A TARDE BAIRROS
Resistência africana e indígena
Tupinambás e escravizados ocupam região retratada na poesia de Caymmi e Vinicius de Moraes
Por Andreia Santana
As pedras, as dunas e as lagoas de Itapuã têm nomes próprios e antigos. Assim como, antiga é a ocupação do território onde desenvolveu-se o bairro mais cantado em prosa e verso de Salvador. A herança de resistência dos povos originários e dos quilombolas permeia a cultura e o modo de vida local.
E, no que depender de pessoas como Clara Domingas, mestra em antropologia e arte-educadora, esse legado não será esquecido. Ela e outros ativistas do Fórum Permanente de Itapuã se empenham em criar uma cartografia digital que dê conta de mostrar a riqueza cultural e ambiental do bairro e, principalmente, da Área de Proteção Ambiental (APA) do Abaeté, onde fica a famosa lagoa de 'águas escuras e arrodeada de areia branca’ cantada por Dorival Caymmi, um dos muitos artistas que, ao longo das décadas, manteve íntima relação com o bairro.
Caminhadas para seguir os olhos d’água do Abaeté (@emdefesadoabaete), levantamento da fauna, flora e comunidades tradicionais remanescentes, eventos como o seminário Xirês Patrimoniais (@xires_patrimoniais), jornadas de agroecologia e outras iniciativas correm em paralelo às tentativas do fórum para que o projeto de tombamento do Abaeté avance junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e ao Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (Ipac).
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E, tudo isso trazendo a comunidade para perto, para conhecer a história do bairro que tem pedra no nome, como símbolo de elemento que resiste aos milênios. Itapuã, pedra que ronca, pedra de ponta ou ponta de pedra, formada pela aglutinação dos vocábulos Ita (pedra) e puã (gemido), no tupi-guarani dos tupinambás, donos originais da terra.
“É um trabalho de educação popular e formação de base para a compreensão do território”, explica Clara Domingas, ao definir o trabalho que vem sendo realizado desde 2018, quando o Fórum Perpor 50 tupinambás contra um engenho de açúcar instalado em sua terra. Sem meios de lutar contra armas até então desconhecidas por eles, os tupinambás foram dizimados na própria casa.
Sem as aldeias indígenas, ao menos 13 foram destruídas e três mil tupinambás expulsos de sua terra, a ocupação territorial seguiu os moldes da colonização: engenhos, escravizados feitos entre os indígenas sobreviventes ou trazidos do continente africano. Malês e nagôs (ioru bás) foram os primeiros a chegar em Itapuã e a impor também suas estratégias de luta contra a escravidão.
No século XVIII, o Quilombo do Buraco do Tatu, destruído em1763, já abrigava africanos que escapavam dos engenhos. Itapuã, nessa época, também era ponto de embarque e desembarque de pessoas traficadas como escravas. Clara Domingas diz que embora o Buraco do Tatu seja o mais conhecido e registrado na historiografia oficial, havia uma rede articulada de quilombos em Itapuã.
Além disso, ao menos duas revoltas de malês ocorreram naquela região, em 1814 e 1816, quase 20 anos antes da Revolta dos Malês de 1835, que ocorreu em Salvador. É importante destacar que nessa época, Itapuã ainda não havia sido incorporada à capital.
Do século XVII, com o desenvolvimento da pesca sistemática às baleias, com armações que beneficiavam carne, óleo e até os ossos desses cetáceos, até as primeiras décadas do século XX, a região ainda era uma vila de pesca quase isolada, onde se destacava o famoso farol que figura em cartões postais, instalado em 1873.
Bucólico lar de artistas
A partir dos anos 1940, quando Salvador passa por intenso processo de urbanização, Itapuã vai deixando de ser vila de pescadores e começa a se incorporar à rotina da cidade, se transformando até ter a cara atual. Entre os anos 1940 e 1960, lotes de terra começam a ser comercializados, veranistas passam a ‘viajar’ do centro da cidade para Itapuã, em busca do clima bucólico para passar férias.
Até os anos 1950, o bairro ainda era abastecido por dezenas de bicas que captavam água nas nascentes que alimentavam as lagoas do Abaeté. Mais uma vez, a transição não ocorre sem que a comunidade local resista ao apagamento das tradições culturais.
Nesse contexto, a partir dos anos 1970 surgem grupos culturais que buscam preservar as antigas festas da comunidade que ocorriam desde o século XIX ou começo do século XX, como a Festa da Baleia, a Lavagem de Itapuã, a festa dos pescadores para o padroeiro São Pedro (a chamada Missa do Anzol), o carnaval do bairro, o Presente para Oxum.
Esse ar de cidade do interior na beira da praia e com um calendário de manifestações culturais sempre atraiu artistas. Além de Caymmi, a lista inclui Vinicius de Moraes, Juca Chaves, Carlos Bastos, Calazans Neto e Sante Scaldaferri, entre muitos outros.
Vinicius, autor de Tarde em Itapuã, reza a lenda, chegou a pedir ao arquiteto que projetou a casa onde ele vivia, para instalar uma janela no banheiro, de frente para a banheira, para que ele tomasse banho vendo o mar. Caymmi, que cantou Itapuã e imortalizou a paisagem do Abaeté, em 1985, na inauguração da avenida que leva o seu nome, disse: “Aqui bebi na grande fonte de inspiração e sabedoria: sou um reflexo de vocês, do povo, este é meu lugar, aqui mora meu coração”, discursou para mais de 10 mil pessoas, incluindo o casal de amigos Jorge Amado e Zélia Gattai.
Preservar a diversidade cultural, religiosa e ambiental de Itapuã é o desafio da comunidade. Ao redor do Abaeté, por exemplo, não existe só a areia branca da canção, mas 50 terreiros de religiões de matriz africana. Ao menos 400 espécies de flora integram o território da APA, um dos últimos remanescentes de restinga em Salvador.
As pedras, as dunas e os olhos d´água, com nomes antigos, estão vivos e compõem o mosaico de paisagens impregnadas pelas tradições ancestrais que fazem de Itapuã um lugar de inspiração, resiliência e resistência.
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