LEVANTE NEGRO
A história proibida da Bahia: Antônio Pitanga revive os Malês nas telas
Longa resgata a histórica revolta dos povos negros de origem mulçumana escravizados na Bahia

Por Rafael Carvalho - Especial para A TARDE

Projeto acalentado e gestado por mais de 30 anos, Malês finalmente chega às telas comerciais dos cinemas brasileiros – estreou no Festival do Rio, ano passado, circulou por alguns festivais e teve, na última quarta-feira, uma pré-estreia marcante no Open Air Brasil, evento de exibições em área aberta de Salvador com direito a telão gigante.
Foi uma forma de celebrar em grande estilo um filme que reúne diversos talentos da Bahia, a começar pela força ancestral e catalizadora que é Antônio Pitanga. O longa é um projeto pessoal do ator baiano, grande ícone do teatro, da TV e do cinema nacionais, agora assumindo a posição de diretor para contar essa história de resistência e luta do povo negro escravizado na Bahia.
Pitanga também atua no filme, mas em um papel curto, ao lado de nomes importantes como Edvana Carvalho, Wilson Rabelo e Bukassa Kabengele, além dos filhos do diretor, Camila e Rocco Pitanga. Ela interpreta uma negra liberta, pertencente a um grupo mais ligado aos cultos de matriz africana, enquanto ele integra o grupo de negros mulçumanos que professam a religião islâmica.
São duas frentes que integram uma totalidade da população negra escravizada no Brasil formada por essas e outras castas religiosas e de origens geográficas diferentes, mas que se encontraram em solo brasileiro.
No entanto, Malês é a história de um levante negro encabeçado pelos escravizados mulçumanos na Bahia, em 1835, que reuniu mais 600 homens e mulheres nas ruas. Por isso, é um filme coral, que trabalha em muitas frentes para dar conta da complexidade histórica que envolve não apenas as raízes do problema, mas as minúcias do caso em si.
O filme abre com um prólogo que se passa no Reino de Oyó, no continente africano, onde acontece o casamento de Dassalu (Rocco Pitanga) com Abayome (Samira Carvalho). Mas a festa é violentamente interrompida por capitães do mato que irão aprisionar e levar muitos dali para o Brasil, como escravos. Inclusive os noivos, separados quando de sua chegada à Bahia.
Dassalu vai se aproximar do grupo liderado por Pacífico Licutan (Antônio Pitanga) que, como líder religioso malê, tem a intenção de fundar um templo mulçumano no local para professar a sua fé. De certa forma, é a partir da união desse grupo que a ideia do levante se fortalece, na busca por apoio de outros negros, alforriados ou não, especialmente dos povos de origem nagô e haussá que vivem na região.
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A História da negritude

Com roteiro da baiana Manuela Dias – mais conhecida pela escrita de novelas globais, tal como a atual Vale Tudo –, Malês faz um importante resgate histórico, mas também peca pelo didatismo. Sua construção narrativa é por demais episódica a partir dos eventos reais, envolvendo diversos personagens em núcleos que precisam convergir em algum momento.
Mais que tudo, o filme acentua a relevância de poder contar nos cinemas – e almejando alcançar um grande público – um episódio marcante, porém pouco estudado da historiografia nacional, raramente presente no imaginário social da população brasileira – diferente da Inconfidência Mineira, por exemplo.
Recentemente, os cineastas Jeferson De e Belisário Franca lançaram A Revolta dos Malês, reconstituição do mesmo evento, mas em um filme muito mais modesto em termos de reprodução de época. Além disso, o cineasta baiano Antônio Olavo conseguiu grande sucesso com o seu 1798 – A Revolta dos Búzios, outro caso de levante encabeçado por escravizados na Bahia, datado de décadas antes da dos malês.
No conjunto, todas essas obras acabam fazendo parte de uma História da negritude brasileira, partindo da experiência traumática da escravidão, mas mostrando a força de luta e resistência dos povos negros contra os poderes opressivos do Estado brasileiro e sua condução racista colonial.
A Revolta dos Malês é considerada a maior insurreição de escravizados da história brasileira. Eles têm esse nome porque o termo deriva de “imalê”, que significa justamente mulçumano. E, como todas elas, foram severamente subjugadas e punidas, neste caso depois da denúncia cometida por uma ex-escrava.
Valor de produção

Diferente dos outros filmes citados acima e de outras produções sobre o tema ou sobre temas correlatos, o Malês de Pitanga possui claramente um apelo maior de público. O filme possui um alto valor de produção, muito embora ainda esbarre em certas dificuldades na realização de um épico histórico, subgênero tão pouco feito no cinema brasileiro devida à necessidade de um alto investimento.
Em seus aspectos técnicos e de reconstrução de época, Malês se mostra muito vistoso e caprichado, especialmente em termos de direção de arte e figurinos. Filmado em Salvador, Cachoeira e em locações no Rio de Janeiro, o filme se dá melhor quando retrata as relações intimistas dos seus personagens em conflitos morais, políticos e sociais com as demandas do mundo ao redor.
Quando precisa filmar a ação e os momentos de maior tensão, não só acaba revelando as dificuldades de ambientação em espaços maiores e que exigem maior detalhamento de cenários, como expõe ainda mais seu caráter episódico. Isso faz com que a narrativa seja a todo instante interrompida, talvez como estratégia de contornar as próprias limitações orçamentárias.
O texto do filme também possui um tom por demais didático e basilar, algo que faz parte da própria proposta educativa que a produção carrega – ou que acabou assumindo no meio do caminho. De qualquer forma, há de se celebrar que, aos 85 anos de idade, Antônio Pitanga tenha conseguido concluir seu projeto de vida, agora tão caro à historiografia baiana e brasileira.
‘Malês’ /Dir.: Antonio Pitanga / Com Rocco Pitanga, Antonio Pitanga, Camila Pitanga, Samira Carvalho, Rodrigo de Odé, Bukassa Kabengele, Heraldo de Deus, Patrícia Pillar, Edvana Carvalho, Indira Nascimento / cinema.atarde.com.br
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