MATERNIDADE ATÍPICA
Mães de pessoas com deficiência relatam vivências e desafios da rotina
Mulheres falam sobre romantização e falta de acolhimento durante a rotina de cuidado com os filhos
Por Rafaela Souza
Em meio aos adjetivos e discursos associados à força e superação, a romantização da maternidade atípica pode omitir diversos preconceitos e desafios enfrentados pelas mães de pessoas com deficiência na rotina de cuidado com os filhos. No Dia das Mães, comemorado neste domingo, 14, mulheres relataram ao Portal A TARDE suas vivências e destacaram a necessidade de políticas públicas que proporcionem uma sociedade mais inclusiva para as mães e os filhos.
A diarista Lucia Flávia Alves, de 48 anos, que é mãe de José Leandro, de 13, e Larissa, de 20, relembra que precisou mudar definitivamente para Salvador devido à rotina de tratamentos e cuidados da saúde do garoto, que nasceu com deficiência visual. Anteriormente, ela viajava duas vezes a cada mês com José Leandro ainda recém-nascido. Criada pela avó na cidade Conceição do Almeida, no recôncavo da Bahia, Lucia conta que a mudança não era um desejo dela, mas se tornou uma necessidade para a família.
"No início, eu não queria vir, mas sabia que ia chegar a hora que teria que fazer a mudança. Porque lá não tinha escolas com máquina braille. A gente veio em 2012, quando ele tinha três anos, para dar continuidade ao tratamento porque lá não tinha tantos recursos como na capital. Então, eu pensei que não queria aquilo para o meu filho. Quero que ele cresça, avance, seja independente e tenha uma vida. Nós queremos sempre o melhor para os nossos filhos. Eu saí de lá e vim de mala e cuia", revela.
Desde os nove meses de vida, José Leandro é assistido pelo Instituto de Cegos da Bahia. Com atividades e acompanhamentos duas vezes na semana, Lucia acompanha o desenvolvimento do filho de perto e destaca a autonomia adquirida por ele nos últimos anos.
“José é um menino muito esforçado, dedicado. Tem muita autonomia, faz as coisas dele sozinho. Ele quer ser um adulto independente e eu estimulo isso. A escola fica a cinco minutos de casa e ele vai sozinho”, afirma.
Mesmo com a dedicação aos filhos, Lucia destaca a importância das mães de pessoas com deficiência serem acolhidas e olhadas como mulheres que também precisam de um tempo livre para se divertir. Ela revela que não se permitia sair sem os filhos e fazer algo que ama, como curtir uma seresta na companhia de amigas.
Eu falo sempre quando participo de palestras que, antes das mães terem filhos, elas já viviam. Quando eu vou para minha seresta, eu deixo ele de banho tomado, barriguinha cheia, não falta nada. Eu, como mãe humilde, não deixo faltar nada. Então, porque eu também não posso curtir, viver? Também tenho o dia de sair com eles.
Falta de acolhimento
A falta de acolhimento às mulheres é uma questão apontada por Maíra Cavalcante, de 48 anos, que é autista, mãe de Gabriel, de 10, e presidente da Associação Mães Autismo. Para ela, as dificuldades estão presentes no dia a dia das mães de pessoas com deficiência e essa realidade impacta diretamente na saúde mental dessas mulheres.
"A maternidade atípica é cercada de preconceitos. No meu caso, que sou autista e mãe de um menino autista, o preconceito se torna ainda maior e as pessoas questionavam a minha gravidez. E depois quando a criança nasce e você ainda está na fase de adaptação ninguém chega perto. Além disso, muitas vezes a gente sofre com o julgamento de outras mães ao invés de receber acolhimento. Então, isso acaba causando muita depressão, a falta de suporte principalmente para mães atípicas, pretas, periféricas, mães solo que são abandonadas pelo genitor. Essa mulher é sozinha para cuidar desse filho", aponta.
Maíra ainda ressalta que a saúde mental materna deve ser uma prioridade para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e menos capacitista. Ela pontua que, além do atendimento voltado aos filhos, as mães também precisam ser incluídas em uma rotina de cuidados.
"Falta esse olhar, esse acolhimento para as mães até nos locais onde os filhos são atendidos, muitas sofrem psicofobia e são culpadas pelo diagnóstico do filho. Já ouvi que o autismo do meu filho era culpa minha. Isso infelizmente acontece entre profissionais que não entenderam a importância de fortalecer não só os filhos, mas também as mães", argumenta.
“É necessário e urgente que haja um acolhimento para as mães tanto na rede pública quanto particular. Enquanto o filho está na terapia, a mãe está aguardando. É um tempo que também poderia ser usado para acolhê-la. A gente ainda enfrenta muito preconceito, capacitismo. Então, a gente sempre precisa lembrar para as mães que temos direitos assegurados por lei e que precisam ser respeitados”, acrescenta.
A falta de acolhimento às mulheres é uma questão apontada por Maíra Cavalcante, que é autista, mãe de Gabriel, de 10 anos, e presidente da Associação Mães Autismo. Para ela, as dificuldades estão presentes no dia a dia das mães de pessoas com deficiência e essa realidade impacta diretamente na saúde mental dessas mulheres.
"A maternidade atípica é cercada de preconceitos. No meu caso, que sou autista e mãe de um menino autista, o preconceito se torna ainda maior e as pessoas questionavam a minha gravidez. E depois quando a criança nasce e você ainda está na fase de adaptação ninguém chega perto. Além disso, muitas vezes a gente sofre com o julgamento de outras mães ao invés de receber acolhimento. Então, isso acaba causando muita depressão, a falta de suporte principalmente para mães atípicas, pretas, periféricas, mães solo que são abandonadas pelo genitor. Essa mulher é sozinha para cuidar desse filho", aponta.
Maíra ainda ressalta que a saúde mental materna deve ser uma prioridade para a promoção de uma sociedade mais inclusiva e menos capacitista. Ela pontua que, além do atendimento voltado aos filhos, as mães também precisam ser incluídas em uma rotina de cuidados.
"Falta esse olhar, esse acolhimento para as mães até nos locais onde os filhos são atendidos, muitas sofrem psicofobia e são culpadas pelo diagnóstico do filho. Já ouvi que o autismo do meu filho era culpa minha. Isso infelizmente acontece entre profissionais que não entenderam a importância de fortalecer não só os filhos, mas também as mães", reitera.
Capacitação
A dona de casa Vanessa Prata, de 41 anos, que é mãe de Ana Carolina, de 18, também relata o impacto positivo causado pelo acolhimento que recebeu durante o tratamento da filha, que nasceu com Síndrome de Down. Diante disso, Vanessa destaca a importância da capacitação dos profissionais para um atendimento mais humanizado e inclusivo.
A especialista me acolheu, explicou com calma o diagnóstico da minha filha. Depois disso, eu fiquei mais tranquila. Após o parto, eu só ouvi que a suspeita era que ela poderia ter um retardamento mental. Eu era nova e não sabia direito. Nos primeiros 15 dias, eu amamentava ela e chorava.
A dona de casa reitera que, além do desconhecimento, o choro inicial foi motivado pelo medo da filha ser discriminada nos espaços por conta da deficiência. Além de Ana Carolina, Vanessa é mãe de Cleber, de 24, e Bruna, de 11. "A gente vive em uma sociedade cheia de preconceitos. Na escola, na própria família… É uma luta. A gente vive matando um leão por dia, é muito difícil. Minha filha já sofreu bullying, já foi agredida na escola. A jornada é muito difícil. A minha filha sofre e eu sofro junto", desabafa.
Além do acolhimento na área da saúde, Vanessa aponta que a educação também precisa de mais inclusão para pessoas com deficiência. Ela afirma que o ambiente deve potencializar e oferecer possibilidades para todos. A partir disso, ela diz que a mudança pode ser pensada através de ações de conscientização entre a comunidade escolar e familiar.
"Infelizmente, os nossos filhos sofrem porque muitas pessoas não acreditam no potencial deles. Na escola, a mesma coisa. Eu queria muito que a sociedade enxergasse que eles são capazes de alcançar o que querem. O sonho da minha filha é ser atriz, garota propaganda. Ela pode, ela é capaz, por que não? Mas, infelizmente, a gente não acha portas que se abram para a gente. Olham torto, julgam, acham que não vai conseguir", diz.
Enfrentando o capacitismo, Ana Carolina se encontrou no universo da dança e integra a companhia Opaxorô, iniciativa da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae Salvador).
Âmbito profissional
Além das dificuldades no cuidado da saúde, o mercado de trabalho é considerado excludente para mães atípicas. Segundo a psicóloga Iara Pereira, de 41 anos, que é mãe de Benjamin, de 9, e diretora da Associação Mães Autismo, as possibilidades de atuação profissional para mães de pessoas com deficiência deveriam ser asseguradas por lei nas esferas estaduais e municipais, principalmente em consideração ao recorte socioeconômico das mulheres, que são mães solo e vivem em regiões periféricas.
"O mercado de trabalho é um ponto crucial porque, tendo em vista a nossa atuação na associação, onde atualmente, são mais de 800 mães associadas e a maior parte é solo e vive na periferia. Elas precisaram abrir mão de um emprego formal, e isso quando conseguem. São mães empreendedoras que vendem algumas coisas para sobreviver e vivem essencialmente do benefício de prestação, que é concedido para pessoas com deficiência. É muito cruel e não dá para falar sobre maternidade atípica sem fazer esse recorte socioeconômico. Aí você pensa que hoje, legalmente, só tem a redução da carga horária de trabalho para funcionários federais, que não é uma parcela muito grande", afirma.
A psicóloga ainda diz que, além do recorte socioeconômico, a redução de carga horária sem perda salarial é fundamental para mães que sofrem com a falta de rede de apoio.
Uma mulher que não tem rede de apoio e não consegue uma redução da carga horária, ela está entre a cruz e a espada. Muito provavelmente ela vai deixar o emprego para cuidar do filho. A questão é muito maior. No meu caso, eu tenho a sorte de estar em um lugar que flexibiliza, mas não podemos contar com a boa vontade dos outros. Tem que ter lei que garanta que essa mulher terá redução da carga horária. Muitas judicializam, mas nem sempre há garantia. Por isso, é necessário a implementação de políticas públicas nesse sentido.
Assim como Iara, a servidora pública Marleide Nogueira, de 49 anos, que é mãe do atleta de Jiu-jitsu Igor Nogueira, de 27, e também integra a mesma associação como vice-presidente, defende que é necessário a criação de políticas públicas para garantir o direito de acesso ao trabalho pela mães atípicas.
"Eu acho que é necessário pensar que é uma questão de direito mesmo, a questão de trabalho decente, e para mim isso é questão de vida, é constitucional. É ter um trabalho remuneradamente adequado e proporcionar liberdade para essa mulher ter uma vida digna e, que de fato, possibilite ela viver e não sobreviver", declara.
Ainda de acordo com Marleide, as mães atípicas que estão na informalidade precisam ser contempladas pelas iniciativas, já que não podem se formalizar em decorrência dos critérios de renda do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que garante um salário mínimo por mês à pessoa com deficiência de qualquer idade. Para ter direito ao BPC, é necessário que a renda por pessoa do grupo familiar seja igual ou menor que 1/4 do salário-mínimo. Conforme o Governo Federal, além da renda de acordo com o requisito estabelecido, as pessoas com deficiência também passam por avaliação médica e social no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).
"Muitas vivem na informalidade por conta dos critérios exigidos para receber o auxílio que não permite que essa mulher possa complementar a renda, nem se tornar MEI ela pode. É uma questão que precisa ser discutida, a questão desses critérios, a renda que tem um limite. A gente fala que a família precisa estar na linha da miséria para ter acesso a esse benefício. A deficiência do filho impacta a vida dessa mulher porque ele está inserido naquele núcleo familiar, que na maioria, é formado apenas por mulheres. Ela não é sentenciada pela deficiência do filho, é a sociedade, é o sistema que estabelece um critério como esse que não permite que as mulheres busquem outras formas para se manter", aponta.
Iniciativas
Diretora de Políticas Públicas para Pessoas com Deficiência da Secretaria de Promoção Social e Combate à Pobreza, Esportes e Lazer (Sempre), Daiane Pina, explica que a pasta tem desenvolvido iniciativas voltadas para mães de pessoas com deficiência na capital baiana, a exemplo da ação "Empreender é com Elas", lançada em março deste ano.
[...] Precisamos resgatar essas mulheres que, geralmente, são sozinhas e fortalecem outras mulheres. A diretoria vem desenvolvendo e tentando abarcar diversas áreas porque a pessoa com deficiência não é só criança, escola. A criança cresce e vira adulto também. Então, criamos alguns projetos, como o 'Empreender é com Elas'. A ação é voltada para mães de pessoas com deficiência ou mulheres com deficiência. Esse é o critério para participar". A gente vem fazendo parcerias com outras secretarias e instituições privadas. Conseguimos cursos profissionalizantes para fazer acarajé, pãozinho, tortas, unhas, cabelos, ferramentas de marketing.
Além das propostas de capacitação, a iniciativa também promove momentos de lazer para as mulheres a partir da realização de eventos culturais. "É preciso que essas mulheres também pensem nelas e não só nos filhos. Por dois motivos, que são: elas adoecem porque não sobra tempo para o autocuidado. A gente faz oficinas de cuidado com o corpo, as unhas, cabelos. Agora, a gente quer que elas tomem gosto pela nutrição e atividade física. A próxima etapa será focada nisso", afirma.
Sobre as dificuldades enfrentadas pelas mães atípicas, a presidente da Comissão da Mulher de Salvador (CMS), Ireuda Silva (Republicanos), pontua que é preciso "repensar a questão da mulher como um todo e acabar com a invisibilização" em relação ao estigma de que suportam tudo sozinhas.
A mulher sofre invisibilização e negligência social em diversos contextos, como quando é abandonada pelo esposo e precisa criar o filho sozinha; ou quando sofre abandono em meio a doenças graves; ou quando está sofrendo violência doméstica.
A parlamentar ainda destaca que as políticas públicas devem contribuir para a qualidade de vida dessas mulheres, como o aumento da criação de creches e escolas em tempo integral. "Isso permite que a mãe tenha mais autonomia em sua vida profissional e acadêmica e possa se dedicar a outras atividades. Além disso, as escolas precisam ter mais auxiliares de desenvolvimento infantil, voltados especificamente para crianças com deficiência. Isso é garantido por lei, mas ainda não é uma realidade efetiva", diz.
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