TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Orquestra independente muda vidas de jovens da periferia da Bahia
Grupo musical nasceu de um projeto de escola de música em 2000 e conta com mais de 70 crianças e jovens músicos baianos
Por Carla Melo
Há 24 anos, o incômodo que invadia o peito de um musicista baiano se desprendia das distinções entre o meio musical, e abria caminho para a formação de uma vocação gregária, capaz de dar voz, corpo, alma e som a dezenas de crianças e jovens pertencentes e envoltos de comunidades de exclusão e vulnerabilidade social.
Nascia no ano 2000 em Catu, em uma cidade pequena no interior baiano, que abraça 48 mil habitantes, a Escola de Música Cidadã (Emuc), pelas mãos, garra e coragem de Edinaldo de Paiva, conhecido como Mutuquinha. Uma rua estreita localizada na periferia da cidade ganhava forma diante da casa que agora oportuniza cerca de 70 jovens musicistas de regiões circunvizinhas.
A história não nasceu despropositadamente ou sem ter, ao menos, raízes também musicais. Aos 6 anos de idade, a paixão pela música conquistou o pojucano Mutuquinha, que aspirava aos ensinamentos da religião de matriz africana passadas pela mãe, que era Ialorixá, e pelo seu irmão, que tocava em uma banda de percussão. Com os atabaques, ainda pequeno, ele passou a ter conhecimentos sobre ritmos e variações musicais, e aos 14 anos de idade, Mutuquinha já tocava violão com os aprendizados que adquiriu “na rua”.
Não demorou muito para que a vida do autodidata ganhasse uma virada de chave. Após aprender a tocar contrabaixo elétrico para tocar em trios elétricos e festas populares em Catu, Pojuca, Espírito Santos, Minas Gerais, e diversas outras cidades, o jovem músico começou a ambicionar instrumentos de sopro. Foi aí que surgiu a vontade de ingressar em uma faculdade de música.
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Após entrar na Universidade Federal da Bahia (UFBA), no curso de composição, Mutuquinha adquiriu conhecimentos mais rebuscados sobre teorias, conteúdos de aulas de piano, de orquestração, de harmonia, de ritmo e muitas outras coisas, que acabaram o transformando em professor de contrabaixo elétrico na Universidade. Isso, é claro, não foi o suficiente para ele, que efervescia o desejo de transformação social.
“Na universidade eu pensei: “Por que não trazer um pouco desses conteúdos para os nossos jovens para fortalecer a música? Por eu não ter tido um professor e por ter que me deslocar a minha vida toda para conseguir um ingresso na universidade, eu me vi na obrigação de dar essa oportunidade para as crianças e adolescentes da nossa periferia. O projeto nasceu como uma forma de transformação social para abrir portas para universidades também”, disse o músico de 48 anos.
Com o próprio suor e o salário de 40h de carga horária, Mutuquinha dava início a história da Emuc. Uma casa de taipa, fruto de uma herança do pai do músico, tomava forma de um prédio, cujas as paredes ecoam os sons de instrumentos, também adquirido por ele, em razão unicamente de um sonho. As mãos da socióloga Sue Menezes, coordenadora da Emuc, também foram fundamentais no processo de construção da escola. Juntos, eles também lideram a Orquestra Juvenil Itinerante (Orji), fruto da Emuc, que nasceu em 2018.
“A gente entende que a comunidade também pode se fortalecer, ter autonomia para chegar e ingressar já com conteúdos trabalhados na universidade e poder ser um professor de música e também fazer aquela transformação social na vida da sua própria comunidade. É um investimento para exercer o papel social de agregar, de respeitar um ao outro e as diferenças”, continua o professor.
Transformações
Luanderson Santos, 26, foi um dos primeiros ingressos da Orji e atualmente é o presidente da orquestra, que abraça jovens entre 13 e 26 anos. Ele, que também iniciou cedo na música, se orgulha da caminhada que conseguiu trilhar e alcançar lugares que lhe abriram portas.
“Começamos os primeiros ensaios em 2018. Aos poucos, apareciam outras pessoas, até que em 2020 veio a pandemia e não conseguimos mais nos encontrar pessoalmente. Então passamos a fazer os ensaios online até que a pandemia acabasse. Quando retornamos, começamos a fazer apresentações em diversas cidades e estados”, disse o músico.
Seu ‘chamado’ para música começou em 2007, quando decidiu entrar em um projeto de música promovido em um bairro da cidade de Pojuca, para crianças e jovens. O contato com Mutuquinha veio anos depois, em 2018, quando, além de continuar sendo impactado com a música, recebeu o papel de também difundir a transformação social. Hoje, Luanderson, assim como outros alunos do professor, está se preparando para se formar como professor de música.
“Como a escola tem mais de 20 anos, o professor sempre passou a visão de ensinar sobre o amor à música na vida dele. Quando eu cheguei para ajudar ele nas aulas, já consegui captar esse pensamento. Alunos que ensinei desde pequenos, hoje já conseguem tocar muito bem e têm visão de mundo, muito diferente do que entraram”, completou ele.
Raissa Sales também é uma das jovens transformadas pela orquestra. Com apenas 15 anos de idade, já era aluna de projeto de música de uma instituição sem fins lucrativos e foi um talento descoberto pelo professor Edinaldo de Paiva, em 2023.
Natural de Entre Rios, ela se mudou para Pojuca e teve o primeiro contato com o instrumento musical. Como iniciante, ela começou a tocar flauta doce, até que pudesse se encontrar com a clarineta. Ela explica que a sua conexão com a música se transformou ainda mais quando entrou na Orji.
“Sempre gostei muito de dançar enquanto tocava o instrumento. Toda vez que eu toco, eu começo a dançar. É como se fosse uma conexão com a música. Fecho os olhos e isso é uma coisa que me fez bem. O professor Mutuquinha viu que eu estava indo bem e já estava tocando músicas mais difíceis na clarineta, me fez um para eu entrar para a orquestra dele foi quando eu senti um ar totalmente diferente, percebi que para a gente que gosta de música, temos que lutar muito. E esse projeto de Mutuquinha é uma prova disso. Foi realizado com muita luta”, disse ela.
Conquistas
Neste ano, e pela segunda vez consecutiva, eles estarão se apresentando no carnaval de Salvador. A conquista é comemorada por todos, já que se destacaram diante de 16 orquestras baianas que se inscreveram no edital do Carnaval do Pelô 2025, do Governo da Bahia. O projeto também lançou o próprio documentário chamado "Esperançar na música: Mutuquinha, Emuc e Orji", pela Lei Paulo Gustavo.
Juntos, os músicos da Orji também já participaram de dezenas de apresentações na Bahia e também em outros estados, tudo custeado pelos líderes do projeto. Desde 2018, os integrantes já se apresentaram em festas populares como a Festa de Santa Dulce dos Pobres, Igreja Nossa Senhora de Santana, Câmara dos Vereadores de Alagoinhas, na Universidade Estadual do Rio De Janeiro, no Sesi Casa Branca, no Teatro Castro Alves, no Museu Chácara do Céu e entre outros que são merecedoras de um quadro de recordações.
Doações
Sem apoio institucional ou financeiro, o projeto é 100% independente e totalmente gratuito. As inscrições são abertas todos os anos e abre espaço para todas as crianças e adolescentes que desejarem ingressar na escola, e aprender instrumentos de sopro, cordas e percussão.
Quem desejar fazer doações em dinheiro ou de instrumentos musicais, pode entrar em contato com o projeto através das redes sociais, pelo Instagram @emuccatu ou pelo @orji.emuc, pelo telefone (71) 999296031, ou do email [email protected].
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