AUDIOVISUAL BAIANO
Vampiros, ancestralidade e crítica social: Bahia domina os holofotes em Minas Gerais
“Talvez Meu Pai Seja Negro” e “Arrebol” mostram potência do cinema baiano no sertão mineiro

Por Bianca Carneiro

Em sua 9ª edição, o CineBaru – Mostra Sagarana de Cinema chega à reta final neste sábado, 20, após quatro dias movimentando o distrito de Sagarana, em Arinos (MG), com exibições, debates e atividades formativas. O festival bateu recorde com 232 curtas inscritos e 24 filmes selecionados, vindos principalmente da Bahia e de Minas Gerais, com destaque também para Goiás e Distrito Federal. Reconhecido por seu caráter comunitário, o CineBaru transforma o cinema em um espaço de encontro e preservação de memórias sertanejas.
Além das mostras competitivas e sessões para o público infantojuvenil, o evento reafirma seu compromisso com a diversidade e a equidade, valorizando produções dirigidas ou protagonizadas por mulheres, pessoas negras, indígenas, LGBTQIAPN+ e pessoas com deficiência. Entre os filmes exibidos, estão dois curtas baianos: “Talvez Meu Pai Seja Negro”, de Flávia Santana, e “Arrebol”, de Duba Rodrigues.
“Talvez Meu Pai Seja Negro nasceu de uma descoberta familiar que transformou a relação de Flávia Santana com sua própria história. A diretora embarca com seu pai, Antônio, em uma jornada para resgatar memórias apagadas:
“Foi muito forte perceber o quão as pessoas negras, famílias negras, não têm direito à memória. O filme foi uma oportunidade para não deixar esses apagamentos se perpetuarem, para registrar essa história da minha família”, afirma.
Apesar de ter exibido o curta em Cachoeira, na Bahia, ela tem um desejo especial de apresentar a obra em Salvador, sua cidade natal. "Eu tenho muita vontade de exibir o filme em Salvador e ter oportunidade de trocar sobre o filme com pessoas da minha cidade", diz.
Dirigir e produzir um filme tão pessoal e delicado trouxe desafios emocionais. A diretora explica que lidar com a história de seu pai foi difícil, pois "reflete muito, de alguma forma, o Brasil com sua herança mais triste dessa formação, que é uma formação que, de certa forma, é regida por violências e apagamentos". A leitura da certidão de nascimento do pai, onde o campo dos avós estava preenchido com a palavra "ignorados", foi um momento particularmente doloroso. "Foi muito forte", ressalta.
Apesar da dor, Flávia vê o filme como uma forma de combater o apagamento. "O filme foi uma oportunidade para a gente não deixar esses apagamentos se perpetuarem, para registrar ali, para a posteridade, essa família, a minha família, a história da minha família".
Exibir o filme no CineBaru, segundo Flávia, tem um significado profundo: “Estou muito feliz com a seleção do filme no CineBaru, um festival que sei que tem muito afeto, amor e dedicação. Exibir o filme no Sertão Mineiro é uma oportunidade muito especial de compartilhar histórias de vida junto a pessoas que podem se identificar com nosso filme.”
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Horror sertanejo e memória
O curta-metragem "Arrebol", do diretor Duba Rodrigues, rompe barreiras ao unir a figura universal do vampiro com o folclore do sertão baiano. Morando entre Brumado e Vitória da Conquista, Rodrigues explica que a ideia surgiu de forma orgânica, aproveitando a lenda local do Encourado para criar uma narrativa de horror única. O filme foge do estereótipo de um sertão que só sofre, usando a fantasia e a emoção para tratar da relação humana com a vida e a morte, mostrando um vampiro que busca seu lugar no mundo. O diretor ressalta que o projeto é uma celebração da cultura sertaneja, mas com um toque de humor.
A passagem de "Arrebol" por festivais, como o CineFantasy, rendeu o prêmio de Melhor Curta de Horror e uma importante Indicação FantLatam de Melhor Curta Latino. Rodrigues destaca que o mais valioso de cada exibição é a forma como o público absorve a obra.
"O importante é que o filme atravesse a quem assiste, emocione e transforme aquela pessoa", afirma. A exibição no CineBaru, no interior de Minas Gerais, é vista como um momento especial, já que a paisagem local se assemelha ao sertão baiano do filme. A vontade de exibir o curta em Salvador é grande, e o diretor se mantém aberto a propostas, mostrando que o filme está pronto para circular e alcançar o maior número de pessoas possível.
Rodrigues revela que o terror em "Arrebol" não vem dos vampiros, mas de sentimentos universais como o esquecimento e a solidão. A história do vampiro que busca registros de sua existência é uma metáfora para a importância da memória e da preservação das histórias do sertão. O diretor lembra do fotógrafo Benjamin Abrahão, responsável por documentar figuras como Lampião, e ressalta que "sem o registro fotográfico, seriam somente palavras".
Quando questionado sobre a diversidade, o diretor afirma que ela é um processo natural em seus projetos. A equipe, majoritariamente composta por ex-alunos da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), reflete a pluralidade de gênero, etnia, classe social e sexualidade. Rodrigues enfatiza que não adianta "discurso bonito", mas sim a prática de contratar e conviver com essa diversidade. "Toda pessoa que faz arte deseja muito mais do que só ter espaço para falar dos sofrimentos da minoria que faz parte", conclui, destacando que a diversidade é uma parte intrínseca de suas narrativas e da própria vida.
Oscar, Wagner Moura e a potência de outras vozes
Para os cineastas, o momento do cinema brasileiro, marcado pelo Oscar de Ainda Estou Aqui e pela expectativa com O Agente Secreto, com o baiano Wagner Moura, inspira, mas também provoca reflexão. Flávia Santana observa:
“Fico muito feliz que os filmes que estão furando essas bolhas, ganhando Oscar, ganhando prêmios importantes internacionalmente. Ao mesmo tempo, eu tenho um olhar muito crítico e reflexivo sobre ainda quem acessa esses espaços e como é desafiador acessá-los. Ainda são espaços ocupados por homens brancos e cis. Vejo que a gente tem muito caminho pela frente".
Duba Rodrigues compartilha um sentimento semelhante, mas enxerga oportunidades:
“A validação estrangeira é, sem dúvida, uma forma de mobilizar os ânimos sobre o cinema brasileiro. Agora precisamos aproveitar todo este burburinho para regulamentar as plataformas de streaming, além de investir no desenvolvimento, produção e distribuição de nossas obras. Minha confiança e ambição como diretor aumenta num cenário como este, os sonhos longínquos se tornam mais palpáveis".
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