendo comida, saindo pela praia, se elas têm a força de vontade, elas botam a cabeça para cima e fala: 'vamos Jesus, me acompanhe, me dê força para tudo dá certo. Obrigada!'", finaliza dona Suzana, proprietária do RéRestaurante.
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