Chupa-cabra é legado da década de 1990 para criaturas fantásticas
Ataques a rebanhos de caprinos e ovinos alimentaram o mistério no Brasil e outros países das Américas
Agosto é o mês de cura, mas também tem relação com o universo fantástico. Neste mês se celebra o Dia do Folclore. A data foi criada pelo Decreto nº 56.747, de 17 de agosto de 1965 assinado pelo primeiro dos generais- ditadores, Humberto Castello Branco (1897-1967). A comemoração tem passado por muitas críticas ao misturar entes míticos com aqueles que são do campo de práticas religiosas, mas a fantasia faz parte do imaginário das culturas pelo mundo e, no Brasil, não falta repertório. Um dos personagens dessa categoria mais contemporâneo é o Chupa-cabra. Suas aparições ocorreram também na Bahia como mostram reportagens de A TARDE.
A edição de 25 de agosto de 1997 trouxe um texto sobre o ataque a ovelhas em Itamari, na região de Gandu. Os animais foram encontrados mortos com escoriações pelo corpo e o conjunto mandibular arrancado. Quatro animais sobreviveram, mas com lesões graves.
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“A relação com os misteriosos ataques a rebanhos de caprinos e ovinos no Sul do País foi inevitável. Muitas pessoas não hesitaram em atribuir os ataques ao "Chupa-cabra” que estaria agindo nos pastos do sul da Bahia. Para aumentar ainda mais as suspeitas das pessoas, os animais feridos mesmo com graves lesões não estavam sangrando”. (A TARDE, 25/8/1997, Municípios, p.16).
O Chupa-cabra começou descrito como um ser bípede, que tinha pelos e escamas nas costas. A marca da criatura era deixar as vítimas sem sangue e por isso a denominação. Alguns anos depois passou a ser descrito também como um ser de quatro patas, semelhante a um cachorro.
O Chupa-cabra foi a primeira criatura fantástica do período da revolução digital marcada, principalmente, pela expansão do acesso à Internet. Ele também alcançou sucesso na indústria cultural o que pode ser medido por seu protagonismo em uma produção da Netflix.
O filme da plataforma de streaming é uma produção mexicana com o título original de Chupa, lançada no ano passado. Dirigido por Jonas Cuáron, no Brasil recebeu o título de Meu Amigo Lutcha. É uma pena, pois esta denominação afastou a produção do que seria um grande chamariz: o apelo ao imaginário sobre a criatura que marcou a infância e adolescência de muita gente no Brasil.
A história do filme começa com a chegada de Alex ao México para visitar parentes. Ele descobre no galpão do avô uma criatura que é bem fofa para um ser misterioso. A trama é estrelada por um elenco de crianças lideradas pelo ator Evan Whitten, de Mr.Robot e The Resident, e conta com a participação de Christian Slater e Demián Bichir, que foi indicado ao Oscar pelo filme Uma vida melhor (2011). A saga contada na produção é parecida com a de ET, filme de Steven Spielberg que se tornou um grande sucesso da década de 1980.
Terror midiático
Porto Rico é considerado o local de origem das histórias sobre o Chupa-cabra. A linha do tempo sobre esta criatura foi organizada por Benjamin Radford, pesquisador do Comitê para a Investigação Cética (CSI por conta da denominação em inglês). Radford estudou as supostas provas sobre o Chupa-cabra durante cinco anos. Segundo texto da BBC Brasil, com base nas pesquisas de Radford, a primeira pessoa que afirmou ter visto o Chupa-cabra foi Madelyne Tolentino, moradora de Canóvanas, em Porto Rico. Nas descrições da testemunha, o Chupa-cabra parecia com o monstro do filme A Experiência que ela assumiu ter assistido.
Sobre os restos de corpos dos supostos Chupa-cabras encontrados nos EUA, exames de DNA apontaram evidências de cachorros que contraíram um tipo de sarna, guaxinins e até um peixe. Os estudos dos animais supostamente vítimas da criatura apontaram que eles foram atacados por lobos e coiotes cujas mordidas provocam hemorragia interna mesmo com lesões no pescoço, o que explica a falta de sangue em abundância nos locais das mortes.
Mas até as conclusões científicas tentarem desmentir a ocorrência real do Chupa-cabra muitas águas rolaram. No Brasil, a aparição da criatura chegou ao principal veículo de informação da época: a TV. O programa Domingo Legal, do SBT, apresentado por Gugu Liberato (1959-2019) dedicou parte de uma edição às notícias sobre a estranha criatura, com a participação de veterinários e outros especialistas.
“Os seres humanos são ávidos de estupefação, de pasmo e de surpresa. São, assim, regidos por um sentimento de espanto diante do desconhecido, ou daquilo que não é reconhecido como ordinário. Será que nos resignaríamos com o fato de que uma boa história pode ser tão fascinante quanto improvável, como é o caso do Chupa- cabra?”, analisa o doutor em antropologia, Cláudio Luiz Pereira.
Para o professor, os registros como os reunidos em reportagens de A TARDE são uma amostra da articulação e dinâmica entre rumores, lendas urbanas e folclore para virar notícia. “Esses conteúdos fazem obscurecer a tênue linha que separa fatos e ficção. Teorias de conspiração, práticas e tradições antigas ou heterodoxas, e em concurso com certo exagero midiático nos leva a entender que uma explicação ficcional, no caso aqui jornalística, é tão boa quanto qualquer outra referência, sobretudo quando está ausente sólida documentação comprobatória”, explica.
De acordo com Cláudio Pereira, essas criaturas integram o imaginário das culturas em diálogo com um conjunto de crenças que invadem o campo do extravagante. “Uma boa abordagem da natureza das nossas crenças nos ajudaria a entender essas fantasias, e as notícias que delas decorrem. De qualquer modo, a priori, posso assegurar que o Chupa-cabra veio para ficar, e está aí para entreter, assombrar e divertir, pois a fantasia é, sabidamente, filha da criatividade”, acrescenta.
Repórter em início de carreira no final da década de 1990, eu concretizei uma pauta sobre o Chupa-cabra. Em viagem para fazer uma reportagem especial, fui a uma fazenda na região de Boa Vista do Tupim para recolher as evidências de um suposto ataque da criatura mais temida da década.
“Duas fazendas localizadas no município de Boa Vista do Tupim, situado a 317 km de Salvador, foram palco do ataque de um estranho animal aos rebanhos de ovelhas e cabras”. (A TARDE, 2/12/1998, p.7).
Os tratadores de animais relataram ter visto um animal semelhante a um cachorro grande, com orelhas preta e boca com algumas listras. Nenhum animal com esta descrição foi encontrado por perto, mas lembro que algumas testemunhas diziam acreditar em ataques de cachorros que viviam no mato ou até de onças sussuaranas. Um ano depois desta reportagem, o Chupa-cabra continuou retornando às páginas de A TARDE. Em março de 1999, o ataque ampliou os exemplares das espécies preferenciais da criatura.
“Dezenas de animais- - patos, galinhas, um gato e um coelho- foram mortos de forma misteriosa nos últimos dias, na Avenida Minas Gerais, em Feira, deixando os moradores do local em expectativa e sem encontrar explicação para o fato atribuído a um Chupa-cabra devido à forma estranha com que os bichos foram eliminados”. (A TARDE, 9/3/1999, p.5).
Sereio de Itapuã
Se as apuradas técnicas científicas não têm deixado margem para comprovar a existência das criaturas fantásticas, como aconteceu com o Chupa-cabra, têm mistérios que persistem. Salvador ofereceu uma preciosa contribuição para o fantástico contemporâneo. Em 2018, uma criatura foi vista nas águas da região de Itapuã e associada a um ser masculino que se parecia com uma sereia. Tecnicamente o nome ideal seria tritão, mas o baianês entrou em ação para batizá-lo de “Sereio”.
Dezenas de pessoas afirmaram ter visto o estranho ente. A descrição mais repetida era de um ser com longos cabelos, barbatanas no pescoço e exalando um forte cheiro de presunto apodrecido. Em editorial, a revista Muito, do Grupo A TARDE, citou a estranha aparição como mais uma nota de dias fantásticos em que até um boi de 600 kg fugiu de uma feira para se jogar no mar.
“Nos dias que antecedem a desejada estação correram boatos sobre a presença de um homem-peixe, um “sereio” em Itapuã. Quem viu, viu. Logo depois um fato com mais consistência, de 600 kg, pelo menos: um boi fugiu de uma feira de agronegócios encarnando o desejo de liberdade de todos indo banhar-se no mar, mas acabou morrendo afogado em Stella Maris”. ( A TARDE, Revista Muito, 16/12/2018, p.3).
Chupa-cabra e Sereio de Itapuã são contribuições contemporâneas para o conjunto que as várias culturas têm legado ao temor humano diante do sobrenatural. A ciência, na maioria dos casos, especialmente com as novas tecnologias, sempre está a postos para desconstruir as evidências do que parecia fantástico, mas tem personagens que serão, mesmo por teimosia criativa, parte do bordão inesquecível da personagem de Miriam Pires (1927-2004), dona Milu, na novela Tieta: “Mistério”.
*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia