BUSCA POR MELHORIAS
“Difícil se sentir seguro”: entenda luta dos roteiristas brasileiros
Cineinsite A TARDE conversou com três roteiristas brasileiros, entre eles Erez Milgrom, de “Cangaço Novo”
Por Edvaldo Sales*
A greve do Sindicato de Roteiristas de Hollywood (WGA, na sigla em inglês), que chegou ao fim no último dia 27, após 148 dias de paralisação, mobilizou diversos profissionais da área nos Estados Unidos. A categoria tinha na pauta reivindicações a respeito dos valores residuais, inteligência artificial (IA), salas de roteiristas, tempo de contratação, pagamento por roteiro, entre outras coisas.
O debate, no outro lado do mundo, fez surgir também questionamentos sobre a situação desses trabalhadores no Brasil: existe um sindicato para assegurar os direitos dos roteiristas no país? Se não, há o desejo pela sindicalização? Quais são os principais anseios da categoria? E as principais demandas?
Erez Milgrom, ex-supervisor de desenvolvimento da O2 Filmes e co-roteirista da série “Cangaço Novo”, produção de sucesso do Prime Video, contou ao Cineinsite A TARDE que, no Brasil, existe a Associação Brasileira de Autores Roteiristas (ABRA), que “não é um sindicato propriamente dito, mas é a organização que mais luta pelos direitos dos roteiristas no Brasil e está presente em todos os eventos e discussões ligadas aos temas centrais da profissão”.
Fundada a partir da fusão da Associação Brasileira de Roteiristas Profissionais de Televisão e Outros Veículos de Comunicação (AR) e de Autores de Cinema (AC), a ABRA atua há mais de duas décadas. Atualmente, o grupo conta com mais de 800 profissionais associados, “posicionando-se, portanto, como instância legítima de representação da profissão de autor-roteirista no Brasil”, de acordo com a entidade. A lista de membros foi atualizada no dia 25 de outubro de 2022.
O portal da ABRA possui, por exemplo, tabelas de preços, que listam os valores mínimos sugeridos pela Associação para remunerar roteiristas profissionais pela sua prestação de serviços de roteiro e a cessão de direitos autorais. Os valores foram estabelecidos com base em consultas a mais de 200 profissionais do mercado em 2021, e correções sobre o IPCA de valores praticados no ano de referência anterior.
As tabelas do documento são referentes a cinema, TV aberta, TV fechada, plataformas de streaming, outras plataformas digitais e consultorias.
Segundo Milgrom, há uma busca constante por expandir a atuação e a influência da associação entre os players e a indústria audiovisual em geral. “O sindicato que temos é o Sindcine, mas ele tem uma atuação mais limitada e zela pelos interesses de todos os profissionais do audiovisual e não apenas dos roteiristas”.
O Sindcine é o Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual dos Estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Tocantins e Distrito Federal.
Integrante da ABRA há alguns anos, Milgrom pontuou que, apesar de não estar na linha de frente, acompanha as discussões e o trabalho da associação. O profissional, que já colaborou no roteiro de mais de 30 projetos, entre eles séries como “Rua Augusta” e “Manhãs de Setembro”, afirmou que “muito é feito e reivindicado nos moldes de sindicatos internacionais, mas ainda estamos distantes de ter o poder e a influência de instituições como a WGA americana”.
“É difícil se sentir seguro sabendo os entraves e dificuldades que ainda vamos enfrentar por um bom tempo aqui no Brasil, mas estou confiante no trabalho da ABRA e acredito que o recente surgimento de uma cultura de agenciamento de roteiristas no mercado nacional vai nos impulsionar no caminho certo”, disse, esperançoso.
Luta pelo reconhecimento
Com a greve dos roteiristas de Hollywood, vieram à tona diversos pontos que evidenciam a insegurança da categoria em relação a direitos trabalhistas básicos e o receio do avanço do uso da IA na criação de roteiros e consequente substituição da mão de obra humana pelas máquinas. De acordo com Erez Milgrom, além de espelhar as preocupações dos roteiristas americanos que levaram à greve do setor no começo deste ano, “no Brasil, ainda precisamos lutar pelo simples reconhecimento da categoria”.
O roteirista pontuou que, apesar de existir uma melhora, “ainda é muito comum" que as plataformas omitam os nomes dos roteiristas nos materiais de imprensa e os veículos de comunicação "creditarem apenas diretores, produtores e elenco”.
“Há muitas demandas ligadas a contratos tirânicos, que, além de obrigar os roteiristas a trabalharem em condições muitas vezes abusivas, ainda reservam aos players [empresas] o direito de escolher a forma de creditar esses profissionais. E mesmo quando o devido crédito é concedido, ainda acontecem situações onde a função de autoplay (que inicia o episódio seguinte automaticamente nas plataformas) interrompe os créditos finais antes que os nomes dos roteiristas apareçam”, destacou.
Além disso, temos questões de gerência de salas de roteiro, remuneração, controle criativo, registro e direitos autorais... Infelizmente, os roteiristas brasileiros não têm muito sossego.
E na Bahia?
Ao colocar a lupa sobre a Bahia, é possível perceber que o cenário não é diferente do nacional. Não existe um sindicato para assegurar os direitos desses profissionais no estado ou para qualquer outra categoria de profissionais do audiovisual, segundo o cineasta soteropolitano Lula Oliveira, que foi presidente da Associação Baiana de Cinema e Vídeo.
À reportagem, a roteirista e jornalista Carollini Assis pontuou que há cerca de dois meses foi fundada a Associação de Autores Roteiristas da Bahia (AUTORAIS), a primeira fora do eixo Rio-São Paulo voltada para a categoria. Além disso, em relação a uma possível busca pela sindicalização desses profissionais, Assis disse que, durante a pandemia de Covid-19, foi criado um grupo de trabalho para discutir a criação de um sindicato para roteiristas que abrangesse as regiões Centro Oeste, Norte e Nordeste.
“Esse grupo, com cerca de 15 integrantes, tem, em sua maioria, representantes do Nordeste. Atualmente, está pausado, devido às constantes flutuações de mercado de trabalho. Precisamos voltar nosso olhar para demandas bem emergenciais. Mas foi a partir dele que surgiu a força e o ímpeto para a criação da AUTORAIS. Já tínhamos essa ideia, eu e Gustavo Erick, um colega roteirista, e convocamos os demais colegas para se somarem ao processo”, destacou.
Ainda nessa esfera, Lula, que dirigiu o filme “A Matriarca”, disse que existem muitos movimentos organizados como associações de cinema. Ele cita a Associação de Produtores e Cineastas da Bahia (APC Bahia) que agrega roteiristas.
Mas desconheço uma entidade com uma representatividade tão específica.
Apesar desses profissionais não serem sindicalizados, Carollini Assis integra outra associação, a Pesquisadores de Audiovisual, Iconografia e Conteúdo (PAVIC). “Temos uma rede forte de profissionais colegas que sempre estão trazendo atualizações de mercado, principalmente no aspecto negocial, e no campo jurídico, também trocamos informações, e tenho assessoria jurídica para todos os meus projetos, tudo isso cria uma rede de networking fantástica dentro da associação”.
Demandas
Ao Cineinsite, Lula Oliveira e Carollini Assis relataram que as principais demandas do grupo na Bahia estão no campo de garantias de direitos trabalhistas. Ademais, existem reivindicações iguais as detalhadas por Erez Milgrom.
“Na esfera autoral, respeito aos direitos autorais, reconhecimento de créditos na forma devida (desde ideia original a roteiro), o enfrentamento às questões que o uso da IA tem imposto aos profissionais da cadeia audiovisual, principalmente roteiristas”, pontuou Assis.
Já no aspecto negocial, ela destaca contratos equilibrados, “sem cláusulas abusivas, a luta pela retirada da ‘cláusula de buyout’”. Em termos técnicos, buyout é a operação jurídico-econômica na qual o financiador adquire todos os direitos de propriedade intelectual (em especial, os direitos patrimoniais de autor) sobre a obra audiovisual.
“No aspecto profissional, enfrentamento ao assédio no ambiente de trabalho, luta pela inserção e fomento a editais de desenvolvimento com roteiristas como proponentes. Na esfera financeira, o respeito a uma tabela mínima de valores, que é a da ABRA, remuneração justa para exclusividade do roteirista, cumprimento dos acordos formalizados”, completou.
Inteligência artificial
O uso de inteligência artificial na criação de histórias foi um dos principais pontos da greve dos roteiristas americanos. Depois das reuniões com a AMPTP (Alliance of Motion Picture and Television Producers), que representa os grandes estúdios de Hollywood, ficaram estabelecidos alguns regulamentos para o uso de IA. No Brasil, infelizmente, ainda existe um longo caminho a ser trilhado.
Erez Milgrom afirmou que já houve alguns experimentos com IA “escrevendo” roteiros audiovisuais. O avanço da tecnologia causa preocupação. Por mais que hoje ainda seja possível identificar facilmente os ‘deslizes’ da tecnologia, sabemos que com o tempo vai ficar cada vez mais difícil discernir o que foi escrito por um roteirista de carne e osso e o que foi produzido por um algoritmo”.
No entanto, me parece que em qualquer obra artística ainda há elementos humanos que nenhuma IA conseguiu emular.
“Impossível negar que é assustador o prospecto de ter que concorrer com uma máquina que produz em questão de segundos algo que os melhores roteiristas levam meses e até anos para concluir, mas acho que mesmo que os roteiros de IA virem uma praxe na indústria audiovisual, será sempre necessário passar o material bruto pelo crivo de um especialista humano antes de liberar o texto para produção”, apontou.
Erez disse, porém, não crer que “estejamos próximos do momento em que a IA poderá substituir completamente um roteirista”. “Por enquanto, podemos aprender a usar a tecnologia como uma valiosa ferramenta de trabalho. A IA pode ser usada para acelerar muitos processos no desenvolvimento de uma ideia, como inspirar a criação de personagens (com textos e imagens), produzir sinopses, projetar cenários, desenhar storyboards, diagramar books de venda…”
Há muitas aplicações possíveis para a tecnologia, mas ainda é necessário muito trabalho e paciência para conseguir um resultado adequado nas plataformas disponíveis. Isso sem contar que a palavra final sempre será do humano que opera a ferramenta.
Carollini Assis destaca a falta de regulamentação. Conforme ela, politicamente, “ainda vamos entrar na fase de audiências públicas sobre o assunto aqui no Brasil”. Ela acredita que a IA é uma “excelente ferramenta para te tirar da página em branco, como muitas outras estratégias que autores, escritores e roteiristas usam”.
Assim como Erez, Assis ressalta que, sozinha, a ferramenta não substitui a criatividade humana. “O perigo é que a partir do momento que essa base de dados se apropria de conteúdos anteriores, não informa seu uso, não remunera, se torna uma máquina de plágio. Como delimitar limites, uso, respeito aos direitos autorais, à propriedade intelectual, tudo isso precisa entrar em discussão para caminharmos com sensatez no uso dessa tecnologia”.
Residuais e as salas de roteiro
Outras duas reivindicações importantes da categoria em Hollywood envolviam as salas de roteiristas com número mínimo e os valores residuais. Com as novas combinações, séries com “sinal verde” para pelo menos seis episódios por temporada devem ter um mínimo de seis desses profissionais na equipe de produção. O acordo estabelece ainda a contratação obrigatória de três roteiristas-produtores (membros mais antigos), número que pode incluir o showrunner do projeto.
No Brasil, segundo Erez, não se pratica o pagamento de valores residuais. “Os roteiristas são contratados por trabalho, e salvo raríssimas exceções, os contratos determinam que o único pagamento devido pelo trabalho é esse cachê previamente acordado”, esclarece o roteirista.
Ainda de acordo com o profissional, se passar a existir a necessidade de emendar um contrato, a mudança é contemplada em um novo acordo. “Mas nunca ouvi falar de um player sequer considerar o pagamento de valores residuais - uma característica do mercado nacional que resultou bastante conveniente para os streamings estrangeiros”.
Para Erez, contudo, “talvez seja injusto comparar o mercado brasileiro com o americano”. Ele lembra que Hollywood estabeleceu há tempos um sistema que é muito mais complexo.
“Antes de surgirem os streamings, as TVs abertas já pagavam residuais para programas que eram reprisados ou entravam em 'syndication' - uma espécie de segunda janela em um exibidor que não é o produtor original do conteúdo. Toda vez que um filme ou série era renegociado, os roteiristas também ganhavam. Mas para isso, precisaram antes constituir um sindicato forte e presente que zelasse pelos interesses dos roteiristas e tivesse cacife pra cobrar as grandes emissoras. No Brasil, a ABRA almeja chegar nesse lugar, mas receio que ainda há um longo caminho antes que isso seja possível”.
Quanto às salas de roteiro, o roteirista falou que também é difícil comparar o mercado americano com o brasileiro. “Na chamada Era de Ouro da TV americana era comum uma sala ser formada por mais de dez roteiristas, mas muito disso devia-se ao fato de que as temporadas muitas vezes tinham mais de 20 episódios”.
Com a diminuição do tamanho das temporadas, veio a redução do número de roteiristas nas salas, o que resultou em mais pressão e menos garantias
No Brasil, Erez revelou que a maior sala que ele teve a chance de participar tinha cinco roteiristas - contando o chefe de sala -, e a menor tinha quatro.
“Durante o desenvolvimento de um projeto é comum ter menos pessoas envolvidas, mas uma vez dado o sinal verde para constituir a sala, a média que tenho observado é essa - o que não é ruim. O que acaba variando é o prazo de entrega dos roteiros finais, o cachê e a condução da sala - seja pelo roteirista chefe, pelo diretor do geral ou pela produtora/canal.”, finalizou.
*Sob supervisão de Bianca Carneiro
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