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A TARDE BAIRROS

Ganhadeiras: legado para as novas gerações

Confira o especial A TARDE bairros desta sexta-feira

Por Divo Araújo

22/11/2024 - 10:18 h | Atualizada em 29/11/2024 - 11:18
Ganhadeiras foram homenageada pela Viradouro, que foi campeã do Carnaval do Rio em 2020
Ganhadeiras foram homenageada pela Viradouro, que foi campeã do Carnaval do Rio em 2020 -

A tarde da quarta-feira de cinzas, no dia 26 de fevereiro de 2020, foi de expectativa em Itapuã. Em muitas casas do bairro, o clima lembrava a final da Copa do Mundo. Mas, logo, a ansiedade se transformou numa grande festa quando foi anunciada a vitória da escola de samba Viradouro, no Carnaval do Rio de Janeiro, com o enredo que contava a história das Ganhadeiras de Itapuã. Foi o ápice da trajetória musical do grupo musical formado por mulheres que lavavam roupa na Lagoa do Abaeté.

“Quando aconteceu da Viradouro ganhar com o tema das Ganhadeiras no Carnaval do Rio realmente foi um negócio extraordinário. Parecia de fato que era final de Copa”, lembra o músico e fundador do grupo, Amadeu Alves. “Itapuã virou uma festa. O resultado foi comemorado pelo bairro todo”, reforça o produtor musical Salviano Filho, que fundou o grupo junto com Amadeu.

A homenagem no Carnaval do Rio foi o ponto mais marcante de uma trajetória de 20 anos do grupo, completados em março de 2024, e que remonta as mulheres ancestrais do século XIX, conhecidas como Ganhadeiras. “Nós estamos falando de mulheres que conseguiram libertar muitas outras mulheres, muitos outros homens e que conseguiram dar conta de suas próprias vidas, através do trabalho de ganho”, conta a produtora cultural Verônica Raquel Mucuna, diretora de Patrimônio do grupo.

Para Salviano, as Ganhadeiras foram as primeiras feministas e empreendedoras do Brasil. “Eram mulheres que lutavam para defender seus maridos, seus filhos, seus amigos, seus parentes, nessa onda de vender e guardar dinheiro para comprar a alforria de quem estava com a cabeça a prêmio. Elas tinham um tino comercial gigante e uma ideia de liberdade imensa”, acredita ele.

Esse espírito guerreiro persiste nas mulheres que hoje levam a cultura de Itapuã mundo afora, como Dona Mariinha, 92 anos, presidente do grupo, mãe, avó, bisavó e mais recentemente trisavó. “Quando Amadeu criou o grupo tinha mais homem do que mulher. Mas os homens não tiveram coragem e só ficaram as mulheres”, conta Dona Mariinha, presidente das Ganhadeiras.

História do grupo

Esse início a que Dona Mariinha se refere aconteceu no dia 13 março de 2004, mas começou a ser concebido, alguns anos antes, quando foi criado o Grita – Grupo de Revitalização de Itapuã. “Em 1997, criamos o Grita e começamos a fazer um trabalho de garimpo nas minas da cultura e da tradição de Itapuã”, conta Amadeu Alves. “Foi um trabalho intenso de aproximação das anciãs, dos anciãos e dos griôs”.

Em 2003, Amadeu e Salviano, dando continuidade ao trabalho do Grita, fizeram uma pesquisa chamada Itapuã, o que é que houve e o que é que há?. “Fizemos entrevistas com cerca de 100 moradores de Itapuã, de várias faixas etárias e atividades, para resgatar as memórias do bairro antigo. Em uma dessas entrevistas, conversei com um pescador chamado Macaíba, e nesse dia surgiu a ideia de criar um coral de pescadores e lavadeiras de Itapuã”, conta Amadeu.

Segundo ele, logo os pescadores desistiram do projeto e o protagonismo ficou com as mulheres. “A gente se reunia na Casa Verde de Itapuã, que não tinha ainda este nome, trazendo a memória afetiva delas”, acrescentou. Nesses encontros surgiu a música “As Ganhadeiras”. “As ganhadeiras nascidas na praia de Itapuã, vendendo uns peixinhos baratos, pescados pela manhã/ quem quer comprar um peixinho, eu trago aqui pra escolher/ Deus me ajude a pescar pra você vender”, cantavam elas.

A música não só batizou o grupo como deu o pontapé inicial para a trajetória de sucesso dessas antigas lavadoras de roupas do Abaeté. No início, o coral das mulheres era acompanhado por violão e percussão. Depois, foram incluídos bandolim, flauta, violino e contrabaixo. “Hoje a gente tem uma banda com nove integrantes”, diz Amadeu.

Primeiro álbum e prêmios

O primeiro prêmio veio apenas três anos depois. “Em 2007, as Ganhadeiras venceram o prêmio Cultura Viva”, lembra Amadeu Alves. “Recebemos um prêmio em dinheiro, que deu pra comprar uma máquina de filmar e alguns instrumentos”.

O ponto de virada do grupo, no entanto, aconteceu em 2012, quando as Ganhadeiras de Itapuã finalmente gravaram seu primeiro álbum. Nesta época, Amadeu coordenava a Casa da Música. “Nós não tínhamos estrutura nenhuma, mas sim o capital do conhecimento com figuras como Mariene de Castro, Margareth Menezes, Bule-Bule, Xangai e outros”.

E foi assim que as Ganhadeiras foram convidadas para participar da gravação do CD de Mariene. Nessa gravação, o grupo se encontrou pela primeira vez com o renomado produtor musical Alê Siqueira, que já tinha trabalhado com Caetano Veloso, Carlinhos Brown, Buena Vista Social Clube, Chico Buarque, dentre outros.

Salviano lembra como foi esse encontro. “Nós fomos para Sapiranga (Litoral Norte) gravar uma música para o CD de Mariene. E aí a gente conheceu o Alê. Na hora que as Ganhadeiras fizeram uma oração de Senhora Santana, o homem começou a chorar”, relata, lembrando que à época ninguém sabia quem era o produtor musical. “Foi aí que a gente foi pesquisar quem era ele e viu que era um cara premiadíssimo”.

Antes de terminar o dia de gravação, Alê Siqueira propôs: “Passem num edital e me chamem que vou gravar o disco de vocês”.

E foi exatamente dessa forma que aconteceu. Produzido por Alê Siqueira, com a coordenação musical de Amadeu, as Ganhadeiras se reuniram no estúdio Coaxo do Sapo, de Guilherme Arantes, que ficava em Camaçari, para gravar 14 músicas. “A gente ficou 13 dias gravando. Começava 9h da manhã, parava para almoçar e ia até 9h da noite. Isso durante todos os dias”, conta Amadeu.

Foi aí que mais uma vez, na visão de Salviano, as Ganhadeiras mostraram que contam com ajuda espiritual. “O estúdio de Guilherme também era pousada, mas a gente não podia bancar. Foi aí que eu encontrei por acaso Seu Jacques, um amigo que mora a duas quadras do estúdio”, lembra Salviano. “Eu perguntei: você mora aqui? Ele disse, sim, naquela casa. Aí perguntei: tem um quarto lá para ficar umas Ganhadeiras. Ele perguntou quantas? Eu disse 15. Ele perguntou: quantos dias. Eu respondi: 15. Ele me deu a chave da casa e se mudou. E nós ficamos na casa até sair o CD”.

Rumo à ascensão

Quando terminou a gravação do álbum, Alê Siqueira afirmou com ênfase: “Esse CD é para prêmio”. A profecia do produtor foi concretizada em 2015, quando o álbum gravado pelas Ganhadeiras foi indicado para três categorias do Prêmio da Música Brasileira e levou dois: melhor álbum regional e melhor grupo regional.

Um ano depois, em 2016, o grupo foi convidado pelo próprio Alê Siqueira, que era produtor musical dos Jogos Olímpicos do Rio, para se apresentar na cerimônia de encerramento do evento. Para Amadeu, a apresentação no Maracanã foi outro marco que definiu os rumos do grupo. “Apresentamos no encerramento dos jogos a música Mulher Rendeira”, lembra.

Em 2020, veio finalmente a consagração do grupo com a escolha das Ganhadeiras como tema da Viradouro, que deu à escola de samba o título de campeã do Carnaval do Rio após um jejum de 23 anos. “A Viradouro foi uma coisa fantástica”, lembra Salviano. “Os caras vieram aqui. Nos encontramos no Abaeté. Eles desceram para a comunidade e fizeram uma pesquisa com grupo. Aí, eles falaram assim: aqui tem material para cinco enredos de escola de samba. Mas vamos fazer um”.

De acordo com Salviano, eles fizeram 20 enredos e mandaram para as Ganhadeiras escolherem a preferida delas. “Nós nos reunimos na Casa da Música. Ligamos o som e colocamos os 20 sambas para elas escolherem. E fomos anotando no papelzinho. Aí elas escolheram um enredo e mandamos para eles. Mas os caras disseram: ‘Esse samba não passa porque a rima é pobre’”.

Resultado: o samba preferido das Ganhadeiras foi passando pelas competições internas da Viradouro até ser escolhido pelos integrantes da escola como o enredo do Carnaval de 2020. “O samba chegou ao Carnaval e, como todos já sabem, se sagrou vencedor”, continua Salviano. Na volta do Rio, onde participaram do Desfile das Campeãs, as Ganhadeiras não tiveram muito como comemorar. Exatamente no dia em que chegaram foi decretado o lockdown por causa da pandemia da Covid-19. “A pandemia deu uma segurada. Mas eu achei que foi importante, porque as coisas que são verdadeiras vão acontecendo na maneira que devem acontecer”, reflete Amadeu Alves.

As perspectivas para o futuro são as melhores. Isso porque o grupo firmou uma parceria com o governo do Estado para a construção de uma nova sede, que deverá ficar no Abaeté. “Já foi assinada a ordem de serviço para o início das obras. A gente esteve agora com o governador e ele nos disse que a licitação já está sendo feita. Tem uma questão ainda do terreno, que é da prefeitura, mas estou confiante que tudo vai dar certo ", comemora Amadeu.

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Mulheres mais novas como Verônica Mucuna e Noeli Santana, a Pretinha de Itapuã, têm agora a missão de levar esse legado para frente. Pretinha conta que entrou no grupo em março deste ano, mas sempre acompanhou as Ganhadeiras, até porque sua mãe era uma delas. “Para mim é uma felicidade imensa poder participar do grupo. Minha era uma Ganhadeira, sempre lavou na Lagoa do Abaeté. As Ganhadeiras são um símbolo muito grande da raiz de Itapuã. Onde a gente chega, sente que as pessoas olham com orgulho”, conta ela.

Para Verônica, o trabalho não é fácil, mas sempre é recompensador. “Como todos os grupos de cultura popular, principalmente daqui de Salvador, a gente sabe que a labuta é grande para chegar a uma posição de visibilidade. Mas temos essas mulheres que vieram antes, essa contenção poderosa que nós temos, das yabás, dos orixás, de todas as espiritualidades presentes no grupo, da diversidade. E principalmente de a gente ser quem nós somos em essência” diz Verônica.

Se depender também das mais antigas do grupo, as Ganhadeiras terão vida longa. Integrante do grupo desde a fundação, Maria Teresa Lika, 63 anos, conta que é filha de pescador e lavadeira. “Eu, muito pequena, já ia para o Abaeté com minha mãe. Não gostava não, mas eu ia, viu”, conta ela. Agora, ela pretende passar o legado de Ganhadeira para frente. “Tenho minha netinha de 4 anos, que também é Ganhadeira. Quando falo que tem apresentação, ela sempre quer ir”, diz.

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Tags:

Abaeté carnaval Ganhadeiras itapuã samba Viradouro

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