Dunas do Abaeté são disputadas por evangélicos e povo de santo | A TARDE
Atarde > Bahia

Dunas do Abaeté são disputadas por evangélicos e povo de santo

Proposta de mudança de nome do local causou embate entre entidades religiosas e o poder público

Publicado quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022 às 13:33 h | Atualizado em 16/02/2022, 14:02 | Autor: Cássio Santana
Lago do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador
Lago do Abaeté, no bairro de Itapuã, em Salvador -

Em um vídeo que circula em grupos neopentecostais no WhatsApp, o vereador Isnard Araújo (PL) sobe, junto com um séquito de homens, as dunas da Lagoa do Abaeté, sob os auspícios de uma música serena ao fundo. Na sequência, as imagens mostram o edil devidamente instalado no topo do morro de areia, tal como um profeta, quando, em pregação, ele explica o propósito da marcha:

“Estamos aqui no Monte Santo, que hoje não tem a placa com o nome ‘Monte Santo’, mas vai ser chamado de Monte Santo este local que está aqui”, aponta o vereador para uma região de grama baixa. “Aqui vai ter uma área de espera, uma área de convivência, em que o pastor vai chegar com o povo e aqui vai ter local de espera para reunião e também banheiros”.

Não satisfeito, Isnard Araújo continua, agora em tom mais solene, com um documento à mão. O emblema da Câmara Municipal de Salvador (CMS) no papel confere importância e ares de oficialidade ao escrito.

“Este local se torna Monte Santo e o prefeito vai nos dar este apoio para melhorar colocando iluminação, colocando estacionamento, colocando uma quadra. Então estamos juntos neste projeto do Monte Santo”, conclui Araújo. 

O vereador refere-se a um projeto, o PL 411/2021, proposto por ele mesmo em dezembro do ano passado e que tramitava até a noite desta terça-feira, 15, na CMS, que sugeria a mudança de nome de parte das dunas do Abaeté, em Itapuã, situada em uma APA (Área de Proteção Ambiental) para o nome de Monte Santo Deus Proverá - uma pauta defendida pelos setores evangélicos em Salvador.

Instaurada como área de proteção ambiental em 1987, através do decreto nº351 do governador Waldir Pires (PMDB), a região da APA das Lagoas e Dunas do Abaeté, que possui 1800 hectares, foi posteriormente redelimitada em duas áreas: Uma Zona de Preservação Permanente (ZPP) e Zona de Ocupação Controlada (ZOC).

Após polêmica e embates, sobretudo com entidades candomblecistas da cidade, e a negativa do prefeito Bruno Reis (DEM/UB), o vereador retirou o projeto da pauta da Casa.

Coincidência ou não, antes da desistência de Isnard Araújo, a prefeitura anunciou que irá realizar uma série de intervenções no local, chamado, em placa instalada pelo próprio executivo municipal, de Monte Santo. O movimento causou indignação em segmentos religiosos de matriz africana que contestam a mudança do nome e reivindicam presença histórica na Lagoa do Abaeté. 

Disputa

Originado do termo tupi abaîté, que significa "terror, horror", as dunas homônimas mantém uma aura de assombração que é fruto do descaso público com a região nas últimas décadas.

Mas, no imaginário popular, o local, como cantou o saudoso Dorival Caymmi, sempre manteve laços com a ancestralidade das culturas africanas na cidade mais negra fora da África. "De manhã cedo, se uma lavadeira / Vai lavar roupa no Abaeté/ Vai-se benzendo porque diz que ouve / ouve a zoada do batucajé", cantava Dori.

Relação que também é exemplificada pelo historiador e professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afrobrasileira (Unilab), Marlon Marcos.

“Ao longo da história, a lagoa era uma área de subsistência das lavadeiras e de pescadores, em sua grande maioria pessoas negras e quase todas pertencentes às religiões de matriz africana ou que tinham experiência com isso”, explica Marlon. “Então, aquele espaço está inclinado para algo que tem a ver com as civilizações africanas que aqui chegaram e que trouxeram lendas e mitos e filosofias espirituais, que complementam uma filosofia da ancestralidade fundamentam a vida das pessoas na cultura africana.”, endossa o historiador. 

A região, no entanto, também é visitada diariamente por adeptos de segmentos neopentecostais desde meados dos anos 90. De acordo com o secretário de Infraestrutura e Obras Públicas (Seinfra) de Salvador, Luiz Carlos, o fluxo estimado é de cinco mil pessoas, que sobem as areias para realizar vigílias ou simplesmente jejuar, orar e louvar ao Deus Cristão. 

Em conversa com o Portal A TARDE, o secretário afirmou que por conta do grande fluxo de religiosos, a prefeitura viu-se obrigada a intervir no local, para evitar “degradações ambientais” e para conscientizar a população para o correto uso do espaço.

“Essas pessoas sobem e descem, danificando a estrutura natural das dunas, de maneira que a areia já está chegando na pista. Elas fazem também suas necessidades fisiológicas naquela região, além de levar coisas para comer, descartando de forma inadequada dejetos no local”, disse Luiz Carlos. 

No último dia 10, o prefeito assinou uma obra de serviço para a urbanização do local. São previstas intervenções em uma área de 5.654 m² de extensão, com 1900 m² de área construida. As obras, que não tem data para o início, custarão cerca de 5 milhões e prevêem a instalação de uma sede admnistrativa, sanitários, estacionamento e um auditório para 50 pessoas.

“As intervenções da prefeitura seguirão duas premissas. Primeiro, a preservação do meio ambiente, quando a gente construir, por exemplo, uma escadaria de material reciclável para os fiéis, o que impediria danos às dunas. Segundo, vamos criar um espaço, uma recepção, com um pequeno auditório, para instruir as pessoas da importância do meio ambiente”, pontuou.

Luiz Carlos negou ainda que a prefeitura tenha qualquer intenção de mudar o nome da lagoa ou parte das dunas. O nome Monte Santo, segundo ele, tornou-se popular no local, o que fez com que a prefeitura anuísse em colocar a placa com o nome, na ocasião do anúncio das intervenções na Lagoa, o que foi, em grande parte, o motivo da celeuma. 

“A prefeitura nunca disse e não tem essa intenção. O nome Monte Santo é um nome consolidado popularmente ali, mas a prefeitura nunca disse que iria referendar ou negar que exista. A prefeitura está focada em requalificar o local, preservar o meio ambiente e educar as pessoas”.

Entre Deus e os orixás

“As dunas é um lugar sagrado onde nos reunimos, subimos esse monte, pessoas de Salvador e de toda a Bahia, para levantar pedidos de oração, de clamor a Deus”, explica o pastor da igreja batista Aliança Eterna com Deus, Alex Dultra, 49. “Eu mesmo já recebi várias respostas de Deus neste lugar. Esse monte é sagrado, enviado por Deus, e temos que estar orando e buscando a Deus”, endossa.

Segundo o pastor, várias igrejas, regularmente, lotam o local e há mesmo registros de pessoas ou grupos que dormem nas areias das dunas em busca de respostas do divino. Para o pastor, o projeto do vereador Isnard Araújo, classificado como algo que “agrada Deus”, irá beneficiar os evangélicos que frequentam a lagoa.  

Já para Mãe Jaciara Ribeiro, Yalorixa do axé Abassa de Ogum, em Itapuã, a proposta de mudar o nome de parte das dunas da lagoa, ainda que já desmentida pelo próprio prefeito Bruno Reis, é um movimento de “intolerância religiosa”.

“Para mim, isso é intolerância religiosa. Tentar mudar o nome das dunas do Abaeté para Monte Santo Deus Proverá é extremamente odioso, fundamentalista, para apagar nossa história”, protesta.

“A Lagoa do Abaeté representa um legado ancestral, um patrimônio de toda a comunidade, cantada por tantos artistas, cheia de mistérios, onde Deus sustenta  ganhadeiras e lavadeiras. Para as pessoas de religião de matriz africana, ela é um santuário sagrado que a gente cultua as águas e preserva o meio ambiente, porque ali é o Orixá vivo”. 

Publicações relacionadas