GRÁTIS
Festival gratuito que mistura ritmos, arte e ciência chega a Salvador
Evento científico-cultural reúne artistas, pesquisadores e ativistas para discutir arte, gênero e dissidências em três dias de encontros gratuitos

Por Manoela Santos*

Nesta quarta-feira, 26, Salvador recebe a quarta edição do Festival científico-cultural Mínimos Óbvios, idealizado pelo ATeliê voadOR. O evento, que segue até sexta-feira, 28, na Casa Rosa, no Rio Vermelho, traz como tema “Histórias Dissidentes: Arquivar, Amar, Inventar”.
Consolidado como um espaço de experimentação e pensamento crítico sobre arte, gênero e dissidência, o festival reafirma nesta edição seu papel como plataforma de criação e celebração da potência queer nas artes e na pesquisa.
A proposta é transformar o encontro entre ciência, cena e afeto em uma verdadeira cartografia de (re)existências.
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A programação, totalmente gratuita e aberta ao público, reúne palestras, mesas performativas (long tables) e encontros artísticos que investigam a política do íntimo, as múltiplas identidades e as estratégias de resistência que atravessam a cena queer contemporânea. Os detalhes podem ser acompanhados no perfil @atelievoadorteatro, no Instagram.
Narrativas dissidentes
Para Djalma Thurler, um dos idealizadores, arte, ciência e afeto nunca caminham separados. Ele explica que, especialmente na América Latina, a epistemologia queer reivindica modos de conhecer que nascem também “das experiências corporais, dos laços comunitários, das fabulações estéticas e dos modos minoritários de existir”.
Segundo ele, essa mistura não é só estética, mas ética: “só produziremos pensamento queer robusto no Brasil se permitirmos que a ciência se deixe afetar e que a arte se reconheça também como forma de conhecimento”.
Inspirado em festivais como o National Queer Theater e o Dublin Gay Theatre Festival, o Mínimos Óbvios propõe uma imersão nas dramaturgias dissidentes a partir do tema “Histórias Dissidentes: Arquivar, Amar, Inventar”.
Para Leandro, o mote sintetiza o gesto de “elaborar e recriar histórias que nem sempre são evidentes”, reafirmando que a comunidade LGBTQIAPN+ acumula décadas de luta por reconhecimento.
Ele afirma que o festival é fruto de um percurso longo: “O Mínimos Óbvios é um evento construído de forma processual, resultado de nosso trabalho dos últimos 15 anos dentro e fora da Ufba”.
Esse acúmulo, explica, atravessa toda a programação e dialoga com discussões sobre performatividade, ideia central dos estudos queer. “Se reforçamos dessa forma, podemos performar de outras maneiras. É isso que incomoda setores conservadores, que acham que precisamos viver apenas de um jeito”, completa.
Escolhas descentralizadas
A programação começa na quarta, 26, às 19h, com a conferência e lançamento do livro A Audácia dos Invertidos (Editora Record), do jornalista e biógrafo Rodrigo Faour.
A obra reconstrói a história do movimento LGBTQI+ no Rio de Janeiro entre as décadas de 1950 e 1980, iluminando personagens que moldaram comportamentos, linguagens e afetos – de Ney Matogrosso e Caetano Veloso aos Dzi Croquettes, Leci Brandão e Madame Satã.
No dia 27, às 19h, acontece a primeira long table, intitulada “Visíveis, múltiplos, indomáveis: histórias LGBT+ em cena”.
A conversa aborda como raça, classe, gênero e sexualidade se entrecruzam nas vivências LGBTQIAPN+, destacando memórias de resistência e estratégias de reexistência diante das normas excludentes. Entre as participantes está a atriz, cantora e compositora Verónica Valenttino, primeira mulher trans a receber o Prêmio Shell de Melhor Atriz.
Ela diz estar “extremamente honrada” por participar: “como uma atriz nordestina travesti, ainda buscamos reconhecimento o tempo todo”. Verónica reforça que, apesar dos avanços, a luta segue intensa: “Alcançar visibilidade não nos tira automaticamente da marginalidade. Somos corpos múltiplos, diversos e indomáveis”.
Em sua fala, ela ainda relaciona arte e resistência: “Só o fato de acreditarmos nos nossos sonhos e viver da arte já é resistência. Nossa função é seguir vivas, não permitir que o sistema nos apague ou nos mate”.
Para Leandro, a presença da artista simboliza essa força: “o trabalho de Verónica é muito expressivo, especialmente vindo de uma trajetória forjada em um grupo de teatro do Nordeste, o que também é muito significativo”.
Outra convidada especial é a diretora teatral e de ópera Ines Bushatsky, encenadora de Rei Lear e co-fundadora da Cia Extemporânea, que tinha um elenco formado por nove drag queens, em 2024, na cidade de São Paulo.
Outro é o biógrafo e músico Ricardo Santhiago, responsável pela escrita das biografias da cantora e comediante Miriam Batucada e do ícone queer Edy Star. Também participam da mesa Kauan Amora Nunes (UFPA/Belém/PA), Taciano Soares (UEA/Manaus/AM) - fundador da ATeliê 23, Rainha Loulou, Georgenes Isaac (Coletivo das Liliths, Bahia), Rogério Alves (Cia Boca de Cena, Aracaju/SE) e Marcus Assis (UESB).
A segunda Long Table, “Amar, contar, transgredir: corpos que se narram”, acontece no dia 28 de novembro, às 15h, e reúne artistas e pesquisadores que investigam, pelo teatro, a potência política do íntimo.
O encontro aborda experiências pessoais, afetos e memórias através de monólogos e performances autobiográficas, refletindo sobre amor, desejo e representações dissidentes. Participam Denni Sales (PPGAC/UFBA), Lígia Souza (UNICAMP/SP), Paulo Cesar Garcia (UNEB), Duda Woyda (ATeliê voadOR/UPM) e Wendy Moretti (UFBA).
Ainda no dia 28, às 19h, o poeta e pesquisador mexicano César Eduardo Gómez Cañedo, doutor em Letras pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), realiza a palestra de encerramento “Modos vida cuir na América Latina e os territórios de masculinidades em disputas nas artes e na literatura”.
Encerrando o festival, a noite do dia 28 de novembro, a partir das 21h, será marcada pela Carnavalização, conduzida por Duda Woyda e Talis Castro. Entre performances pop-up, música e improviso, a Carnavalização é espaço de integração entre artistas, público e comunidade.
Djalma destaca que a seleção de participantes buscou ampliar perspectivas e territórios. “Queríamos evitar a centralização das narrativas queer no Sudeste. Por isso, artistas de Manaus e Belém garantem diversidade geográfica e epistêmica”. A ideia foi priorizar quem tensiona formatos, atravessa fronteiras disciplinares e propõe novos vocabulários políticos e afetivos.
Desafios e importância
Apesar dos avanços, Leandro reconhece que os desafios permanecem, especialmente no campo institucional: “Muitas vezes o que fazemos é visto apenas como ativismo, como se não fosse produção de conhecimento”.
Ele lembra que conquistas como a despatologização das identidades trans derivam diretamente de pesquisas e práticas desenvolvidas por coletivos e núcleos como o NuCuS.
Ao mesmo tempo, observa o crescimento de discursos anti-queer até mesmo em setores progressistas. “Vivemos um momento delicado, com ataques vindos tanto da extrema direita quanto de intelectuais que usam o termo ‘identitarismo’ para deslegitimar nossas pautas”. Por isso, diz, esta edição assume importância ainda maior.
Djalma espera que o público saia transformado. “queremos que cada pessoa se sinta autorizada a repensar suas formas de existir, amar, criar e se relacionar”. Para ele, ampliar o olhar e cultivar uma sensibilidade para o outro já representa uma vitória. “Se o público sair com a sensação de que ‘poderia ser de outro jeito’, o festival terá cumprido seu papel”, afirma.
O Mínimos Óbvios é realizado em parceria com o NuCuS/UFBA e com apoio da CAPES (Edital PAEP)l.
Serviços
➡️ Festival Mínimos Óbvios - ano IV
▪️Data: do dia 26 ao 28
▪️Local: Casa Rosa (Rio Vermelho)
▪️Gratuito
▪️Programação completa: @atelievoadorteatro
*Sob supervisão do editor Chico Castro Jr.
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