A TARDE BAIRROS
Itapuã é uma festa
Confira o especial A TARDE bairros desta sexta-feira
Por Divo Araújo
A Lavagem de Itapuã, uma das festas populares mais emblemáticas de Salvador, preserva um caráter único entre as celebrações baianas. Enquanto festas como a do Bonfim e de Iemanjá, no Rio Vermelho, atraem multidões e refletem a alma da cidade como um todo, a Lavagem de Itapuã mantém suas raízes fincadas no bairro, com forte envolvimento de moradores e artistas da comunidade “itapuanzeira”, como ela se autodefine.
Esse caráter comunitário é reforçado por quem participa ativamente até hoje da organização da festa, como Celso Lázaro Gomes de Sousa, mais conhecido como Celso de Nissu. Filho de Dona Nissu, a mulher que retomou a tradição da lavagem “nativa” do bairro, Celso relembra as origens da festa, que, para ele, representa o coração do modo itapuanzeiro de ser. “Minha mãe teve um sonho na década de 80. Ela decidiu que deveria fazer uma lavagem como era antigamente”, conta. “Isso foi em 1986, 1987. Era tudo novo, sem apoio de ninguém. A gente enchia panelas com água e levava de casa até a igreja, começando antes das 5h da manhã, sob ‘legítima e espontânea pressão’.”
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Na época, ele e seus irmãos, ainda adolescentes, não tinham muito apreço pela obrigação de carregar água e buscar folhas e areia para enfeitar a igreja. Hoje, contudo, Celso reconhece que essas atividades ajudaram a transformar a festa em um evento verdadeiramente comunitário. “A Lavagem de Itapuã é a única festa que é organizada pela comunidade, pelos próprios moradores”, afirma, ressaltando que o poder público garante segurança, transporte e saúde.
Para Celso, “ao contrário do que algumas pessoas falam”, a festa de Itapuã não é violenta. “É uma festa de família, onde as pessoas se encontram para celebrar o modo itapuanzeiro de ser”, diz. Ele lembra que a festa enfrentou alguns equívocos, sendo o maior deles a participação dos trios elétricos, que ajudou a estigmatizar o evento". “Houve um enfraquecimento muito grande, mas o povo de Itapuã conseguiu descobrir novas formas de fazer a festa e assim nós fizemos”.
Segundo ele, no ano passado, a Lavagem contou com 25 veículos de pequeno porte sonorizados, todos blocos da própria comunidade, na sua grande maioria com atrações locais. E tudo funciona, assegura Celso. Para ele, a Lavagem de Itapuã é “cultura na veia”. Ele explica: “Você começa a celebrar a festa de Itapuã, com a saída do Bando Anunciador, depois vai pela lavagem nativa e dá sequência com as atrações locais. Aí vem Malê Debalê, Ganhadeiras de Itapuã, a escola de samba Unidos de Itapuã e vários outros.”
Bando Anunciador
A jornalista Cleidiana Ramos, pesquisadora com doutorado em festas populares, reforça a tese de Celso e pontua que a festa de Itapuã só se manteve graças à organização dos próprios moradores. “Itapuã sempre foi uma festa mais local, até por conta da distância. Nos anos de 1930, 40, era quase inimaginável você estar em Itapuã. Era quase fora da cidade.”
Esse caráter comunitário, explica Cleidiana, é reforçado pelo retorno de tradições como o Bando Anunciador. Cabe ao Bando, uma orquestra de sopro que percorre as ruas de Itapuã, mobilizar o bairro antes de todos se reunirem para a lavagem nativa, feita pelos moradores. Só mais tarde ocorre a “lavagem maior”, com a participação das baianas e grupos tradicionais. “Itapuã teve essa peculiaridade que foi uma reorganização dessa festa pelos próprios moradores, principalmente por Dona Nissu, que tomou a frente da organização do evento”, explicou Cleidiana Ramos. “Com isso, a festa ganhou ainda mais esse contorno de uma festa de bairro e que toda a comunidade toda participa”, afirmou.
O Bando Anunciador existia em outros bairros, mas hoje só persiste em Itapuã, como observa a pesquisadora. “Todas as festas de Largo de Salvador, em algum momento, tiveram o Bando Anunciador. O grande elemento da festa do Rio Vermelho, até os anos 40, era o Bando Anunciador, que eram os veranistas que faziam. Mas só Itapuã tem essa peculiaridade, que foi reintroduzida na retomada da festa.”
Festa ancestral
A origem da festa de Itapuã, no entanto, é muito mais antiga, como pontua Nelson Cadena, publicitário, pesquisador e autor do livro "Festas Populares da Bahia: Fé e Folia". Estima-se que ela tenha mais de 120 anos de criada’. Segundo Cadena, o evento remonta a práticas religiosas e culturais associadas à antiga igreja de Itapuã. “A Lavagem de Itapuã, como todas as lavagens, era inicialmente uma faxina para deixar a igreja limpa para as celebrações de sexta-feira, dia do Calvário de Jesus Cristo”, explica Cadena.
De acordo com ele, no final do século XIX, a lavagem não possuía ainda o aspecto ritual que foi ganhando ao longo do tempo. “A igreja tinha que estar limpinha. Na época, as ruas eram de barro, havia muita poeira, que entrava e sujava os altares, as imagens dos santos”, detalha. Ele conta que a água era transportada em burricos e a limpeza era realizada por escravos e moradores pobres, muitas vezes ligados à indústria baleeira.
Essa característica isolada e ligada à pesca de baleias deu à festa um público específico. Se nas décadas de 1930 e 40, Itapuã já era isolado da cidade, no final do século XIX o acesso à comunidade de pescadores era apenas por mar. “O transporte até a festa era feito por um navio da Companhia de Navegação Baiana, que trazia os ‘rogueiros’ — como eram chamados os frequentadores”. Ele também acredita que essa limitação geográfica ajudou a festa a manter um caráter local e comunitário.“O que movimentava a economia de todo o bairro Itapuã era a pesca da baleia. Então, a festa sempre foi muito ligada aos pescadores, que já levavam os presentes de Iemanjá muito antes de ser feito no Rio Vermelho, por exemplo”, conta.
Cadena também destacou a presença forte de grupos de afrodescendentes que participavam direta e indiretamente dos festejos. “Eles não éramos protagonistas da festa, mas participavam como servidores, trabalhando durante o evento”, diz. Ele cita a presença marcante das chamadas ganhadeiras, mulheres escravizadas e libertas, que prestavam diversos serviços na comunidade. “A participação das ganhadeiras era essencial para a festa, porque ela era vinculada a uma atividade econômica de ganho desse pessoal, que era a venda do peixe. Para a festa acontecer, tinha que ter comida e bebida. E elas, digamos assim, providenciavam a infraestrutura necessária para que a festa acontecesse”, observou.
Protagonismo das baleias
Se no passado, a festa de Itapuã estava ligada à pesca das baleias, hoje os cetáceos ainda disputam o protagonismo das celebrações. Esse vínculo começou em 1987, com a criação da Festa da Baleia de Itapuã, idealizada pelos artistas e produtores culturais Waly Salomão, João Loureiro, Rogério Duarte e o antropólogo Antônio Risério. O evento, que inicialmente integrava a cena cultural local, acabou migrando para se tornar uma das atrações da Festa de Itapuã.
Cristiano Loureiro, filho de João Loureiro, conta como essa tradição teve início. “Em uma conversa com amigos na casa de meu pai, surgiu a ideia de construir uma baleia em papel machê, que deveria chegar do mar no sábado de Carnaval e retornar ao cemitério de baleias na Quarta-feira de Cinzas”, contou ele.
A escultura, explica Loureiro, foi desenhada por Rogério Duarte e confeccionada pelo artista Isolino Passos, primo do cantor Gerônimo. Em 1988, o evento ganhou ainda mais força, com a participação de grandes nomes da música baiana, como Luiz Caldas, Olodum, Ilê Aiyê e Malê de Balê, sob a coordenação de João Loureiro e com o apoio de Gilberto Gil.
A baleia, desta vez rosa, tornou-se símbolo da festa, marcando o imaginário popular com sua chegada triunfal ao mar ao som de Gil e Riachão. Para a Lavagem de 2025, Loureiro tem planos para desfilar na festa com duas baleias. “A gente está mandando fazer em São Paulo uma baleia inflável de cinco metros de altura. Esse é o nosso projeto para o futuro: agente quer que a baleia desfile em várias cidades do Brasil.”
A outra baleia da festa é confeccionada por Ives Quaglia, morador de Itapuã e artista plástico, responsável pela alegoria do cetáceo e de outros animais marinhos. Para ele, a baleia representa não apenas um símbolo festivo, mas uma conexão com a história local. “Minha relação com a festa da baleia começou lá em 1987, com o Carnaval. Na Lavagem de Itapuã, o grupo Galera do Mar, que eu criei em 1995, faz parte da festa e, este ano, completa 30 anos.
Ives conta que, no início dos anos 2000, começou a produzir alegorias de baleias feitas de materiais como isopor, madeira, tecido esticado, papel e goma, para desfilar na festa de Itapuã propriamente dita. A cada lavagem, uma nova baleia era produzida para a festa, mas isso mudou em 2008.
“Fiz uma baleia maior, com 8 metros de comprimento. Desde então, desfilamos com essa baleia, que a cada ano passa por uma transformação. Ela já veio vestida de baiana, de afoxé”. Ives observa ainda que são as pessoas que carregam a baleia, “o que permite que ela dance, faça movimentos”. Ele também promete novidades para a festa do ano que vem.
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