
Por Andrêzza Moura
Por meses, o baiano 'Rafael' - nome fictício -, de 38 anos, viveu o que descreve como “um inferno”. Em conversa exclusiva com o Portal A TARDE, já em solo brasileiro, o ex-combatente na guerra da Ucrânia contra a Rússia, disse ter aceitado um convite feito ainda no Brasil, motivado pelo sonho de seguir a carreira militar, por dificuldades financeiras e pela promessa de altos salários. No entanto, o que encontrou ao chegar lá foi um sistema marcado por desinformação, precariedade e risco extremo.
Rafael trabalhava no setor administrativo e enfrentava problemas financeiros quando foi abordado por um recrutador brasileiro que atua como intermediário de um batalhão ucraniano. A proposta parecia irrecusável. “Eu estava apertado. O recrutador me passou que o salário seria 45 mil mensal e 120 mil se fosse para missão no front [combate na linha e frente]”, lembrou.
Mas, o que ele não sabia ao aceitar a oferta era que os valores não eram em reais, tampouco em dólares, mas sim, em grívnias - a moeda oficial da Ucrânia. Ele só tomou conhecimento de que, na prática, a promessa financeira se mostrava muito menor do que parecia, ao assinar o contrato, que tinha validade de três anos. “Eles não falam que é grívnia”, afirmou.
Atualmente, uma grívnia equivale a cerca de R$ 0,13. Com isso, o salário mensal de 45 mil grívnias, valor prometido no batalhão em que Rafael atuou, equivale a aproximadamente R$ 6.065 mil. Em outros batalhões, segundo ele, o pagamento mensal cai para 25 mil grívnias, o que representa cerca de R$ 3.369 mil. “Tem batalhão que paga 25 mil grívnias. Tem batalhão que paga 45 mil grívnias. Eles não falam que é grívnia”, reforçou.
Além do salário mensal, havia a promessa de um pagamento extra por missão no front. “120 mil grívnias por missão, de 30 dias no front”, relatou. Convertido para a moeda brasileira, o valor corresponde a cerca de R$ 15,6 mil.
No entanto, segundo o ex-combatente, esse pagamento raramente é feito de forma integral, quando é feito. “Aqui [120 mil grívnias] é só por missão, que dura 30 dias no front. Se fosse tudo como combinado estaria até legal. Mas nada foi cumprido”, desabafou ele.
O recrutamento no Brasil
Como já dito por Rafael, o aliciamento foi feito por um brasileiro que atua como intermediário de um dos batalhões que operam na Ucrânia. Ele afirma que o discurso foi direto: altos ganhos, alojamento garantido e alimentação diária. A exigência principal era ter passaporte válido.

“Não tem critério nenhum. Só perguntam se você tem passaporte. Mulher lá é médica. Médica que nunca pegou em uma seringa. Lá que você tem os treinamentos de primeiros socorros. Mas, médico também porta fuzil. Porque na hora da trocação [troca de tiros], ela tem que ter [arma]", explicou ele, afirmando que, além da promessa de salário, também é oferecido alojamento e três refeições diárias: café da manhã, almoço e janta.
Na esperança de que voltaria para casa com um valor significativo na conta bancária, o baiano aceitou até a arcar com todo o custo inicial da viagem. “Eu tive que custear minha passagem até a Ucrânia. Paguei cerca de R$7 mil reais, que peguei emprestado. Foram dois dias de viagem", contou ele revelando que o percurso foi: Brasil x Lisboa e Varsóvia, na Polônia, até a entrada em território ucraniano", contou.
O Portal A TARDE também conversou com a jornalista e prima de Rafael, Itacília Lôbo, que reforçou a ausência de critérios rigorosos para o alistamento. Segundo ela, ao tentar se alistar através de um número encontrado nas redes sociais, percebeu que qualquer pessoa pode ser aceita, independentemente de idade, experiência ou histórico militar.

"É muito fácil, muito fácil. Entrei em contato pelo WhatsApp e tentei me cadastrar [se alistar]. A única pergunta foi se eu tinha passaporte. Porque, na verdade, eles não estão nem aí para quem você é, o que você faz, pode ser qualquer pessoa. Eles querem qualquer pessoa, mesmo porque essa pessoa está indo para a linha de frente, para lutar e morrer", declarou ela, reafirmando que mulheres também são levadas à linha de frente, armadas e treinadas para acompanhar os soldados.
"Pouco importa se você tem passagem, se você não tem, se você tem 18 anos, se você tem 48, porque se importasse, teria sido perguntado, teria feito uma entrevista durante a conversa pelo WhatsApp", finalizou ela.
Passaporte retido e isolamento
Ao chegar à Ucrânia, Rafael diz que entrou em um limbo burocrático que durou cerca de um mês. “Eles pegam o passaporte pra fazer a tradução. Você mesmo paga, paguei 100 grívnias, que corresponde a R$70, mais ou menos. Depois disso, você fica incomunicável”, afirmou.
Ele explicou que, durante esse período, os combatentes ainda não têm contrato assinado, mas já permanecem dentro das instalações do batalhão. “Você fica um mês perdido, esperando rodar o contrato".

Após a assinatura, o isolamento se intensifica. “No centro de treinamento, eles recolhem celular, recolhem tudo, porque os drones russos detectam onde têm sinal de celular. Onde têm muita rede, eles mandam ataque. Durante a semana, você não tem contato nenhum. Só no domingo entregam o celular”, relatou.
No front: do preparo à convivência com a morte
Rafael relata que o treinamento recebido varia conforme a unidade. No caso dele, durou cerca de dois meses, enquanto em outras unidades o preparo chega a apenas 15 dias. “Tem gente que nunca pegou numa arma, nunca teve contato com militarismo”, afirmou, lembrando que ele próprio também nunca tinha usado uma arma antes. Segundo ele, o treinamento foi insuficiente e não prepara para a violência real do campo de batalha. “Foram só alguns meses, mas pareciam dez anos. Não volto mais pra aquele inferno", disse, aliviado.
O ex-combatente descreve o cotidiano na guerra como um convívio constante com a morte. “A gente dizia que a morte andava com a gente 48 por 48”, revelou, explicando que a maioria das mortes não ocorre em troca direta de tiros, mas por minas terrestres e drones explosivos. “Quando pisa numa mina, explode. Só fica do meio pra cima. Drones kamikazes transformam a pessoa em carne moída”.

Ele ainda lembra com nitidez seu primeiro combate corpo a corpo e a primeira vez que precisou matar para não morrer. Para ele, a experiência foi instantânea e instintiva: “Já estava com um fuzil praticamente na minha nuca. Só deu tempo de tirar a faca. Foi reflexo, questão de três segundos”. Questionado sobre o impacto psicológico de matar, ele foi direto: “Depois do primeiro e do segundo, torna-se normal”, revelando ter matado 29 russos.
As mortes de amigos também estão vivas na memória do baiano. Ainda muito abalado, ele lamenta as perdas durante a guerra. “Só da minha turma, foram 10. Nós formamos 21 pessoas, só sobramos 11”, incluindo brasileiros, colombianos, um argentino e um polonês. Quem segura posição são os brasileiros e os colombianos. Os ucranianos são frouxos, covardes. Racistas”, desabafou.
Denúncias de corrupção e bloqueio de saídas
Além do horror da guerra, Rafael denuncia um esquema de corrupção envolvendo batalhões estrangeiros. Segundo ele, os salários não são pagos diretamente pelo Exército ucraniano, mas repassados aos batalhões, que controlam os valores. “Eu muitos meses lá, mas só recebi [salários] três meses. O resto ficou com o batalhão”.

Ainda conforme ele, o problema se agrava com as mortes. “O contrato é de três anos. Se não tem corpo, o soldado é dado como desaparecido. Sem corpo, não tem morto. E o comandante continua recebendo o salário”, afirmou, ele revelando que muitos corpos não são resgatados de propósito. “Não é porque não dá. É porque não querem”.
Desde que deixou a Ucrânia, a Rafael diz estar recebendo diversas mensagens de brasileiros pedindo ajuda para deixar o país, já que estão sendo impedidos pelos comandantes, mesmo já tendo cumprido o prazo mínimo de seis meses para voltar a casa. “Os comandantes estão bloqueando a saída".
Um alerta
Hoje, longe do front, Rafael diz respirar aliviado. Ele afirma ter retornado ao Brasil sem dinheiro, mas com o que considera seu bem mais precioso: a vida. “Eu voltei com a minha vida. Nada mais”, disse, ao fazer um alerta direto.
Diante de tudo o que viveu na guerra, o ex-combatente decidiu falar abertamente para evitar que outros brasileiros caiam na mesma armadilha. Para ele, o discurso heroico e as promessas financeiras escondem uma realidade brutal.
“Não vão. Isso é ilusão. Guerra não é filme. Você convive com a morte o tempo todo. Não caiam nesse golpe de recrutadores”, alertou.
A reportagem procurou o Ministério das Relações Exteriores (Itamaraty) para saber o que o órgão tem feito em relação à participação de brasileiros na guerra da Ucrânia, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.
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A guerra
O conflito entre Rússia e Ucrânia teve seu início oficial em 24 de fevereiro de 2022, quando tropas russas avançaram sobre o território ucraniano. Mesmo em 2025, combates e ofensivas continuam, mas fazem parte desse mesmo conflito iniciado em 2022. No entanto, as raízes da tensão são mais antigas: em 2014, a anexação da Crimeia pela Rússia e os confrontos no leste da Ucrânia já indicavam a fragilidade da região, impulsionados por fatores históricos, políticos e estratégicos, como a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), percebida por Moscou como uma ameaça à sua segurança.
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