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A Tarde Memória

Por Priscila Dorea*

ACERVO DA COLUNA
Publicado sábado, 08 de novembro de 2025 às 9:23 h | Autor:

Museus afro são espaços de memória, resistência e luta antirracismo

Salvador, uma das cidades mais negras do Brasil, possui diversos acervos em espaços museológicos e terreiros de candomblé para valorizar a negritude

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Territórios de resistência e memória, os museus e memorias com acervos ligados à história afrobaiana são centros vivos de cultura. Por meio de esculturas, objetos religiosos, fotografias, documentos e narrativas orais, a história da diáspora africana é contada em Salvador. O primeiro espaço com acervo afrocentrado no Brasil nasceu justamente aqui, nos anos 1970. Trata-se do Mafro – Museu Afrobrasileiro. Na segunda reportagem especial em referência ao Mês da Consciência Negra, contamos a história deste e de outros acervos que valorizam a identidade negra e são, também, espaços de educação e enfrentamento contra o racismo.

"O Brasil teve as suas primeiras instituições museais a partir do século XIX. O Museu Nacional, que teve seu acervo doado pelo monarca Dom João VI, tratava-se de uma pequena coleção de história natural (...) Outros museus foram criados a partir da segunda metade do séc. XIX, como o Museu do Exército, em 1864, e o Museu da Marinha, em 1868. (...) Somente no séc. XX, em 1974, teremos o primeiro Museu Afro (Mafro) no Brasil", escreve a pedagoga Nancy Oliveira Santos, na monografia 'O Museu Afro e suas contribuições para a educação e formação de professoras'.

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A oportunidade de criar o Museu Afro-Brasileiro da Universidade Federal da Bahia (Mafro-Ufba) surgiu quando, na década de 1970, o Estado brasileiro buscou ampliar a relação com o continente africano. Na época, um termo de cooperação foi assinado pelos Ministérios de Relações Exteriores e de Educação e Cultura, o Governo da Bahia e a Prefeitura de Salvador. “Uma das várias ações do termo incluía o Centro de Estudos Afro-Orientais (Ceao) que, entre outros projetos, deveria realizar cursos de línguas africanas, intercâmbio de professores, pesquisadores e alunos entre a África e o Brasil, e criar um museu", conta o museólogo Marcelo Cunha, diretor do Mafro.

Imagem ilustrativa da imagem Museus afro são espaços de memória, resistência e luta antirracismo
| Foto: Cedoc A TARDE

O acervo foi formado, na maioria, por peças compradas e algumas encomendadas durante uma missão no continente africano em países como o Benin e a Nigéria. “Já uma outra parte das peças foi fruto de doação. Peças afro-brasileiras, sobretudo afro-religiosas, da capoeira e dos blocos afro de Salvador e do Recôncavo. A presença da Yeda Pessoa de Castro no Ceao nessa época e a articulação que ela conseguia fazer com a comunidade afro local fez com que houvesse uma adesão imediata das lideranças para a doação de peças", acrescenta Marcelo, também professor do departamento de museologia da Ufba.

Pouco a pouco, outros espaços afrocentrados foram ocupando Salvador, principalmente no Centro Histórico, com acervos que vão de esculturas religiosas a objetos cotidianos. E a existência dessa rede de núcleos de memória africana e afrodiaspórica é extremamente importante, ressalta o diretor do Mafro. "Sobretudo numa sociedade marcada por um processo de violência voltada para corpos negros. Tentaram silenciar tanto a perspectiva da memória quanto da presença, mas se nós estamos aqui é porque o silenciamento não foi efetivado na sua totalidade", reflete.

Memória preta

Salvador está repleta de memoriais, centros culturais, bibliotecas patrimoniais, arquivos históricos, casas de cultura, centros de memória e terreiros com acervos riquíssimos que contam a história dos povos africanos e o resultado do encontro dessas culturas com a Bahia. "Esses lugares, institucionalizados ou não, são importantes na criação de um contradiscurso decolonial, colocando em primeiro plano essas referências que precisam ser valorizadas", afirma Marcelo Cunha. Esses espaços se tornam uma forma de enfrentamento ao racismo estrutural e cotidiano, “ou melhor, o racismo deles de cada dia”, reflete.

Imagem ilustrativa da imagem Museus afro são espaços de memória, resistência e luta antirracismo
| Foto: Cedoc A TARDE

E isso também envolve o combate ao racismo religioso. Museus como o Mafro e outros espaços de memória afrocentrados muitas vezes não têm a religião como foco, mas não há como preservar memórias e corpos pretos sem considerar a violência física e simbólica que os atravessa. “A articulação das comunidades religiosas, como as de Candomblé, Umbanda e suas variantes, foi e continua sendo essencial nesse processo. Não é sobre religião, mas também é. É sobre mitologia, história e memória registradas nas oralidades cotidianas e sagradas da diáspora africana entre nós”, explica Marcelo.

Hoje, os próprios terreiros vêm criando espaços dedicados à preservação da história de suas lideranças e da cultura afro-brasileira. Um deles é o Memorial Mãe Menininha do Gantois (1992), localizado no Terreiro do Gantois, que preserva o legado de uma das mais importantes Ialorixás do Brasil, com um acervo que reúne objetos pessoais, religiosos e históricos, e celebra a força das mulheres negras. Assim como o Museu (2005) e a Biblioteca (2011) Mãe Mirinha de Portão, do Terreiro São Jorge Filho da Goméia (Lauro de Freitas), que preserva a história e tradição do candomblé banto.

Há ainda a Biblioteca Maria Stella de Azevedo Santos (1996), chamada de Ikójópò Àla Omodé, do Ilê Axé Opô Afonjá, que reúne registros fotográficos e uma rica coleção de livros, muitos raros, e dão um lugar físico para um dos propósitos de vida de Mãe Stella de Oxóssi: oferecer e cultivar conhecimento.

São locais que dão ao público a oportunidade de compreender que a cultura afrodescendente está longe de ser fragmentada, mas sim plural e dinâmica, com suas nuances e perfis intrinsecamente ligados umas às outras. Um bom exemplo disso é o Memorial das Baianas, que conta a origem do ofício das baianas de acarajé, sua relação com o candomblé e a cultura afrobaiana.

"O espaço, onde a história das baianas é contada em exposição de manequins, adereços, panos da costa e objetos da cultura dessas ilustres personagens do cotidiano de Salvador já recebeu a visita de turistas de 30 países, além daqueles vindos dos outros Estados, do interior da Bahia e residentes da própria capital", informada A TARDE na edição de 10 de novembro de 2002.

Conexão Bahia-África

Os espaços de memória afrocentrados ainda possuem outra função essencial, que é conectar a Bahia ao continente africano, enquanto reafirmam a presença da cultura negra africana na formação da identidade brasileira. Uma das mais recentes a firmar esses laços transatlânticos foi a Casa de Gana (2023). Mesmo sem um endereço físico, sua fundação marcou as ruas do Pelourinho com um cortejo de cerca de 30 artistas ganeses e 20 lideranças, incluindo a Embaixadora de Gana no Brasil, Abena Busia.

Outras casas precederam a ganesa. Em Salvador há a Casa da Nigéria (2008), que destaca em seu acervo a cultura iorubá e sua influência nas religiões de matriz africana; a Casa de Angola (1999), que abriga uma vasta biblioteca e um museu que revelam a diversidade cultural angolana e a conexão linguística entre as línguas banto e o português, e a irmã mais velha delas, a Casa do Benin (1988), que reúne peças adquiridas em mercados e feiras de rua do Benin pelo fotógrafo e etnólogo Pierre Fatumbi Verger e evidencia as tradições fon e iorubá, fortalecendo o intercâmbio artístico e religioso entre Salvador e o antigo Reino do Daomé.

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| Foto: Cedoc A TARDE

Gestor e curador da Casa do Benin, o produtor cultural Igor Tiago explica que os museus e espaços voltados à cultura negra representam um ganho imenso. "Precisamos cada vez mais de lugares como esses, que promovem a produção de conhecimento, provocam reflexões e tensionam narrativas entre aquelas construídas pelos colonizadores e aquelas que nós mesmos elaboramos a partir da nossa vivência, origem e trajetória. Tensionar essas narrativas e contar nossas histórias a partir das nossas perspectivas é fundamental. É assim que contamos nossas próprias histórias, desconstruindo versões equivocadas que ainda circulam e são reproduzidas", afirma.

Na Casa do Benin tem sido promovida reaproximações com artistas da diáspora por meio de intercâmbios artísticos e eles têm recebido projetos cujo principal objetivo é desenvolver narrativas próprias, em diálogo com artistas contemporâneos negros. Esses locais são centros vivos de cultura que acolhem oficinas, rodas de conversa e manifestações artísticas, mantendo viva a tradição dos povos africanos e afrodescendentes.

Brasil negro

Locais como o Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), também criado em Salvador, contribuem para o fortalecimento da consciência histórica, o combate ao racismo e a valorização das contribuições africanas à sociedade brasileira. No Muncab, o acervo convida o público a refletir sobre o passado, reconhecer o presente e construir um futuro mais justo e plural, ao trazer desde questões sobre o tráfico de pessoas escravizadas até as contribuições dos povos africanos na culinária. A inauguração do Muncab foi tão esperada que, antes mesmo de abrir oficialmente, exposições já eram realizadas no museu.

"A abertura é para que o público continue cobrando a conclusão do que será o primeiro museu nacional da Bahia”, afirmou José Carlos Capinan, presidente da Associação dos Amigos da Cultura Afro-brasileira (Amafro), na edição de A TARDE de 12 de novembro de 2011. O texto ainda informava sobre o que o público encontraria no Muncab durante três meses, de forma gratuita: "Serão apresentadas três exposições, com curadoria de Emanoel Araújo. Uma delas é o 'Acervo Inicial do Muncab', com cerca de 260 peças. Outra, 'O Escultor do Sagrado', celebra os 94 anos do Mestre Didi. Uma terceira, de fotografias, 'Nós, os Afrodescendentes', será aberta no dia 17", lista a reportagem.

Apesar do crescente número de museus e demais espaços de memória pelo país, ainda há desafios no que diz respeito à plena consolidação da museologia negra na atualidade. "E esses desafios estão profundamente ligados ao contexto histórico e social dos museus. É fundamental lembrar que os museus contemporâneos, desde o século XIX e a Revolução Francesa, foram pensados como espaços públicos de educação, mas também como instrumentos de dominação e construção de discursos hierarquizados sobre o outro. Os antigos museus de antropologia ainda testemunham isso, mesmo que renovados", reflete Marcelo Cunha.

É preciso, acima de tudo, repensar todos esses espaços. "Quem ocupa os cargos de liderança? Quem está nas funções subordinadas como portaria, segurança e limpeza? Qual é a cor dessas pessoas? Esses questionamentos são urgentes. A sociedade civil tem se mobilizado para reconstruir e ressignificar essas histórias e acervos. É inegável o avanço que nós tivemos, mas ainda há o que ser feito para que a museologia contribua efetivamente para a fundamentação e fortalecimento das perspectivas identitárias e para o entendimento do outro. Sobretudo para o respeito ao outro. Não só em sua memória, mas em seus corpos. O racismo é uma violência simbólica que é exercida sobre esses corpos em todos os aspectos", afirma Marcelo Cunha.

*Com a colaboração de Tallita Lopes

*Os trechos retirados das edições históricas de A TARDE respeitam a grafia da época em que as reportagens foram originalmente publicadas

*Material elaborado com base no acervo do CEDOC/A TARDE

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