HERANÇA
Salvador Islâmica: roteiro turístico mapeia história de luta afro-islâmica na cidade
Iniciativa de museólogo revela caminho da busca por liberdade religiosa e social
Por Gabriel Vintina*
A capital baiana, reconhecida por sua riqueza cultural e religiosa, redescobre um de seus capítulos históricos mais importantes: a presença afro-islâmica e o legado da Revolta dos Malês ocorrida em 1835. O roteiro "Salvador Islâmica", idealizado pelo museólogo Eldon Neves, revela a herança de africanos muçulmanos que, escravizados, lutaram por liberdade religiosa e social.
O projeto turístico-cultural não se resume a uma rota pela cidade, é uma imersão na cultura e na história dos Malês e do islamismo na Bahia, além de ampliar o olhar sobre as tradições culturais afro-brasileiras. Eldon Neves, idealizador da iniciati va "Odu Imersão Cultural", teve a ideia do roteiro após descobrir, através de um teste de DNA, suas próprias raízes ligadas aos Malês, como são chamados os africanos islamizados na Bahia.
“Quero que o roteiro seja uma experiência transformadora, que leve baianos e visitantes a enxergarem a cidade por um ângulo diferente. Essa é uma história que não está nos livros escolares, mas que é fundamental para compreender Salvador e sua pluralidade cultural”, explica Eldon.
O sociólogo e professor Fábio Nogueira, autor do livro Malês 1835: Negra Utopia, explica a profundidade e a importância histórica da herança afro-islâmica, cuja influência se estende além da Revolta dos Malês.
Segundo o professor, na Salvador do século XIX, o islamismo já desempenhava um papel relevante na formação da identidade de muitos africanos escravizados, que se organizaram em torno de práticas religiosas, costumes e laços de solidariedade. "O islamismo era mais que uma religião para os Malês, era uma fonte de força e resistência. Esses africanos muçulmanos, originários de regiões como a Nigéria e o Mali, trouxeram para Salvador uma cosmovisão que dialogava com o direito à liberdade, à dignidade e à resistência contra a opressão", pontua Nogueira.
Abrangência
Segundo ele, compreender a trajetória dos Malês é, em grande medida, compreender a história da resistência urbana negra no Brasil. Nogueira enfatiza que o islamismo trouxe práticas e valores que passaram a compor a base da organização social dos Malês, criando uma rede de apoio e comunicação entre os escravizados que buscavam não apenas a liberdade pessoal, mas também a da sua comunidade. "A Revolta dos Malês não foi um levante isolado, mas o resultado de uma estrutura organizacional que vinha sendo construída ao longo do tempo. Esses africanos possuíam uma consciência coletiva, capaz de mobilizar e unir forças em prol de uma resistência genuinamente negra e muçulmana. Eles eram guiados pela certeza de que poderiam reivindicar sua liberdade e autonomia, mesmo sob as condições mais desumanas”, explica o sociólogo.
Outro aspecto ressaltado por Fábio Nogueira é o impacto cultural do islamismo na cultura de Salvador. "Os Malês mantinham práticas como o uso do branco às sextas-feiras, símbolo de pureza e reverência a Deus, e essa prática se enraizou na Bahia, extrapolando as tradições islâmicas e se mesclando com o candomblé e outras crenças afro-brasileiras. A cidade incorporou o islamismo na sua cultura de maneira profunda, e é importante entender essa herança na sua totalidade”.
A perspectiva histórica de Fábio Nogueira encontra ressonância no percurso traçado pelo roteiro "Salvador Islâmica", que leva os visitantes a locais simbólicos. Entre eles, a Ladeira da Praça, onde a Revolta dos Malês teve início.
Outro ponto crucial é o Centro Cultural Islâmico, em Nazaré, que preserva a essência do islamismo na Bahia contemporânea. O trajeto também inclui a Igreja da Santíssima Trindade, em Água de Meninos, palco de um dos confrontos da Revolta, e segue até Itapuã, um local fundamental para compreender a história afro-islâmica na Bahia.
Foi lá que ocorreu a Revolta dos Haussás, também chamada Revolta de Itapuã, um levante liderado por africanos muçulmanos décadas antes da Revolta dos Malês. Eldon Neves considera esse episódio precursor da organização e mobilização que culminariam na insurreição de 1835, um marco na resistência negra e islâmica em Salvador.
Eldon Neves, destaca ainda que a seleção dos pontos foi feita com base em uma longa pesquisa e sempre em parceria com acadêmicos e lideranças comunitárias. O objetivo do projeto, segundo ele, é atrair turistas, mas também oferecer uma ferramenta educativa e formativa. "Queremos que esse conhecimento chegue às escolas públicas, para que as futuras gerações possam entender a influência do islamismo no contexto afro-brasileiro e reconhecer os feitos dos Malês na luta pela liberdade e pela identidade cultural", explica.
O roteiro "Salvador Islâmica" também inclui a Sociedade Protetora dos Desvalidos, uma organização fundada em 1832 por homens negros livres. Essa instituição, considerada a primeira sociedade beneficente negra do Brasil, é uma prova do protagonismo dos africanos muçulmanos na história da Bahia. Para Eldon Neves, é um símbolo duradouro da luta dos Malês. "Eles lutaram não apenas por sua liberdade, mas pelo direito de manter suas tradições e suas práticas religiosas", afirma.
Educação
Embora o "Salvador Islâmica" já esteja disponível para o público, a equipe do Odu Imersão Cultural busca expandir sua visibilidade e o alcance educacional do projeto, buscando parcerias com agências de turismo e instituições de ensino.
Eldon comenta que sua proposta de turismo vai além da experiência convencional, promovendo um resgate de memórias ancestrais e imersão na cultura. "Estamos falando de um turismo que conecta o visitante com a memória e a luta do povo negro, que tem como propósito a conscientização e o respeito pela história de Salvador e de seus habitantes afrodescendentes".
A recepção do roteiro tem sido positiva e atrai turistas e moradores de Salvador que buscam uma compreensão mais profunda da cidade. Entre os destaques da experiência estão os costumes e práticas culturais influenciados pelo islamismo, como as vestes brancas, as cerimônias religiosas e os laços de solidariedade e resistência, que, segundo Fábio Nogueira, revelam o alcance do islamismo na Bahia, e como ele se enraizou e se manteve vivo.
Para Nogueira, o roteiro não apenas reflete o passado, mas também contribui para um entendimento mais amplo sobre a importância de uma Salvador plural, rica em identidades e histórias entrelaçadas.
*Sob a supervisão da editora Meire Oliveira
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