RELANÇAMENTO
Esse filme foi censurado por mostrar o caos escondido na Amazônia
Sexo, miséria e estrada: clássico sobre a Transamazônica volta aos cinemas
Por Rafael Carvalho

Em meados dos anos 1970, os cineastas Orlando Senna e Jorge Bodanzky realizaram um dos filmes mais marcantes da cinematografia brasileira. Iracema – Uma Transa Amazônica, misto de ficção e documentário, viajava ao coração da selva brasileira onde o governo ditatorial insistia na construção de uma rodovia que ligava o Nordeste ao Norte do país.
A conhecida Transamazônica foi mais um projeto megalômano da Ditadura Militar e tentava propagandear a viabilidade econômica e o crescimento do país com obras de grandes infraestrutura, mas que possui falhas e trechos incompletos até hoje.
Tudo isso, claro, com o sacrifício da paisagem local, dos moradores, da fauna e da flora da região.
Munidos de uma câmera em 16mm, os cineastas partiram para os arredores da rodovia e criaram um fio de trama que pudesse dar sustentação ao filme. No plano ficcional, portanto, temos o caminhoneiro Tião Brasil Grande (Paulo César Peréio) que cruza o país levando carga do Sudeste para o Norte.
Em uma de suas paradas em Belém, encontra Iracema, garota de 15 anos que se prostitui nas beiras de estrada.
Vivida pela jovem desconhecida Edna de Cássia, Iracema passa a representar o povo oprimido, mas aguerrido do lugar, especialmente do ponto de vista feminino.
Mestiça de negra e índia, tenta se sustentar em meio à pobreza e ao abandono familiar, usando como arma sua beleza juvenil, tendo de se entregar à prostituição.
Ela decide subir na boleia do caminhão de Tião na tentativa de sair daquele lugar e mudar de vida, rumo ao Sudeste.
São ambos personagens errantes, fadados a viver de cidade em cidade, com intuitos diferentes – inclusive pelo interesse sexual de Tião sobre Iracema –, em um ciclo eterno de fuga e retorno às origens, com a miséria rondando por todos os lados.
Leia Também:
Falência do Estado

Toda a construção do filme serve a um propósito muito claro de desmentir os enganos propagandeados em torno do dito “milagre econômico” alardeado pelos militares.
Enquanto acompanhamos a trajetória de Tião e Iracema, o que o espectador presencia é exploração do trabalho braçal, grilagem, exploração sexual, desmatamento da floresta e todo tipo de violência que se perpetua pelas margens da rodovia amazônica.
Nesse sentido, a força documental do filme se mostra nitidamente na medida em que tais personagens fictícios interagem o tempo todo com figuras reais, trabalhadores e moradores locais, que invadem a tela com sua verdade, seus trejeitos e sua realidade palpável e miserável.
Ou melhor, é como se o filme, por meio de um quase pretexto ficcional, invadisse a vida real e sofrida daquele povo para expor as mazelas e as crueldades que eram cometidas contra a população brasileira, em prol de um avanço econômico que nunca se concretizou de fato.
Em conversa feita com Orlando Senna há alguns anos, o realizador baiano falou da pesquisa prévia que eles realizaram alguns meses antes de rodar o filme: “Jorge já era uma grande estudioso e interessado na questão amazônica. Mas a ideia do filme surgiu realmente nessa viagem que mudou nossas perspectivas”.
O diretor complementou: “A gente sabia que estávamos fazendo alguma coisa enorme na Amazônia, víamos isso na propaganda da Ditadura Militar, que havia guerrilha etc. Mas não sabíamos muito mais. Indo lá, dando uma olhada na coisa, a gente viu o tamanho do desastre”.
Senna destacou também que em todo o filme não aparecem nem animais, nem indígenas, algo impensável para filmagens que aconteciam no coração da floresta Amazônica.
“Os animais e os nativos não apareceram em nenhum momento para a gente durante as gravações. Eles tinham sido expulsos de toda a região que margeia a Transamazônica. Isso dá a dimensão do desastre ecológico e humano que estava acontecendo ali”, atestou.
Linguagem experimental

É possível notar que a trama de Iracema – Uma Transa Amazônica parte de um quase improviso, assim como as falas dos atores parecem ser trabalhadas muito livremente, a partir dos encontros entre os personagens.
Peréio, ator experiente e muito presente no cinema nacional, está muito à vontade ao interagir naquele ambiente, dono de um personagem embrutecido, por vezes assumindo o lugar de defensor da pátria, incapaz de processar em pensamento crítico o que vê ao redor, noutras se mostrando interesseiro e irresponsável.
Edna, por sua vez, que não possuía nenhuma experiência prévia como atriz, escolhida na própria região, é um achado impressionante, tanto pela força de sua imagem jovem e ao mesmo tempo forte na tela, como por sua entrega a um projeto tão incomum.
Natural do Pará, a então atriz ganhou recentemente um documentário, Edna: 50 Anos Depois de Iracema, dirigido por Alessandro Campos.
O filme mostra como vive hoje a costureira e professora aposentada e de como sua vida mudou depois de encarnar Iracema.
A obra chegou a ser exibida em Salvador no último mês de abril, durante o Panorama Internacional Coisa de Cinema, e contou com a presença da própria Edna e também do cineasta Jorge Bodanzky – Orlando Senna, radicado no Rio de Janeiro, não pode comparecer ao evento, que abriu com a exibição da cópia restaurada de sua obra-prima.
É o momento de celebrar o filme que, na época de sua finalização, foi censurado pelo governo militar – é claro – e só pôde ser exibido cinco anos depois, durante o Festival de Brasília.
Saiu dali com o prêmio máximo de Melhor Filme e ainda o Candango de Melhor Atriz para Edna. Obra áspera, mas fundamental para se entender o Brasil profundo.
IRACEMA - UMA TRANSA AMAZÔNICA / Dir.: Jorge Bodanzky, Orlando Senna / Com Paulo César Peréio, Edna de Cássia, Lúcio Dos Santos, Elma Martins, Natal, Fernando Neves, Wilmar Nunes, Sidney Piñon, Rose Rodrigues, Conceição Senna / Salas e horários: cinema.atarde.com.br
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Siga nossas redes