DOCUMENTÁRIO
Cazuza sem filtros: novo filme mostra a explosão artística em meio à AIDS
Boas Novas mostra como Cazuza driblou a morte com arte e irreverência
Por Rafael Carvalho | Especial para A TARDE

Muito recentemente, pudemos ver em Homem com H, cinebiografia de Ney Matogrosso (agora já disponível na Netflix), uma representação pouco convencional de Cazuza. O relacionamento conturbado entre os dois, mais a frutífera parceria musical, revelavam uma personalidade irrequieta e mesmo agressiva – ambos marcantes, mas com uma dose maior de inconsequência no intérprete de Exagerado.
Agora, essa face intensa e aguerrida do cantor e compositor pode ser melhor averiguada no documentário Cazuza, Boas Novas, dirigido por Nilo Romero e Roberto Moret, já em cartaz nos cinemas brasileiros.
Moret está ligado a uma produtora audiovisual mais voltada para conteúdos televisivos, enquanto Romero pertence à cena musical, tendo sido amigo pessoal de Cazuza e produtor de vários de seus discos, especialmente em sua fase final. Assumem a direção do longa, em uma parceria pouco comum para esse tipo de documentário.
Mas é um encontro muito bem-vindo, uma vez que Romero participa do filme como personagem, nas conversas e interações com uma série de entrevistados do ramo da música de que ele é familiar. Além disso, os diretores lidam com um farto material de arquivo que compõem um resgate muito precioso da presença de Cazuza nos palcos e em outras aparições públicas.
O filme não deixa de falar do início da carreira do cantor, sua passagem pelo Barão Vermelho, os anos iniciais de construção da sua persona musical, mas o foco mesmo recai sobre os últimos anos da carreira (ele morreu em 1990), especialmente aqueles que constatava a infecção pelo HIV que iria vitimá-lo.

Doença e vida
“Eu vi a cara da morte, ela estava viva”. Esses são versos da canção Boas Novas, lançada no disco Ideologia, de 1988. É daí que vem o título do filme. E é um contraponto muito curioso para um momento em que Cazuza descobre a infecção e começa a entrar em estado de AIDS.
Isso, no entanto, não paralisa sua carreira e sua veia criativa. Ao contrário, impulsiona uma nova forma de encarar a dor, celebrar e ressigificar a existência. E de continuar fazendo música. Pois é justamente esse contraponto que sustenta o documentário.
Apesar de enfrentar uma doença que se tornou uma epidemia nos anos 1980 e na década seguinte, sem cura até hoje e sem tratamentos eficazes à época, Cazuza lançou discos seguidamente, compondo músicas icônicas e fazendo diversos shows.
São dessa fase canções inesquecíveis como, por exemplo, Ideologia, Brasil – e sua versão na voz de Gal Costa mais uma vez voltando à mídia na abertura de Vale Tudo –, Blues da Piedade, Faz Parte do Meu Show e O Tempo Não Para, uma das grandes reflexões sobre sobreviver em um mundo caótico, que pode ser entendida também como um poderoso réquiem para o próprio artista.
A associação de Cazuza com a AIDS não é algo tão incomum assim – vide a manchete criminosa da capa da Revista Veja, de abril de 1989, que explorava a luta do cantor de modo sensacionalista. No entanto, a questão aqui é posta às claras, com muito cuidado e através de depoimentos de pessoas próximas a ele, embalado de forma respeitosa pelo filme.
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Querido iconoclasta
Apesar do comportamento por vezes arredio e intenso, há um lado amoroso de Cazuza que se espelha na relação com seus amigos e com os parceiros musicais. Alguns deles falam no filme, como é o caso de Roberto Frejat, líder do Barão Vermelho, ou George Israel, instrumentista do Kid Abelha e, claro, Ney Matogrosso.
Gilberto Gil, com quem fez com ele a música Trem para as Estrelas, também aparece em um depoimento afetuoso e reverente. Além, é claro, de Lucinha Araújo, mãe e grande cuidadora da obra do filho, com falas muito reveladoras e sinceras.
Flavio Colker, fotógrafo que fez uma série de imagens do artista em momentos diferentes, aparece no filme para revelar que Cazuza possivelmente descobriu a infecção por HIV no período de lançamento de Só se For a Dois (1987), momento que inicia a transição física que ele vai sofrer a partir do avanço da doença, registrado em muitas imagens pelo fotógrafo.
E há ainda trechos da entrevista televisiva que ele concedeu a Marília Gabriela, em dezembro de 1988, em que fala da doença, negando-a inclusive, diante da pressão nacional que o ligava à AIDS.
Espirituoso

“Como era a cara da morte, Cazuza?”, pergunta Marília Gabriela. “É um triângulo de luz. É como se fosse um gozo, um shot de heroína. Um prazer total”. Abatido, sim; derrotado nunca. É essa imagem de Cazuza que o filme sustenta, com toda a irreverência do cantor – especialmente no palco –, misturada com uma compreensão poética da vida. E da morte.
A imagem debilitada com a qual Cazuza vai aparecer a partir desse momento é difícil de esquecer ou nublar, mas o filme consegue contrapor isso com a impertinência e o comportamento espirituoso que ele manifesta quando está nos seus melhores momentos – porque há também os maus.
Com isso, o documentário se distancia um tanto da já longínqua cinebiografia Cazuza – O Tempo Não Para, dirigida por Sandra Werneck e Walter Carvalho, em 2004, um filme mais domesticado e um tanto comportado para uma época de renovação do cinema brasileiro, ainda que sincero sobre a carreira do músico.
Cazuza, Boas Novas, por outro lado, faz da fase final da vida do artista um processo complexo de luta, enfrentamento, mas também de explosão criativa. Melancólica, endurecida, mas nem por isso menos pulsante.
Cazuza: Boas Novas / Dir.: Nilo Romero, Roberto Moret / Depoimentos de Ney Matogrosso, Gilberto Gil, Frejat, Lucinha Araújo e outros / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
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