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A Tarde Memória

Por Cleidiana Ramos*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 17 de agosto de 2024 às 5:00 h | Autor:

Devoções de cura têm cercado agosto de ritos cheios de beleza

Culto a divindades das religiões afro-brasileiras e a São Roque marca este mês como o período em que se celebra a esperança de proteção contra doenças

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Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes
Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes -

Agosto é um mês que não tem boa fama no imaginário popular. É considerado um período em que se precisa ter cuidado com forças que podem atrair doenças e falta de sorte. Mas as práticas do afro-catolicismo, que são tão fortes na Bahia, têm apontado um caminho mais tranquilo para este mês: a esperança de cura, afinal nele se celebra Azoany, Kavungo Omolu e Sakpata, que são divindades das religiões afro-brasileiras, e o católico São Roque. Todos eles são considerados especialistas na cura e proteção contra doenças especialmente as infecciosas e de pele.

As festas para estas divindades ocorrem por todo o território baiano e de forma associada mesmo que às vezes este encontro não fique tão explícito. Os devotos de São Roque, por exemplo, costumam oferecer como pagamento de promessa, no dia 16, pipoca e mugunzá, comidas votivas dos inquices, orixás, e voduns que estão associados a esta especialização na área da saúde.

Em Salvador, o culto a São Roque se estabeleceu no santuário dedicado, desde o século XVIII, a São Lázaro. No local funcionou um lazareto, o espaço para onde se levavam os doentes acometidos especialmente de doenças infecciosas e de pele e que não tinham para onde ir. Imagina-se que a maioria era formada por negros especialmente os que chegavam no período em maior número do Reino do Daomé, território do atual Benim, onde voduns como Azoany eram cultuados. Logo a semelhança aproximou as culturas religiosas africanas da católica.

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O afro-catolicismo no Santuário de São Roque e São Lázaro é antigo e um dos mais fortes de Salvador. Nas coleções de reportagens de A TARDE quase não se fala de São Lázaro ou São Roque sem essa interação.

“A romaria em direção à Igreja de São Lázaro começou cedo na manhã de ontem, para a festa de São Roque. Católicos e adeptos do candomblé lotaram o largo e a igreja para reverenciar o santo protetor, contra as doenças e as pestes”. (A TARDE, 17/8/1995, p.4).

  • Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto
    Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto |
  • Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto
    Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto |
  • Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto
    Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto |
  • Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto
    Os Tabuleiros de Omolu ou Sabeji são fortes marcas das religiões afro-brasileiras nas devoções de cura do mês de agosto |
  • Devoções de cura têm cercado agosto de ritos cheios de beleza
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  • Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes
    Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes |
  • Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes
    Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes |
  • Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes
    Festa de São Roque é exemplo de diversidade e respeito entre crenças diferentes, mas com pontos semelhantes |

Amparo

Os cultos das religiões afro-brasileiras e do católico São Roque são marcados por uma ideia do apoio a quem está vivendo uma situação de desamparo. Eles são, portanto, a esperança para aliviar o sofrimento físico, mas que também traz a dor emocional, afinal o que assusta mais do que uma doença especialmente quando ela marca a pele?

“Para nós, afro religiosos, em contramão aos dizeres populares, o mês de agosto é um mês especial, de esperança, de recolhimento e celebração às divindades de origem Ewe-Fon, assimiladas à tradição nagô, mas que encontra ecos também entre os candomblés de herança Banto, em função do processo afro diaspórico”, diz José Luiz Moreno Neto, hungbono, título da sua posição de liderança religiosa, do Axé Obá Koso Loke Omi, localizado em Simões Filho. O terreiro é da tradição jeje-savalu, uma das heranças dos povos que vieram do território do atual Benim.

Médico sanitarista, ele é doutor em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Bahia (PPGA- Ufba) e professor do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Medicina da Ufba. Em sua tese, orientada pela professora Fátima Tavares, Pai José Luiz Neto analisou o cuidado com a saúde nos terreiros de tradição jeje-savalu.

A tradição seguida pelo terreiro Axé Obá Koso Loke Omi é descendente da Cacunda de Yaya, casa fundada no início do século XX, liderada por Mãe Tança, e que foi deslocada do seu território de origem para a construção do Centro Administrativo da Bahia (CAB). O Cacunda de Yaya conseguiu manter a descendência com terreiros como o governado por Pai José Luiz Neto e o Vodun Zó, liderado pelo doté Amilton Costa. O Vodun Zo foi o primeiro terreiro reconhecido como patrimônio cultural pelo município de Salvador.

A tradição da Cacunda de Yaya tem como patrono o vodun Azansu também do panteão da terra e que se aproxima de Omolu e Obaluaê da tradição nagô. “Essas divindades associam-se, em nossa tradição religiosa, em agrupamentos familiares, que têm a recuperação e promoção da saúde dos indivíduos, coletividades e territórios como centralidade, em oposição às noções de doença, sofrimento e desequilíbrio”, completa Pai José Luiz Neto.

Na tradição jeje são muitas as divindades atuando nesta esfera da cura e prevenção de doenças. “O vodun Agè é o profundo conhecedor da medicina tradicional, sobretudo, a partir de saberes, fazeres e do encantamento de folhas, base para os remédios. Em nossa cosmovisão, Nanã é a senhora da sabedoria acumulada desde os tempos imemoriais, a quem pedimos por uma vida longa e saudável. A grande gameleira é abrigo do Vodun-árvore ou Árvore-vodun, Loko Azaka, que ao se expandir conecta-nos à nossa ancestralidade. Através de seu tronco, galhos e raízes mantém permanente o vínculo entre os viventes e aqueles que estão em outros planos da existência. Ako-Gbsesen, o Vodun-cobra, movimenta-se em torno de si mesmo, propiciando o continuum do ciclo vital e brinda-nos com a beleza exuberante do Arco-Íris”, completa.

Solidariedade

Essa relação de solidariedade em momentos cruciais, sobretudo os que envolvem os mistérios sobre a vida e a morte estão muito presentes nestas devoções. O orixá Omolu, por exemplo, tem entre os seus títulos o de médico dos pobres. Quando estão em transe nas festas públicas, as suas sacerdotisas e sacerdotes usam uma roupa tecida com palha da costa. O rosto é coberto por uma espécie de capuz feito do mesmo material. As cantigas em sua saudação seguem um ritmo específico: o opanijé. E assim que chega na cerimônia ele é saudado com a expressão “Atotô”, que significa calma, pois é considerado irritadiço.

Por conta desses cuidados relacionados aos mistérios que são especialidades do orixá, Omolu foi por muito tempo definido como uma divindade que carrega no corpo muitas chagas. Mas um itan- que são as formas narrativas do povo nagô para ensinar sobre as suas práticas filosóficas- traz outra versão. Segundo esta história, Omolu estava em uma festa que reuniu todos os orixás, mas se mantinha em um canto sem dançar. Iansã, a senhora dos ventos e dos raios, o convenceu a dançar com ela. Em meio aos movimentos as palhas se afastaram do rosto de Omolu e o que se viu foi a sua beleza ofuscante, assim como a luz do sol.

Já o católico São Roque tem biografia histórica, diferentemente de São Lázaro que é saudado como Obaluaê, mas que em Salvador é festejado em janeiro. Lázaro é um personagem de uma parábola, nome das histórias que Jesus contava para educar sobre a sua filosofia. São Roque nasceu na França, no século XIV e fez uma peregrinação a Roma ajudando pessoas que estavam acometidas da chamada “peste”, a epidemia de varíola. Ele também contraiu a doença e se retirou para uma gruta enquanto convalescia. Foi alimentado com a ajuda de um cachorro que lhe levava um pão todos os dias.

Encontros

Com a semelhança do auxílio para quem sofre devido às doenças infecciosas, a devoção a São Roque foi aproximada das celebrações para as divindades das religiões afro-brasileiras. É interessante até uma separação etária que foi realizada na associação entre o candomblé e o catolicismo: São Roque dialoga com a face mais jovem dessas divindades e Obaluaê conecta-se a mais velha. Por isso, na festa do dia 16 de agosto predomina o vermelho. Já na Festa de São Lázaro, em janeiro, o branco é mais comum.

Outro rito associado a esse período são os chamados Tabuleiros de Omolu ou Sabeji. Sacerdotisas e sacerdotes desfilam nas ruas de Salvador levando apoiados na cabeça um recipiente de madeira (tabuleiro) ou cesto de palha contendo pipocas, que são conhecidas como as “flores do velho”. Em troca de uma esmola, elas e eles oferecem a pipoca que é considerada a força contra energias que trazem problemas especialmente as doenças. Nas coleções de imagens do Cedoc A TARDE esse é um registro muito presente.

No candomblé, a festa para Omolu e as divindades semelhantes é chamada de Olubajé. A festa tem que ser realizada ao ar livre e é marcada pela oferta de vários pratos. Um itan nagô conta que isso acontece porque Omolu resolveu dar uma festa e fez o prato preferido de cada orixá. Mas eles não confirmaram a presença. Ele então convidou o povo. Ao saber que ninguém havia decidido participar, Oxum, a Senhora das Águas Doces, fez uma reprimenda geral e foi para a casa de Omolu. Os outros orixás a seguiram. Com tanta gente presente ele precisou fazer a festa ao ar livre. E assim, devido à ampla oferta de comida, ele é também reconhecido como o Senhor da Fartura.

A presença de tantos ritos cercados de beleza afasta deste mês a má fama. “Agosto é silêncio, contemplação, recolhimento, mas é, especialmente, um tempo de celebração à vida e à memória de todos que nos antecederam, envolto em momentos de partilha e festa. No dia 16 de agosto, por exemplo, na Estrada de São Lázaro, de um lado, está o Povo do Axé, em suas andanças, com a consagrada Caminhada Azoany. Ali, torna-se possível o encontro de religiosidades, com base no respeito mútuo à diversidade de crenças e multiplicidade de expressões e práticas religiosas”, completa Pai José Luiz Neto. É, portanto, oportunidade para agradecer e aprender.

*Cleidiana Ramos é jornalista e doutora em antropologia

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