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SONS DO TERREIRO MUNDO

Gandhy e Cortejo preservam a beleza do carnaval de Salvador

Chegando aos 75 anos, o afoxé mantém viva a reverência à religiosidade de matriz africana

Por Howfenns Cavalcante

01/02/2024 - 9:00 h | Atualizada em 10/02/2024 - 13:03
O Afoxé Filhos de Gandhy completa 75 anos em 2024
O Afoxé Filhos de Gandhy completa 75 anos em 2024 -

Quando o tecido branco recobre a pele negra do asfalto, como que suspensa no ar, uma questão se impõe: quem vem de lá, será o Gandhy ou o Cortejo? A verdade é uma só, a beleza está nas ruas. E todo esse encanto que fascina baianos e turistas vem da riqueza cultural produzida e preservada pelos terreiros de candomblé.

Alberto Pitta, artista plástico e fundador do Cortejo Afro, é categórico ao afirmar que “quem nos apresentou a miséria foi o colonizador, nunca fomos pobres”.

O mestre de percussão Gabi Guedes relembra que a formação rítmica dos toques que se apresentam nas festas populares, nas festas de largo e nos carnavais vem dos terreiros.

Fruto de uma rica mistura de timbres e texturas, a musicalidade dos gêneros percussivos é uma característica marcante da identidade do povo baiano. Além disso, as sonoridades que vêm dos tambores compartilham uma raiz comum, a religiosidade de matriz africana. Para conhecer melhor esse universo, a equipe do A TARDE Play mergulhou nas histórias que dão origem e conectam os blocos afro e afoxés de Salvador. O resultado você confere no documentário "Sons do Terreiro Mundo", um conteúdo exclusivo, disponível em breve no canal do A TARDE Play no Youtube.

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A pura beleza do branco rajado de azul

O canto dos clarins anuncia o ritual do padê. Ao comando dos apitos o agogô dá início ao xirê que saúda Exú Lonan, e pede proteção à divindade guardiã dos caminhos, da prosperidade e do êxito. O xequerê e o atabaque dão corpo ao ritmo que embala o bloco e anima o tapete branco da paz em seu desfile. Antes do perfume da alfazema preencher o ar, as pombas brancas ganham os céus, as pipocas banham os foliões e, em uníssono, o Largo do Pelourinho ecoa a mesma saudação: Ajayô! Essa reverência a Oxalá não deixa dúvidas, já é carnaval para um dos maiores afoxés do Brasil.

Para Mazinho, cantor dos Filhos de Gandhy, que ingressou na entidade ainda criança e já contabiliza 40 carnavais, a passagem do bloco desperta grande emoção: “A pessoa se arrepia. Chegando na avenida, naquela passarela, não tem como não se emocionar.”

Ao contornar a Fundação Casa de Jorge Amado, os Filhos de Gandhy avançam pelo Terreiro de Jesus e seguem em direção à praça Castro Alves. Olhando em perspectiva, quando o som do ijexá recobre a Rua Chile o que se vê não é apenas um dos blocos mais belos da folia baiana, pois, nesse ano em que o mais célebre afoxé da Bahia completa suas bodas de brilhante, cada ornamento inscrito na fantasia reluz com a vitalidade de quem preserva em si a história do carnaval de Salvador.

Fundado no dia 18 de fevereiro de 1949, por estivadores portuários da capital baiana, o grupo está prestes a completar os seus 75 anos. Para o babalorixá Pai Toinho, a história do Afoxé Filhos de Gandhy é constituída por décadas de “resistência, afirmação e realização”. O sacerdote do bloco também comenta sobre o sentimento fraterno que faz com que a paixão pela entidade seja um traço hereditário e um dos motivos responsáveis pela manutenção do legado da agremiação. Nas palavras dele, o amor pelo Gandhy “vem passando de pai para filho, de neto para bisneto, e aí chega numa conjunção que é esse lindo afoxé".

Em 2010, por meio do Decreto n° 12.484, foi aprovada pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC) a proposta que elevou o desfile de afoxés ao patamar de patrimônio imaterial do Estado da Bahia. Xiko Lima, diretor financeiro do bloco, revelou que agora em 2024, embora ainda não haja uma data oficial para a formalização do reconhecimento, "já está saindo a patrimonialização do Afoxé Filhos de Gandhy".

Ritual na igreja de São Lázaro
Ritual na igreja de São Lázaro | Foto: Shirley Stolze | Ag A Tarde

Xiko Lima também nos conta que, mesmo fundado por pessoas ligadas às grandes casas de axé aqui de Salvador, o grupo nasceu como uma entidade carnavalesca dissociada de tradições religiosas e que "a questão com o candomblé só é evidenciada dois anos depois, quando o bloco ganha a condição de afoxé". Como consequência dessa transformação, a proposta rítmica do Gandhy também sofreu mudanças, sendo adotado, então, o ijexá. Segundo Xiko, o ritmo veio por ser “uma música dolente, que traz aquela condição de paz, de você fazer um desfile tranquilo".

Assim como a alfazema traz o cheiro de paz, o fio que tece o tapete branco do Gandhy segue urdindo uma trama de manifestações culturais que preservam e constroem a identidade do carnaval da Bahia. Dentre as expressões mais novas, está o Cortejo Afro, que nas palavras de Alberto Pitta, o seu próprio fundador, é uma “releitura de tudo o que há”.

Uma reverência elegante às origens

Assim como o arco-íris, o desfile do Cortejo Afro é um fenômeno da natureza, um raio de sol incidindo sobre a avenida, onde podemos observar todo o colorido presente na luz branca que se espalha em meio à folia. O poeta James Martins não vacila ao declarar que "o Cortejo tem um negócio que é o seguinte: é lindo! O Cortejo Afro é o bloco mais bonito do carnaval da Bahia".

Fundado no dia dois de julho de 1998, na região de Pirajá, onde foram travadas as batalhas mais importantes da guerra de independência da Bahia, o bloco surgiu dentro do terreiro Ilê Axé Oyá, sob a orientação espiritual da ialorixá Mãe Santinha.

Alberto Pitta relembra que quando saiu do Olodum perguntou à Mãe Santinha de Oyá o que deveria fazer no carnaval, no que ela sugeriu “faça um bloco, você sempre gostou de carnaval, você sempre fez panos para os blocos, então faça o seu bloco".

Alberto Pitta, fundador do Cortejo Afro
Alberto Pitta, fundador do Cortejo Afro | Foto: Shirley Stolze | Ag A Tarde

De lá para cá, mais que uma nova agremiação, sofisticada e elegante, a entidade tem contribuído com a riqueza artística da folia, promovendo uma experiência estética repleta de ousadia, criatividade e renovação.

O cantor e compositor Aloísio Menezes define a trajetória do Cortejo como "25 anos de vida, lutando pelo respeito à religião de matriz africana e contra a intolerância religiosa".

Segundo o próprio fundador da agremiação, tudo aquilo que o Cortejo faz hoje sempre aconteceu no carnaval da Bahia. "A gente apresenta com uma nova roupagem, uma nova linguagem, uma música que é a síntese dos ritmos dos blocos de índios, do Olodum, enfim. O Cortejo é isso, uma síntese dos blocos afro", declara o artista plástico.

Ala de dança do Cortejo Afro no Carnaval
Ala de dança do Cortejo Afro no Carnaval | Foto: Joá Souza | Ag. A TARDE

Com o conhecimento de quem acompanhou de perto as transformações da festa, Alberto Pitta desenha um panorama histórico da folia e relembra que na década de 1970 o carnaval era marcado pela presença dos blocos de categoria indígena, que aos poucos foram perdendo espaço para os blocos afro com o surgimento do Ilê Aiyê em 1974. Já em 1979 o Badauê desponta, e com ele uma série de afoxés interessantes produziram um movimento tão potente que acabou dando mais corpo ao já tradicional Filhos de Gandhy. E é a partir de todas essas experiências, que chegaram até aqui por meio de um caminho aberto com muita luta, que Pitta dá vida a um bloco inovador, que não abre mão da plasticidade e trata a festa como ela merece: um verdadeiro espetáculo.

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