REQUALIFICAÇÃO
Salvador resgata sua história: os prédios que estão sendo restaurados na cidade
Edifícios como a Junta Comercial do Estado da Bahia e o Solar Boa Vista são reformados na cidade
Por Priscila Dórea

Restaurar casarões, solares e monumentos que testemunharam séculos de nossa história, não só preserva conjuntos arquitetônicos, como também ressignifica espaços que carregam a história de Salvador e da Bahia. Nessa direção, a Secretaria de Cultura da Bahia (SecultBa), através do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac), desempenha um papel crucial ao realizar requalificações e reintegrar os imóveis à sociedade.
Um dos imóveis mais recentes a ter sua requalificação projetada é o Solar Boa Vista (Brotas). Construído no século XVIII, o solar ficou conhecido por ter sido residência da família de Castro Alves: o pai do poeta, o médico Antônio José Alves, transformou o solar em casa de saúde e o filho até dedicou um de seus poemas, o “A Boa Vista”, ao local.
Em 1869 o Solar Boa Vista foi adquirido pelo governo da Bahia, que em 1874 instalou ali o Asilo São João de Deus (renomeado depois como Hospital Psiquiátrico Juliano Moreira).
Tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) na década de 1940, o Solar Boa Vista já foi sede da Prefeitura de Salvador (1983-1985) e da Secretaria Municipal de Educação (1986). Mas em 2013 um violento incêndio destruiu parte do solar e afastou qualquer nova instalação da edificação – até agora.
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Em 2025, o Governo da Bahia, através da SecultBa e do Ipac, deu início a requalificação da área, que será transformada no Parque de Economia Criativa da Bahia, uma incubadora de formação e projetos que deve gerar emprego em diversos setores ligados à cultura.
“Duas licitações serão executadas: a primeira para contenção da ruína do casarão; a segunda para definir a empresa, por meio de um concurso de arquitetura, que fará o projeto arquitetônico balizador das obras de restauro, construção e paisagismo do espaço. Será anunciado também um programa de apoio à economia criativa com protagonismo das artes performativas no Solar”, explicou a Secult-BA em nota.
Para a primeira fase do projeto, foram investidos R$ 5 milhões em serviços de limpeza do espaço, preservação do patrimônio e contratação de serviços de arquitetura.

As intervenções s são uma estratégia benéfica para o contexto cultural da Bahia, afirma o diretor de projetos, obras e restauro do Ipac, Fernando Caldeira.
“É preciso refletir sobre os métodos mais adequados de intervenção em monumentos históricos, transcendendo aspectos da forma e da materialidade do bem cultural. A intervenção em edifícios tombados é permeada por valores significativos, sejam eles culturais, históricos, artísticos, arquitetônicos, de memória ou mesmo simbólicos”, explica.
Essas ações atuam diretamente nas memórias e no componente sensível do presente.
“O testemunho histórico de um bem cultural nos possibilita um conhecimento integrado à linha cronológica do tempo, que reflete o seu valor cognitivo inexoravelmente ao passado"”, afirma o diretor.
Caminhos do restauro
Mestre em engenharia civil, Ingrid Silva Assis Santana é doutoranda em arquitetura e urbanismo na área de tecnologia da preservação e restauração na UFBA, e aponta que o destino de prédios históricos requalificados em Salvador tem oscilado entre avanços significativos e oportunidades perdidas. Se por um lado há requalificações que revitalizam edifícios mantendo elementos arquitetônicos icônicos.
“A Casa das Histórias de Salvador é um exemplo inspirador disso”, afirma a engenheira, que explica que há casos em que a requalificação prioriza interesses comerciais em detrimento da identidade e história do prédio.
“O Solar Boa Vista representa um caso emblemático de como a requalificação de patrimônios históricos pode resgatar não apenas a arquitetura, mas a função social de um espaço. Sua transformação em equipamento cultural ativo tem o potencial de reativar a memória afetiva da população, enquanto cria significados para as atuais gerações”, afirma Ingrid Santana, acrescentando que a integração urbana do Solar Boa Vista pós-requalificação estará diretamente ligada aos diálogos com o entorno.
“Se o projeto incluir uma programação cultural diversificada, conexões pedestres com o bairro e serviços complementares que estimulem a permanência de pessoas, poderá se tornar um catalisador de desenvolvimento para toda a região”, afirma Ingrid Silva Assis Santana.
A moradora de Brotas e comerciante Marinalva de Jesus Silva, que tem uma barraca de lanches próxima ao solar, pode acompanhar essa mudança. De Alagoinhas, Dona Marinalva veio para Salvador quando tinha quatro anos e tem muitas lembranças do Solar Boa Vista.
“Tinha uma capelinha dentro do solar e eu sempre entrava para rezar. Vi o solar ser a sede da prefeitura e da secretária de educação. Muitos homens vinham jogar dominó e até minhas filhas brincavam em um plaquinha que tinha na área verde, sabe? Tanta coisa pode ser feita nesse solar, é um casarão enorme e meu sonho é poder chegar aqui e ver o Solar Boa Vista revitalizado”, torce.
Outro histórico, belo e icônico prédio está nos toques finais de sua revitalização: a antiga sede da Junta Comercial do Estado da Bahia (Comércio). Integrando a poligonal de tombamento do Conjunto Urbano e Arquitetônico da Cidade Baixa de Salvador, o Governo da Bahia investiu mais de R$ 9 milhões na recuperação do imóvel.

As intervenções contemplaram desde a demolição de estruturas comprometidas até a implantação de sistemas novos de infraestrutura elétrica, lógica, hidrossanitária e climatização.
“A autenticidade é a essência que confere valor a um edifício histórico, pois ela materializa a memória, a técnica e a identidade cultural de um período. Em Salvador, onde a arquitetura colonial e eclética dialoga diretamente com a história do Brasil, preservar essa integridade é um desafio que exige equilíbrio entre conservação e adaptação. A chave está em adotar uma abordagem crítica, na qual cada intervenção seja justificada, documentada e, sempre que possível, reversível”, explica Ingrid Silva Assis Santana.
A engenheira aborda ainda trabalho realizado pelo grupo de pesquisa "Tecnologia da Preservação e Restauração” da Faculdade de Arquitetura da UFBA.
“Entendemos que a autenticidade só será plenamente preservada quando houver uma gestão colaborativa, capaz de integrar políticas públicas, financiamento adequado, capacitação de mão de obra especializada e participação ativa da população no processo. É possível transformar esses desafios em oportunidades de preservação viva, onde cada agente contribui”, completa.
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