Há décadas, o rock baiano canta a rebeldia em ritmo próprio
História da cena roqueira no Estado contempla a resistência do Palco do Rock, festival realizado há 31 carnavais na orla de Salvador

Em meio ao domínio histórico da Axé Music, do pagode e do samba-reggae, o rock baiano pulsa com força própria cantando liberdade e rebeldia. O rock ‘n’ roll se popularizou na Bahia na década de 1960, quando Elvis Presley tocava nas rádios, e cresceu alimentado por uma legião de artistas, produtores e fãs que encontram no ritmo celebrado todo 13 de Julho, no Dia Mundial do Rock, uma forma de transformar resistência em identidade cultural. Festivais como o Palco do Rock, que há 31 carnavais acontece em Salvador, são um exemplo da potência do gênero e mostra que o rock baiano segue combativo.
O Dia Mundial do Rock é uma data curiosa. Embora traga “mundial” no nome, é comemorada basicamente no Brasil desde meados dos anos 1990, mais ou menos quando o Palco do Rock começou a acontecer em Salvador. A data 13 de Julho foi escolhida em referência ao Live Aid, um megaevento musical ocorrido em 1985, na Filadélfia (EUA), reunindo artistas internacionais em um concerto beneficente para arrecadar fundos para a Etiópia, na África.
Um dos mais emblemáticos festivais na cena alternativa de Salvador, o Palco do Rock é refúgio para os amantes do rock durante o Carnaval. Criado em 1994 pela produtora cultural Sandra de Cássia, o festival acontece anualmente nas areias do Coqueiral de Piatã, oferecendo uma programação alternativa e gratuita com dezenas de bandas autorais e independentes - locais, nacionais e internacionais - dos mais diversos subgêneros do rock.
"O Palco do Rock confirma a força deste gênero musical em Salvador, já que durante todo o ano as bandas de rock se apresentam na cidade, marcando presença na terrinha do axé", afirma texto publicado em A TARDE no dia 12 de fevereiro de 1999, anunciando o quinto ano de "Carnaval pauleira!" em Piatã. Naquele ano, 40 bandas se apresentaram no festival que seguia na "contramão da axé music, brindando com muito rock 'n' roll quem não curte a folia baiana".
A ideia de criar um festival de rock em Salvador surgiu durante uma turnê pelo Brasil da banda Ulo Selvagem, liderada por Sandra de Cássia. "Quando voltamos, a vontade de criar um festival nasceu, porque queríamos mostrar o talento das bandas de rock da cidade”, contou Sandra ao A TARDE, em reportagem de 25 de fevereiro de 2014, ano em que o Palco do Rock completou 20 anos. Com o tema "A Saga Continua", o festival daquele ano atraiu 32 mil pessoas para Piatã e contou com a presença do músico André Matos, ex-vocalista das bandas Angra e Shaman.

A princípio, o projeto visava realizar o festival perto da aldeia hippie de Arembepe (Camaçari), que foi visitada pela cantora de rock e blues Janis Joplin, na década de 1960. Porém, a organização não conseguiu um palco no local. Foi então que Sandra soube de um palco montado em Jaguaribe, praia próxima de Piatã, que havia sido usado em um campeonato de surf. Assim, com muita determinação e um forte desejo de, literalmente, dar palco para a riqueza do rock baiano, a primeira edição do Palco do Rock aconteceu sob um sol escaldante e com a ajuda de vários amplificadores.
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A partir daí, ano após ano, o Palco do Rock seguiu crescendo, mesmo em meio às dificuldades e pouca verba. Celebrando o "underground baiano, nordestino e brasileiro", como bem pontua a matéria de A TARDE de 9 de fevereiro de 2024, ano em que o festival completou 30 anos. “O projeto faz parte de um sonho de uma mulher preta, oriunda de comunidade, em Salvador, primeira vocalista de hardcore baiano, que sonhou com um espaço democrático dentro da maior festa do mundo. E sobre sonhos aprendemos com o maravilhoso Raul Seixas que não se sonha só. Nossa maior conquista é coletiva”, afirmou Sandra de Cássia na ocasião.
Essa conquista coletiva faz parte da vida de pessoas como Ederson Santana, mentor e vocalista da banda Divinora. Há 30 anos frequentando o festival, durante muito tempo ele foi um dos jovens nas areias de Piatã sonhando em um dia se apresentar naquele palco. Até fez uma promessa aos amigos, a de que um dia tocaria naquele espaço. "E a gente conseguiu fazer isso. Muitos anos depois, em 2018, a Divinora subiu naquele palco para mostrar as nossas canções autorais e a nossa verdade", conta o músico.
Longo histórico
Aquela foi a 24ª edição do Palco do Rock e ficou marcada não só pela estreia da Divinora, mas também foi o ano da volta do festival a Piatã. Obras na região levaram o evento para a praia de Jardim de Alah, em 2015 e 2016, e para a Praça Wilson Lins, em 2017. Mas independentemente de onde o Palco do Rock esteja, o espírito de rebeldia do rock das últimas três décadas é inegável e segue rompendo barreiras. "Para mim, o Palco do Rock é um lugar de pertencimento que nunca podemos perder", afirma Ederson Santana.

Apesar de toda a importância que o Palco do Rock tem para a cena rocker baiana, está longe de ser o único grande evento do gênero por aqui. O Garage Rock Festival fez história na cena underground de Salvador entre os anos de 1992 e 2003, quando em sua despedida reuniu mais de 30 bandas, entre elas Nação Zumbi, Mano Véio, Nengo Vieira, Catapults, Brincando de Deus, Diamba e Nancyta, segundo lista o portal de música independente Oganpazan.
Ao contrário do Palco do Rock, o Garage Rock variava a quantidade de dias de shows a cada edição, assim como não tinha um local fixo. Da Faculdade de Economia da UFBA, na Piedade, até o Centro Histórico, o evento passou por vários endereços em Salvador, com os panfletos sempre convidando: Venha ver o que a Bahia tem!
“O Garage Rock foi o primeiro festival que pude participar como público. Assisti encantado às edições na Concha Acústica e no Pelourinho. Foi ali que vi pela primeira vez que Salvador tinha bandas de qualidade e tão boas quanto outras espalhadas pelo Brasil", afirma Ederson Santana.
Hoje, muitos outros eventos e festivais têm surgido na cena roqueira soteropolitana. Entre os mais recentes está o Itapuã Rock Festival, que teve sua primeira edição em 2024, na sede do bloco afro Malê Debalê. Há também o estreante Salvador Rock Festival, na praia do Jardim de Alah, para onde deve retornar em setembro deste ano para sua segunda edição.
"Foi a primeira vez que vi as bandas tocarem num trio elétrico. Temos experiências com Carlinhos Brown trazendo Sepultura e Angra para os trios no Carnaval, mas no cenário underground foi a primeira vez", lembra Ederson.
O feito de Carlinhos Brown fez história, mas não foi a única vez que o rock 'n' roll desfilou pelos circuitos tradicionais da folia. No dia 1º de março de 2014, A TARDE anunciava que a noite do domingo do Carnaval em Salvador seria tomada pelo Trio Pop Rock 80, no circuito Barra-Ondina. "Estão garantidos no repertório sucessos que marcaram a década de 80, de bandas como Kid Abelha, Barão Vermelho, Titãs, Paralamas, Ira, Ultraje a Rigor e Camisa de Vênus, dentre outras". A ideia partiu dos músicos Keko Pires, George Israel (Kid Abelha) e Eduardo Scott (Camisa de Vênus). Juntos, eles adaptaram grandes sucessos dessas bandas para o Carnaval.
Nova geração
Da louca psicodelia de Raul Seixas e da força musical dos Novos Baianos na década de 1970, às letras “sujas” da Camisa de Vênus nos anos 80, passando pelo heavy metal da Slavery que iluminou horizontes em 1990, sem esquecer as letras e vocais de Pitty, que desde o início dos anos 2000 cativam todo tipo de público, o rock baiano sempre foi resistência e liberdade. Esses artistas inspiram músicos que modificam, todos os dias, o rock baiano a partir de novas ideias e formas de mostrar o seu som autoral. E, embora bebam de fontes estrangeiras, essas criações também tomam grandes goles do nordeste.

Uma inspiração é o próprio Raul Seixas, que uniu rock e baião, misturando Elvis Presley e Luiz Gonzaga. “Então a gente sabe o quanto a fusão desses ritmos agrega valor e vai trazer novos olhares. Recentemente, conheci uma banda chamada Mr. Jack e o vocalista, muito emocionado, me contou que havia finalmente descoberto qual era o estilo de sua banda, o qual chamou de ‘rock sertânico’. Ouvir pessoas categorizando suas bandas com essas influências, fazendo essas categorizações, felizes, me deixa muito grato”, afirma Ederson Santana.
O músico destaca ainda o trabalho da cantora drag queen de heavy metal Midori Kido, que “traz esse rock com uma abordagem direta, com temas como preconceito, racismo e falando sobre as minorias”, explica. E junto com esses novos artistas, surgem outras manifestações fora dos circuitos dos shows e festivais, como o Clube dos Bons Sons, um coletivo de bandas e amantes do rock ’n’ roll que Ederson Santana ajudou a idealizar.
Com o objetivo de ocupar espaços na cena cultural com eventos musicais e outras expressões artísticas, um dos frutos do coletivo é o Prêmio Rock Clube dos Bons Sons, uma espécie de 'Oscar da Música Rock Baiana' que visa reconhecer e premiar artistas e bandas de rock baiano. A primeira e única edição até o momento aconteceu em 2023 e mostrou o grande celeiro de talentos do pop e do rock em que Salvador também se configura.
“Vemos hoje uma revolução em Salvador. O rock vem se renovando através de bandas como BaianaSystem, por exemplo, que é a força autêntica da guitarra baiana com a fusão dos tambores e o relevante grito preto dessa cidade. Sei que o rock ainda tem muito a fazer, mas com essas bandas, temos ganhado representação e vamos continuar crescendo e ocupando mais espaços”, pontua o vocalista da Divinora.
*Colaborou Tallita Lopes
*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época
*Material elaborado com base em edições de A TARDE e acervo do CEDOC/A TARDE